Rosana Pinheiro-Machado

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A revolta do guarda-chuva de Hong Kong nos ensina como protestar

Com cinco demandas, protestos em Hong Kong levam 2 milhões às ruas. Eles usam guarda-chuva como escudo e gestos para se comunicar e evitar confronto.

A revolta do guarda-chuva de Hong Kong nos ensina como protestar

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Foto: Billy H.C. Kwok/Getty Images

A resistência contra o governo Bolsonaro pode encontrar em Hong Kong uma fonte de inspiração. O território autônomo da República Popular da China está revolucionando as formas de protestar. Em menos de dois meses, os manifestantes que exigem reformas democráticas do Partido Comunista Chinês conseguiram um feito extraordinário: colocaram um quarto da população nas ruas.

Apesar de enfrentar muitas limitações e desafios internos, a “revolta do guarda-chuva” – uma referência ao objeto que protege não apenas da chuva enquanto serve de escudo contra a violência policial – se tornou em um exemplo de organização, criatividade e solidariedade para o mundo.

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Em 16 de junho, quando cerca de 2 milhões de pessoas tomaram as ruas da cidade, uma imagem icônica circulou em jornais e sites: milhares de manifestantes abrindo espaço para uma ambulância passar, deixando claro um poder de organização não visto em outras manifestações. Dois meses depois, a revolta do guarda-chuva voltou a colocar 1,7 milhão nos protestos. No último domingo, dia 18 de agosto, a multidão marchou sob uma chuva forte.

Como aponta Antony Dapiran, no livro “City of protest, Hong Kong mantém movimentos de “raiz” que têm uma identidade própria, que não é nem chinesa, nem britânica, mas hongkonesa mesmo. É uma cidade rebelde que tem a desobediência civil como marca de seus protestos desde os anos 1960. Seguindo a tradição, a revolta do guarda-chuva começou em 2014, quando manifestantes seguiram a onda global de protestos e ocuparam as ruas do centro financeiro, pedindo eleições democráticas.

Como ocorreu na Primavera Árabe e no movimento Occupy Wall Street, em 2011, e no movimento secundarista no Brasil de 2016, as ocupações de 2014 em Hong Kong formaram uma nova geração de ativistas que passou a reivindicar uma democracia radical. Essa geração hoje volta às ruas por cinco demandas: 1) revogar a lei da extradição, que previa extraditar fugitivos para territórios onde não se tinha acordo; 2) investigar excessos policiais por uma comissão independente; 3) retirar a caracterização dos protestos de riot (motim); 4) conceder anistia aos manifestantes presos; 5) alcançar sufrágio universal para o chefe do executivo e membros do legislativo. A demanda número um, a principal de todas, já foi atingida, mas os manifestantes continuam nas ruas pelas outras quatro. Em comum, as cinco pautas buscam uma maior autonomia de Hong Kong e menor interferência do PCC nos rumos políticos da região.

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Uma ambulância cruza no meio de milhares de pessoas que protestavam contra a controversa política de extradição do Partido Comunista Chinês em 16 de junho de 2019, em Hong Kong.

Foto: Hector Retamal/AFP/Getty Images

Imaginação e resistência

Diante da asfixia causada pelo bolsonarismo, tenho refletido muito sobre o papel da imaginação na luta política – tema do meu novo livro “Amanhã vai ser maior”, a ser lançado em breve pela editora Planeta. Pensar sobre isso se torna particularmente importante quando temos, de um lado, um governo autoritário que nos quer iguais num mundo opaco, homogêneo e careta e, de outro, táticas de mobilização degastadas que já não funcionam como gostaríamos. Temos falhado em nossa própria imaginação e, consequentemente, em seduzir a atenção alheia.

Ao contrário do que Bolsonaro procura impor, protestos são dimensões fundamentais para o avanço de qualquer democracia. Mas ativismo sem propósito, consistência e criatividade tática também pode ser inócuo, desgastar a própria resistência e abrir espaço para a apropriação de oportunistas. Essa é a lição mais importante que Hong Kong tem a nos ensinar.

A socióloga marxista e ativista Ana Cecilia Dinerstein escreveu um importante livro “A política da autonomia na América Latina” sobre esse tema. A tese central da obra se resume no próprio subtítulo: “A arte de organizar a esperança”. Para autora, a luta é uma arte no momento em que demanda criatividade para recriar uma sociedade que não existe ainda – a sociedade que se quer construir baseada na democracia radical. O tema da imaginação também tem sido central para os próprios intelectuais socialistas de Hong Kong, como Chris Chien que, inspirado na célebre obra “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” de Karl Marx, escreveu que a luta por autodeterminação do território autônomo chinês precisa buscar sua poesia, seu conteúdo e sua forma não no passado, mas no futuro.

