Depois de uma denúncia ao conselho tutelar do Itaim Paulista, bairro no extremo leste de São Paulo, um pai perdeu a guarda da filha por suspeita de abuso sexual. A criança ficou com a mãe. O pai, no entanto, entrou com um recurso na vara da infância e, menos de um ano depois, conseguiu a guarda de volta. O juiz responsável por julgar o recurso não teve acesso às informações do conselho tutelar. “Foram juízes diferentes na mesma vara e eles não se comunicaram sobre as informações do caso”, me disse José Machado, conselheiro tutelar no bairro. A razão: elas não existem.
Em 2018, 963 crianças sofreram algum tipo de abuso sexual na cidade de São Paulo. Só nos primeiros oito meses de 2019, o estado registrou 5.859 casos de estupro de vulnerável. Mas, nas contas dos conselhos tutelares de São Paulo – o órgão responsável por prestar assistência às crianças e adolescentes em situação de risco – só houve um caso nos últimos 20 anos. Isso mesmo: no Sistema de Informações para Infância e Adolescência, o Sipia, só há um registro desse crime desde o ano 2000.
É esse o cenário que os 260 conselheiros eleitos e reeleitos – caso de José Machado – encontrarão. Responsáveis por atender as denúncias de negligência e maus tratos e encaminhar famílias e menores de idade a atendimento jurídico ou psicológico e creches, os conselhos tutelares sofrem com falta de estrutura, despreparo – conselheiros nos disseram que colegas têm dificuldade para escrever e usar o computador – e falta de informações sobre o próprio trabalho.
Para entender a dimensão do problema, pedi, por meio da Lei de Acesso à Informação, dados sobre o número e os tipos de atendimento realizados em 2018 e 2019 na cidade de São Paulo. Dos 52 conselhos, só seis tinham as informações. Em Ermelino Matarazzo, extremo leste de São Paulo, a unidade enviou, no lugar das informações, um boletim de ocorrência para provar o furto dos computadores da unidade – os ladrões levaram o equipamento e, com ele, os dados do conselho.
Cada um faz do seu jeito
No Conselho Tutelar I, em Cidade Tiradentes, as fichas de atendimento são preenchidas em papel e guardadas em um arquivo físico. “As demandas diárias são de 15 atendimentos. Sem funcionários administrativos para registrar a situação, digitar o nome da pessoa, colocar o CEP, nós temos que fazer todo esse processo”, me disse a conselheira Kátia Regina dos Santos, vice-presidente na Associação Paulistana de Conselheiros e Ex-Conselheiros Tutelares. Segundo ela, a desorganização impacta diretamente os atendimentos e dificulta as investigações. “Causa danos gravíssimos. Temos uma adolescente que passou por estupro de vulnerável, recebemos ofício da delegacia solicitando informação e simplesmente não encontramos a ficha dela.”
Em 2018, 963 crianças sofreram algum tipo de abuso sexual na cidade de São Paulo.
No Conselho Tutelar de Cidade Líder e Parque do Carmo, também na zona leste, cada conselheiro só sabe dos casos que atende. Cada um monta uma planilha da forma que entender melhor. O conselheiro Eduardo Tervedo me explicou que, por meio de sua planilha, consegue dizer quantos casos atendeu desde 2016, quando começou o mandato, mas não sabe exatamente que tipos de violência ou problemas as crianças atendidas pelo conselho da Cidade Líder mais sofrem. De cabeça, afirma que os casos de evasão escolar são maioria.
“Quando não tem esses dados, o conselho falha para cobrar o Poder Executivo sobre o papel de execução dessas políticas específicas voltadas à criança”, explicou Luciano Araújo, supervisor técnico de acompanhamento dos conselhos paulistas o desde outubro de 2018. Em Cidade Tiradentes, por exemplo, a prefeitura decidiu fechar dois abrigos e dois centros para a juventude. Os dois conselhos tutelares do distrito foram contra – mas não tinham dados e informações que comprovassem a necessidade desses equipamentos públicos na região.
A prefeitura diz que, de janeiro de 2017 a abril de 2018, foram realizados 91.418 atendimentos nos conselhos tutelares espalhados pela cidade. Mas Araújo duvida. Segundo ele, a realidade é que os conselhos nunca realizaram uma prestação de contas completa e nunca houve um procedimento real de cobrança desses dados. A Secretaria Municipal de Direitos Humanos e de Cidadania afirmou que fez um treinamento em 2019 para capacitar os conselheiros a usarem o sistema. Não parece ter surtido efeito.
O impacto do apagão
Quando chega uma denúncia de abuso sexual dentro da família, os conselheiros entram em contato com os parentes e pedem que seja feito um boletim de ocorrência. Se a família não faz, os conselheiros fazem. A vítima é, então, encaminhada ao hospital para fazer o exame de corpo de delito. Depois, o caso é denunciado a polícia, responsável pela investigação, e à justiça, que decidirá pelo afastamento ou não do agressor do convívio com a criança. Sem as informações organizadas, o processo é lento e, em muitos casos, inviabilizado.
“Quando um juiz pede informação se há evasão escolar de alguma criança, é preciso que todos os cinco conselheiros de uma unidade parem todo o trabalho para examinar arquivos de papel e compilar esses dados. Quando você precisa resgatar uma informação rápida, é uma dificuldade”, me disse Eduardo Dias de Souza Ferreira, promotor de justiça da infância e juventude de São Paulo. O Grupo de Atuação Especial de Educação do Ministério Público de São Paulo chegou a esperar oito meses para conseguir informações em uma unidade na região central da cidade.
‘Há pessoas que escolhem se candidatar a conselheiras tutelares por estarem desempregadas e simplesmente precisarem ganhar algum dinheiro.’
As fichas cadastrais e os relatórios de todos os atendimentos a crianças e adolescentes deveriam ser organizados no Sipia, sistema federal que já existe há 21 anos. O governo federal diz que tem cobrado a utilização do sistema, mas seu índice de utilização é pífio. Acre, Goiás, Piauí, Rio de Janeiro e Distrito Federal não o usam. Em São Paulo, só cinco dos 625 municípios – ou seja, só 0,8% – o utilizam.
Na segunda unidade do Conselho Tutelar em Cidade Tiradentes, na Cohab Prestes Maia, há conselheiros que têm dificuldade de escrita e que também não conseguem manejar o computador corretamente. “Há pessoas que escolhem se candidatar a conselheiras tutelares por estarem desempregadas e simplesmente precisarem ganhar algum dinheiro”, me disse a conselheira Isabel Mendonça. “Algumas têm grande dificuldade de escrita e até mesmo de interpretação do que estão ouvindo das pessoas que passaram por violência.”.
Embora os conselheiros possam se reeleger por tempo indeterminado, Isabel Mendonça me disse que, depois de oito anos, desistiu de concorrer ao cargo nas últimas eleições. Há casos em que a família minimiza a agressão e outros em que o poder público demorou três anos para encaminhar a criança ao Serviço de Proteção Social à Criança e Adolescente Vítima de Violência. A conselheira acredita que a proteção de crianças e adolescentes não é uma prioridade política. “Eu me sinto enxugando uma pedra de gelo enorme. Só vejo ela derreter na minha frente e não vejo saída. Pra mim já deu.”
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