Era uma vez uma garota preta na década de 1990 que vivia no Rio Grande do Sul, um estado majoritariamente branco. Em 2000, a proporção de negros no RS era de 6,6%, segundo o IBGE. Foi nessa região que uma garota negra, de família negra, estudante de uma escola particular em que a ampla maioria das crianças era branca, precisou compreender o significado de sua negritude, para si mesma e para os outros que a rodeavam.
Essa garota não se via na televisão. Quando brincava de ser uma paquita, colocava camisetas na cabeça, porque seu cabelo não era loiro, liso e escorrido como o das mulheres que apareciam nos programas de televisão. As meninas loiras podiam ser a Xuxa e as paquitas, a Angélica ou a Eliana, e as morenas podiam ser a Mara Maravilha. Já as meninas negras eram excluídas das brincadeiras, porque não eram nem de longe parecidas com nenhuma delas. Eu era essa garota. A primeira lembrança que eu tenho de ver alguém mais ou menos parecida comigo foi quando a Taís Araújo representou a Xica da Silva, na TV Manchete, em 1996.
Se você viu Xica da Silva, vai concordar que essa não é exatamente a referência mais positiva para uma criança negra de menos de dez anos (Xica era uma escrava que conseguiu a liberdade se casando com um ricaço no Brasil colônia).
As imagens na minha vida
Durante toda a minha infância e adolescência, procurei imagens na televisão que pudessem ser próximas a mim. Taís Araújo foi a primeira, depois veio Adriana Bombom, e a televisão a cabo trouxe as artistas norte-americanas Mel B, TLC e Destiny’s Child. Mas, com o tempo, entendi que nem mesmo essas mulheres representavam a pluralidade e multiplicidade das mulheres negras.
Eu entendi, lendo e vivendo, que aquela representatividade não era suficiente para alterar a estrutura de poder e dominação que o racismo articulava para que eu não fosse capaz de nomear a minha própria trajetória. Mas só consegui dar um nome a essa compreensão depois de ler a obra de Patricia Hill Collins, que participou de uma mesa que tive o prazer de mediar no último dia 16, em São Paulo.
Junto com o ativismo de minha mãe no movimento negro e as organizações de direitos humanos, as categorias e os conceitos desenvolvidos por Collins foram centrais para compreender que tipo de representatividade poderia ser realmente transformadora. E ela não era a representação com a qual eu estava acostumada.
As leituras das intelectuais do feminismo negro me ensinaram que a representatividade que aparecia na mídia não era suficiente. Nós precisávamos de uma outra representatividade, uma na qual não fôssemos a única pessoa negra na televisão, nas mesas redondas, nas capas de revistas — uma representatividade que estivesse para além da mídia e do controle estabelecido a partir de lugares pré-determinados para negras, que são sempre posições subordinadas, precárias, ligadas ao emprego doméstico, a um lugar desumanizado de mula da sociedade.
Se é verdade que a representatividade midiática de mulheres negras aumentou consideravelmente em tempos recentes, a ponto da ativista comunista Angela Davis ter sido elevada a imagem de um ícone pop, também é verdade que essa representatividade ainda está limitada a um controle de narrativa estabelecido pela branquitude. A própria Angela defende que a representatividade de mulheres negras deve estar articulada numa perspectiva coletiva.
Ao mesmo tempo em que reconhecemos a relevância das figuras singulares do ativismo intelectual de mulheres negras, como Angela Davis e Patricia Hill Collins, é preciso dizer que somos vozes múltiplas. Um eco retumbante que não se limita a uma voz, a uma única figura ou a uma mesma opinião repercutida inúmeras vezes como detentora do conhecimento e da agenda política de todas as mulheres negras.
‘Cancelar a formatura foi uma forma eficiente de limitar meu direito ao uso de minha própria voz.’
Quando eu era adolescente, fui escolhida para ser oradora de turma na formatura do ensino médio. Eu já era uma menina posicionada politicamente, que sabia muito bem qual era o impacto do racismo na escola. Meus colegas sabiam disso e sabiam o quanto essas questões eram importantes para mim — minha escola também sabia. E, não por coincidência, naquele ano a escola não teve cerimônia de formatura. Os diretores aparentemente não tinham nenhum problema com quem eu era e com as coisas que eu dizia em sala de aula, desde que elas não fossem ditas de um modo em que eles pudessem ser confrontados com o próprio racismo.