Os hongkoneses têm se superado dia a dia na inovação criativa de táticas não violentas de desobediência civil, as quais proporcionam proteção e geram identificação e solidariedade social. Inspirado em Bruce Lee, “seja água” é o lema do movimento: “seja forte como o gelo e fluído como a água, agregue-se como o orvalho, mas saiba dispersar como o vapor”.

Os manifestantes têm produzido narrativas poderosas de amor e afeto. Quando foram acusados de vândalos e marginais por boa parte da classe média e autoridades, eles produziram imagens de animes com casais de manifestantes se beijando. A estética moderna atrai a nova geração, explorando imagens dramáticas de pureza e altruísmo juvenil, dramatizando o desejo de morrer por uma causa.

O uso dos objetos também são inovadores. Guarda-chuvas servem de escudo. Capacetes e máscaras protegem a cabeça e a face. Cones de trânsito com garrafas d’água dispersam o gás lacrimogêneo, malas e tampas de lixo fazem barulho, e luzes de laser afastam a polícia. Organizados por uma linguagem de sinais com as mãos, os manifestantes conseguem se comunicar a distância, orientando como dispersar multidões antes da polícia chegar ou fazendo-a abrir caminho para uma ambulância passar.

Para conquistar a atenção internacional, os manifestantes oferecem lanches e cuidados de primeiros-socorros para os jornalistas, colocaram anúncios no Tinder pedindo apoio e protestaram diante do portão do desembarque no aeroporto com cartazes com os dizeres “Aprendemos com a França e com a Ucrânia a fazer greve” – como contou a jornalista Luiza Duarte. E eles iniciaram uma nova campanha internacional, como reportou Raquel Carvalho, com cartazes dramáticos pedindo socorro.

A solidariedade interna vem de todos os lados. Talvez o mais importante apoio – partindo do princípio que a China e Hong Kong precisam ser entendidas dentro de seus próprios termos, tendo sua soberania respeitada – venha de uma grande parte dos próprios chineses, dos trabalhadores fabris organizados e dos novos movimentos sociais que hoje crescem na República Popular da China.

Os meses de junho, julho e o início de agosto foram marcados por tensão. A repressão policial se tornou maior. Os protestos no aeroporto incomodaram as autoridades do partido chinês, que chamaram o movimento de terrorista. Uma manifestante perdeu a visão com um bala de borracha. A polícia migratória, então, começou a checar o celular de quase todos que entravam em Hong Kong, temendo que se juntassem aos protestos. Neste momento, muitos manifestantes afirmam que a luta já não é mais apenas por avanços políticos democráticos, mas fundamentalmente antifascista e anti-polícia.

Como aconteceu em muitos protestos no Brasil pós-Junho de 2013, especialmente no #NãoVaiTerCopa, a opção de confronto com a polícia podia afastar manifestantes e tornar os protestos mais radicais e menores. Esse era o medo de uma das ativistas que entrevistei. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Em sua avaliação, a marcha pacífica com quase 2 milhões de pessoas na rua sob chuva forte demonstrou no último domingo que, apesar das muitas disputas internas, o movimento é mesmo como água: tem grande capacidade de agregar e se transformar sem perder sua essência.

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Policiais em frente de um restaurante durante os protestos do último domingo, que reuniram 1,7 milhão nas ruas de Hong Kong.

Foto: Isaac Lawrence/AFP/Getty Images

Conflitos e desafios

Algumas pessoas estão reticentes em relação aos protestos de Hong Kong. Nas redes sociais do mundo todo, circulam imagens em que aparecem bandeiras dos Estados Unidos e da Inglaterra no meio das manifestações, sugerindo que se trata de um movimento imperialista ou colonialista. Nas redes chinesas, os manifestantes respondem mostrando bandeiras anarquistas e antifascistas, provando o contrário. Há também imagens de milionários chineses que saíram em suas Ferraris em diversas cidades do mundo para insultarem os manifestantes. Também encontrei vídeos de um menino que declarava seu amor a Adolf Hitler e de discursos de organizações socialistas.

Em um movimento que leva milhões de pessoas às ruas, é natural que imagens destoantes apontem diferentes interpretações sobre o movimento. Mas elas não representam o todo e são usadas para distintos interesses políticos por aqueles que disputam e tentam se apropriar do movimento.

‘Nós, os que acreditam na democracia radical, justiça social no processo de autodeterminação de Hong Kong, somos a vasta maioria.’

