Nasci em Anápolis, Goiás, uma cidade que fica a duas horas de Brasília. Durante a minha vida, sempre tive a UnBcomo referência, e minha mãe sempre desejou que eu entrasse em uma universidade pública.
Acabei entrando tarde, aos 22 anos. Não sabia muito o que fazer, mas sempre tive vontade de criar. Ao descobrir o curso de Comunicação Social com habilitação em Audiovisual na UnB e que havia a possibilidade de entrar por cotas raciais, prestei o vestibular. Mesmo estudando muito, não pensei que fosse conseguir passar. Mas passei e me formei no ano passado.
Mas o cinema surgiu muito antes da minha vida. Um filme que marcou minha infância foi “Cor púrpura“, do Steven Spielberg, inspirado no livro da escritora negra norte-americana Alice Walker. Eu me emocionava com a história e em ver pessoas pretas na tela. Quando começou a faculdade e iniciei a fazer filmes, todas as minhas dúvidas do que eu queria fazer foram respondidas. Senti que era para eu estar fazendo aquilo.
Sem perceber, o cinema acabou sendo um lugar de ocupação porque não se veem pessoas pretas nas telas – e nem por trás delas. E em meus projetos, eu busco essa essência. Tenho buscado trabalhar com temas que façam sentido para mim e para o cinema, principalmente questões raciais e LGBT.
Mas fazer cinema no Brasil é muito complicado. Primeiro porque há um monopólio de diretores homens, brancos, cis, héteros, que normalmente vêm de famílias ricas e conhecidas. Para uma bixa preta, não há oportunidade.
Quando se encontra o trabalho, muitas vezes tem que se lidar com o assédio moral. Na minha primeira experiência com audiovisual, em um programa de TV, eu sofria diversos assédios não apenas por ser inexperiente, mas por ser uma pessoa preta ocupando aquele lugar.
Além disso, nunca sou visto como um profissional completo, mas como um diretor que fala sobre cinema negro. Ou contratam apenas para dizer “estamos contratando uma pessoa negra”. Ou o mais comum, não contratam. Mas eu tenho a formação para fazer e falar sobre tudo no cinema.
Por ser formado, ter um curta metragem com reconhecimento do público e da crítica em 2017, pensei que o setor seria um lugar mais acolhedor. Mas não é. Ainda encontro resistência para me contratarem e acreditar nos projetos, e tento agarrar todas as oportunidades que aparecem. Apesar de ter me formado há pouco tempo, já tenho alguma bagagem. Já fui assistente de diretor em dois projetos: um deles, o curta-metragem “Lubrina”, gravado em um quilombo na Chapada dos Veadeiros, e no meu primeiro longa, “Afeminada”, sobre masculinidade tóxica no meio LGBT. Agora estou com um projeto novo, o “Rumo”.
Mas pela hierarquia engessada da indústria do cinema, nós temos que traçar os nossos próprios caminhos, pois precisamos buscar nossas próprias experiências mesmo depois de só receber “nãos”. Nesses caminhos, surgiu o Afronte.
O curta foi meu trabalho de conclusão de curso em parceria com meu colega Marcus Azevedo. Durante a pesquisa para o projeto, buscamos coisas que nos interessavam, e uma delas era a questão racial. Nunca tivemos referências negras dentro da universidade por parte do corpo docente. Não tivemos cadeiras que abordassem o tema, mas descobrimos durante as pesquisas que o cinema brasileiro com negros é grandioso, com uma vasta e jovem produção. Também queríamos um conteúdo que passasse pela intersecção do recorte homem negro e LGBT.
O gênero do filme já havia sido decidido: documentário-ficção. Para criar a história, conhecemos o Coletivo Afrobixas, um lugar de acolhimento e estudo, em que se busca entender qual é o lugar da bixa preta. O ano de pesquisa foi intenso, participamos de reuniões, conversamos com inúmeras pessoas até que surgiu a ideia do “Afronte”: contar a história de um homem negro e gay.
Para gravar o curta, usamos equipamentos cedidos pela universidade e outros emprestados. Fizemos uma vakinha online para financiar o filme e conseguimos arrecadar R$ 10 mil, o que para um projeto audiovisual é muito pouco. Mas contamos com pessoas que acreditavam no projeto e aceitaram trabalhar voluntariamente. Passamos um ano na produção e, em 2017, ele estava pronto.
Foi assustador saber que a gente é alvo de tanto ódio, de tanto preconceito, de tanta ignorância vinda de um presidente.
A recepção do público e da crítica foram muito positivas. O curta ganhou prêmios como o Mix Brasil 2017, e as pessoas sempre nos falavam: “assisti Afronte e fiquei com vontade de assistir mais”. Durante a montagem, por termos escolhido um curta-metragem de 15 minutos, deixamos grande parte do material de fora. E nós vimos que tínhamos mais coisas para falar. Foi então que começamos a pensar em quais formatos essa história se adaptaria. E encontramos um edital, em 2018, que contemplava os nossos projetos.