Cancelar a formatura foi uma forma eficiente de limitar meu direito ao uso de minha própria voz. Também foi uma forma de dizer que, se eu quisesse ser uma representante, teria que dizer as coisas de uma forma com que as pessoas brancas não se sentissem desconfortáveis. Eu queria muito representar a minha turma, mas eu também entendi que, para ocupar aquele lugar, eu teria que adquirir uma postura de deferência com os brancos que dirigiam a minha escola, uma postura que não me permitia ser crítica ao racismo.
A representatividade de ter uma jovem negra enquanto voz de uma turma de maioria branca só serviria se essa jovem estivesse disposta a dizer as coisas que a escola queria que fossem ditas. As coisas que eu tinha a dizer sobre os processos educativos racistas do ensino médio não eram o que a escola queria ouvir.
A representatividade, sobretudo midiática, foi uma reivindicação importante do movimento negro no Brasil especialmente por causa de crianças como eu, que não se viam na TV e que tinham toda a construção de sua autoestima determinada por essa ausência. O aumento da presença de mulheres negras na mídia, portanto, é uma resposta a essa reivindicação histórica, mas ainda se dá de forma controlada.
As instituições definem quem são as mulheres negras que podem falar e como elas podem falar. Quando uma mulher negra é incisiva em demonstrar que o racismo é uma estrutura que sustenta e legitima um sistema de dominação em que os brancos são beneficiados, essa mulher é lida como agressiva, raivosa e, portanto, não é ouvida e nem legitimada como uma voz protagonista do movimento de mulheres negras.
‘A representatividade que importa não é aquela que permite que eu apareça, mas aquela em que as mulheres negras tenham a chance de serem quem elas querem ser.’
Esses estereótipos, conforme aprendi com Patricia Hill Collins, são imagens de controle, uma ferramenta racista e sexista que visa controlar os corpos e o comportamento de mulheres negras. Uma representatividade mediada por imagens de controle, portanto, é uma arapuca das boas.
O perigo de uma representatividade que se dá a partir da denominação de uma voz única como modelo de toda a multiplicidade de vivências e experiências de mulheres negras se mostra quando a mídia e o poder escolhem uma única pessoa para representar essa pluralidade. O capitalismo capturou parte do discurso por representatividade e o moldou a partir das suas próprias demandas. Assim, a pauta da representatividade vira outra coisa, uma dimensão de um novo mercado em que o capitalismo pauta o que é válido e o que não é para a população negra. É permitido, por exemplo, emprestar nossos rostos e nossas pautas para tornar campanhas de publicidade mais plurais, mas não é permitido que falemos sobre como a indústria da beleza cria necessidades cosméticas que antes não tínhamos.
Muito se comemora quando uma mulher negra recebe a esporádica premiação do Oscar de melhor atriz. O que às vezes não percebemos é que essas mulheres recebem estatuetas por papéis que representam estereótipos construídos para controlar o corpo e o comportamento de mulheres negras.
Hattie McDaniel, a primeira mulher negra a receber um Oscar, ficou famosa representando mulheres negras empregadas domésticas servis, que ajudavam pessoas brancas de bom grado e que não tinham vida própria — a famosa imagem de controle da mammy, como é chamado esse estereótipo em inglês. Ser representada como uma empregada submissa, como uma mãe agressiva ou como uma mulher interesseira que ludibria homens a partir de seus atributos sexuais interessa a quem senão às lógicas que justificam a exploração histórica de mulheres negras?
É assim que surgem supostos representantes da negritude que, na ânsia de ser uma voz, acabam sendo a voz única. Ao serem voz única, silenciam todas as outras perspectivas que constituem a pluralidade da comunidade negra. Somos ativistas, mães, empregadas domésticas, professoras, atrizes, cantoras, algumas de nós são feministas, outras são mulheristas, muitas não estão preocupadas com definições a respeito de suas lutas por sobrevivência. Somos múltiplas e milhares de vozes que nem sempre ecoam na mesma frequência.
Comecei esse texto contando como foi a minha infância na década de 1990, uma infância em que eu não me via na televisão nem nas páginas de revista. Os frutos da luta por representatividade refletem em crianças e adultos do agora, mas é preciso cuidado. Olhar esse cenário com cautela é importante para que essa representatividade não signifique alguns poucos negros na mídia, outros poucos aclamados como intelectuais e mais uma meia dúzia na política. A representatividade que importa não é aquela que permite que eu apareça, mas aquela em que as mulheres negras tenham a chance de serem quem elas querem ser. Ou como aprendi com Patricia Hill Collins: uma representatividade que nos permita recuperar a nossa própria voz na busca por justiça social.
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