O maior desafio que o movimento enfrenta hoje, em minha visão, é abandonar o sentimento de superioridade étnico das elites locais em relação aos chineses. Como já percebia em minha pesquisa de doutorado, quando morei na fronteira entre Shenzhen e Hong Kong entre 2006 e 2007, boa parte das elites de Hong Kong demonstravam repulsa contra a “inferioridade cultural” dos vizinhos. É esse sentimento que muitos ativistas temem ganhar espaço no movimento. Casos de xenofobia e sentimento supremacista contra os chineses do continente têm aparecido nos protestos – o que leva a alguns grupos minoritários de manifestantes a defenderem o apoio dos EUA e da Inglaterra contra o PCC.

Na sanha que mobiliza a raiva contra um inimigo, que é interno e externo ao mesmo tempo, alguns manifestantes hongkoneses “localistas”, “nativistas” ou “separatistas” têm se radicalizado para a extrema direita. O aparato financeiro para disputar e ampliar essa onda não é pouca e conta com recursos internacionais. A disputa da extrema direita é massiva, real e coloca um risco concreto ao futuro de uma sociedade que já vive o trauma da intensa divisão ideológica.

Outra possível fragilidade da revolta do guarda-chuva é a grande presença de jovens que militam pela primeira vez e podem estar suscetíveis de serem capturados pelo extremismo apaixonado, combatendo autoritarismo com autoritarismo. Recentemente, alguns jovens foram flagrados constrangendo e humilhando uma menina chinesa. Cenas como essas, que lembram linchamentos públicos, têm ocorrido também por parte dos chineses opositores para escrachar os manifestantes. Na atual conjuntura, não acredito que o movimento, com todas suas contradições, penderá para a extrema direita imperialista.

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Protestos que exigem reformas democráticas do Partido Comunista Chinês lançam laser contra o prédio do parlamento de Hong Kong em 18 de agosto.

Foto: Chris McGrath/Getty Images

Como todas as lições internacionais, a comparação com nosso cenário pós-2013 pode jogar luzes para pensar o futuro dos protestos no território autônomo chinês, especialmente para lembrar que não podemos minimizar a força dos fascistas. Mas também penso que olhar demasiadamente para o Brasil pode nos engessar e prejudicar na análise daquilo que considero a chave mais fundamental de compressão de qualquer movimento: a voz dos próprios manifestantes que estão na linha de frente.

Na impossibilidade de estar junto aos manifestantes neste momento, restou-me passar algumas madrugadas (em função da diferença de fuso horário) acompanhando a plataforma de organização do movimento e falando com ativistas democratas e socialistas que estão na linha de frente dos atos. Muitos têm relatado problemas internos, como a viabilidade prática das cinco pautas, mas acreditam que o espírito democrático e não violento tem prevalecido.

É bom lembrar que os ativistas têm algo que é tão básico como vital: cinco demandas claras.

Uma ativista me relatou que grupos jovens de extrema direita já estão se organizando para eleger cargos no poder legislativo – algo semelhante ao que ocorreu no MBL no Brasil. Ela me disse que seu grupo fará o mesmo: “Só que nós, os que acreditam na democracia radical, justiça social no processo de autodeterminação de Hong Kong, somos a vasta maioria.”

Depois da marcha de domingo, dia 18, ativistas com quem conversei seguem alertas, mas convencidos que, apesar da tentativa de apropriação por parte dos extremistas xenófobos e imperialistas, o espírito do movimento, o aprofundamento da democracia, não foi capturado. É bom lembrar que os ativistas têm algo que é tão básico como vital: cinco demandas claras.

Tenho escutado muito nas redes sociais que estamos parados no Brasil. Discordo. Vejo reação por todos os lados em vários planos de atuação – ainda que, por enquanto, não seja suficiente para derrotar a avalanche autoritária. As ocupações secundaristas foram paradigmáticas na inovação de táticas, com performances artísticas nas ruas que, somada a uma pauta clara, conseguiu amplo apoio popular. O movimento #elenão colocou milhões de mulheres nas ruas. O #viravoto, ainda que tenha ocorrido tardiamente, foi um grande exemplo de reinvenção das formas de luta.

É pouco em face de tudo que este governo tem promovido? Talvez, mas apresentra um caminho importante. O maior exemplo de Hong Kong até agora tem sido conseguir superar suas diferenças internas, manter a coesão em torno de uma pauta clara e reinventar as formas de ocupar as ruas, os aeroportos e as redes sociais. Criatividade, imaginação e propósito são as expressões de vida inteligente que precisam estar na linha de frente contra a pulsão de morte bolsonarista.

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