O formato era pré-definido: uma série com seis episódios de 26 minutos cada. O formato contemplava muito o que já tínhamos em mente, porque poderíamos contar várias histórias e ter uma distribuição em TVs públicas. O valor era uma produção de baixo-custo, mas iríamos conseguir pagar todo mundo. Foi um processo longo, o edital tem vários pré-requisitos. A inscrição de um projeto é bem técnica. Precisamos comprovar que estamos aptos a de fato conseguir fazer a série.
Nosso curta foi pré-selecionado até que o governo Bolsonaro resolveu censurar. O governo suspendeu o edital e, em uma de suas lives semanais, o presidente chegou a dizer que “não dá para entender. Então, mais um filme aí, que foi pro saco, aí. Não tem cabimento fazer um filme com esse enredo né?” Publicamos uma carta aberta condenando sua fala.
A censura começar com um filme LGBT negro é muito simbólica e representa o governo Bolsonaro: ignorante, contra a cultura, misógino, racista e homofóbico.
Mas não fiquei surpreso com a fala, apenas com ele citar meu filme. Um ataque tão direto assim ao nosso projeto foi assustador. Foi assustador saber que a gente é alvo de tanto ódio, de tanto preconceito, de tanta ignorância vinda de um presidente.
Um discurso de ataque tão direto do presidente valida que outras pessoas façam o mesmo. E eu recebi ataques extremamente dolorosos, desde apoios à fala e à censura, até gente falando da cor da minha pele, da minha orientação sexual. Em um dos ataques fui chamado de “cosplay da Marielle Franco”, o que é muito grave. Não que seja ruim ser associado a figura da Marielle – isso inclusive é uma honra –, mas o que eles estão falando que eu mereço ter uma morte parecida com a dela. E eu fiquei com medo, me retirei das redes sociais. E sei que essas pessoas são covardes e gostam de violência, e que elas querem que a população preta, principalmente LGBT, continue sendo massacrada.
Foi uma censura explícita e que precisa ser tratada como o crime que é. E senti falta de um posição de outros cineastas, principalmente brancos, que só se manifestaram quando todo o edital foi suspenso e eles também foram afetados. Essa censura veio para refletir que precisamos olhar para quem está na linha de frente, a população negra e LGBT. É preciso ter uma unidade de luta, enfrentar a estrutura racista, em que há a união para trazer um conteúdo de qualidade, enriquecer a cultura e fazer com que a população se veja nas telas.
O cinema brasileiro precisa desses editais, e a principal importância deles é que pessoas como eu podem produzir.
Desde o governo Temer, as produções brasileiras tem perdido espaço, com a diminuição do número editais e até o desmonte da EBC. Nós, realizadores, ainda enfrentamos essas consequências, que hoje se agravam com as decisões de censura do novo governo. É um projeto de destruição da cultura, que fica evidente quando 43% das verbas para a Ancine são cortadas e há o repasse de uma verba para produções evangélicas.
O cinema brasileiro precisa desses editais, e a principal importância deles é que pessoas como eu podem produzir. Pessoas que estão na margem da sociedade têm acesso aos editais e tem a oportunidade de contar suas histórias. O audiovisual teve uma grande função na criação de um imaginário racista, colocando a população preta sempre no local servidão ou de marginalidade. Mas ele pode ser o responsável por criar um novo imaginário antirracista, se nos deixarem fazer filmes.
É preciso que tenhamos espaço para contar nossas histórias, que se fale sobre as cotas, que se conte a história de pessoas como a Leni, uma senhora que entrou na universidade para cursar artes cênicas aos 52 anos e é protagonista do nosso – meu e do Marcus – próximo curta, em seu primeiro trabalho como atriz, o “Rumo”, sobre a história das cotas raciais na UnB, que existem há 15 anos. O projeto surgiu quando estávamos pesquisando tema e conta a história de uma senhora e do filho que querem entrar na universidade. Para financiar o filme, criamos um financiamento coletivo.
As leis de incentivo ao audiovisual servem para que os filmes coloquem como protagonistas pessoas negras, LGBT, além de questões de interesse público, porque cinema também é informação. Cinema tem um viés público.
Outro ponto importante é de onde vem esse dinheiro que fomenta o audiovisual. Ele vem de impostos que a própria indústria cinematográfica paga. E ela ainda gera inúmeros empregos diretos e indiretos. O cinema também movimenta a economia. Não há por que sacrificar um setor tão importante. Com os cortes nos investimentos, vai ser difícil produzir qualquer tipo de filme no Brasil, mas especialmente filmes como o “Afronte”.
Mas o cinema sempre foi lugar de resistência e, mesmo que o Bolsonaro tente acabar com todo o financiamento público, ele não vai acabar com o cinema, porque nós sempre fizemos um cinema periférico e sem recursos. E vamos continuar fazendo.
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