El Bosque é uma das 32 comunasque compõem Santiago e uma das menos cotadas entre os turistas que passam pela capital do Chile. Com casas baixas e ruas estreitas, herdeira das antigas poblaciones que a formaram, é bem diferente da imagem moderna que a cidade costuma deixar na memória dos viajantes. Ali, onde nem o metrô chega – e o de Santiago é o maior da América do Sul –, conheci Hugo González. Velho militante comunista, ex-prisioneiro político da ditadura de Augusto Pinochet, Hugo me recebeu em sua casa alguns anos atrás, para dar seu testemunho sobre a repressão que sentiu na pele.
Em uma das paredes de casa, ostentava um retrato de Fidel Castro e Camilo Cienfuegos celebrando a vitória da Revolução Cubana. Em outra estante, uma imagem de Salvador Allende com a faixa presidencial. Era 2012 e Hugo me contava o que havia ocorrido quase 40 anos antes, quando foi pego na rua durante o toque de recolher imposto pelos militares e passou, pela primeira vez, pelos centros de detenção da ditadura. Mas também fazia comentários sobre a atualidade. Ainda gostava de protestar. “Sigo sendo comunista”, dizia com certo orgulho. “Mas não sou mais filiado ao Partido”.
Lembrei de Hugo González na última semana, conforme os protestos chilenos contra o aumento da passagem ganharam corpo e atingiram o ponto de ebulição na última sexta-feira, quando a situação se agravou definitivamente, o país entrou em estado de emergência e até o fantasma do toque de recolher voltou. Há quatro noites, os santiaguinos precisam voltar para a casa mais cedo, antes da hora determinada pelos militares, ou podem passar a madrugada detidos. Lembrei de Hugo nem tanto pela volta do toque de recolher, que o vitimou em outros tempos, mas por sua desilusão com a política partidária, compartilhada por muitos chilenos desde a redemocratização.
As medidas que o presidente Sebastián Piñera agora promete em resposta aos protestos, a contragosto e por ter sido colocado contra a parede, não respondem a demandas novas: são bandeiras antigas que atravessaram vários governos de centro-esquerda sem serem devidamente contempladas após a volta à democracia.
Heranças do general
Se o Chile chegou a esse ponto de convulsão social, é em grande parte pelas políticas iniciadas na ditadura, a privatização descontrolada de todos os aspectos da vida, mas também é pela forma com que a transição foi levada, receosa de tocar em algumas feridas. Nos anos 1990, com a sombra de Pinochet ainda presente na vida pública, a coalizão de centro-esquerda que governava o país manteve boa parte das estruturas intactas. Em nome da estabilidade política e econômica no curto e médio prazos, empurrava-se para o futuro a resolução de problemas mais profundos. Até a Constituição chilena, embora reformada em vários pontos, ainda é fundamentalmente a mesma ditada sob Pinochet em 1980 e aprovada em um plebiscito fraudulento.
O resultado foi que a Concertacióngovernou o país por mais tempo do que a própria ditadura durou (20 anos contra os 17 de Pinochet) e, embora tenha promovido uma série de reformas na direção do bem-estar social e avançado na reparação às violações de direitos humanos cometidas pelos militares, nunca chegou a desativar de verdade as bombas-relógio deixadas pela ditadura – as medidas radicais propagadas pelos Chicago Boys e que, no Brasil, tanto influenciam o pensamento de Paulo Guedes.
Agora, elas parecem ter explodido juntas e de uma vez só, mas são questões levantadas pela primeira vez há mais de 20 anos, e adiadas para outro século enquanto todos os outros indicadores eram positivos: a renda média e o IDH se elevavam, o PIB mantinha um crescimento quase ininterrupto, a desigualdade se reduzia ano a ano, e o Chile parecia destinado a ser o primeiro país desenvolvido da América Latina. O outro lado da moeda estava na própria desigualdade, que só caía tanto porque era altíssima para começo de conversa – a segunda maior da América Latina, atrás apenas do Brasil, ao fim da ditadura, e ainda hoje entre as maiores do mundo –, e os elevados custos de todos os serviços que, mesmo quando se mantiveram formalmente “públicos”, são pagos.
Tome-se a saúde, por exemplo: apenas 20% dos chilenos têm um plano privado, mas, mesmo para a maioria da população que não pode ou não quer mantê-los, há mensalidade para se utilizar o Fonasa, o mais próximo que o país tem de um SUS, criado pelo regime Pinochet em 1979 – um desconto fixo de 7% do salário, mais um valor pago por consulta ou procedimento, de acordo com a faixa de renda do usuário. A menos que o chileno viva em estado de pobreza extrema, única situação em que a lei garante isenção (e também o atendimento mais precário, reproduzindo a desigualdade), é preciso sempre passar pelo caixa do hospital. Como ocorre aqui, o sistema “público” também sofre com longas filas e falta de especialistas.
Na educação, os custos do ensino superior estão entre as maiores causas de endividamento entre jovens entre 15 e 29 anos. A dívida acumulada através dos chamados créditos com aval do estado se aproxima dos US$ 7,7 bilhões, valor que equivale a quase 2,5% do PIB do país. Mesmo na Universidade do Chile, uma instituição pública, a anuidade média ultrapassa os R$ 21 mil, podendo chegar a R$ 34 mil em cursos mais caros, como medicina. Os cursos passaram a ser pagos nos anos 1980, sob Pinochet. A luta por uma educação pública que também seja gratuita exemplifica a dificuldade de reverter as medidas da época da ditadura: os primeiros protestos estudantis massivos começaram em 2006, mas seriam necessários outros 12 anos até Michelle Bachelet anunciar um recomeço de gratuidade.
A pobreza dos velhos
Se os jovens se endividam pelo alto custo da educação, os mais velhos o fazem pela falta de recursos, devido às baixas aposentadorias. O outro grande elefante na sala do Palácio de La Moneda é o controverso sistema de pensões idealizado nos anos 1980 pelo então ministro do Trabalho, José Piñera, irmão do atual presidente, Sebastián Piñera. Trata-se do sistema de capitalização, em que o modelo “social” onde todos contribuem para um mesmo fundo nacional foi substituído por contas individuais. O modelo dos sonhos de Paulo Guedes para a reforma da previdência brasileira – que ainda não vingou por aqui, onde o texto aprovado ontem pelo Senado manteve a base do sistema atual, mas com regras muito mais rígidas quanto ao tempo de contribuição e à idade mínima para se aposentar.
No Chile, os resultados desastrosos da capitalização individual começaram a ser sentidos nos últimos anos, quando a primeira geração que contribuiu integralmente no sistema adotado em 1981 começou a se aposentar: obrigados a depositar 10% do salário para a pensão, mas sem contribuição complementar por parte do empregador ou do estado, a maioria dos chilenos chegou à velhice sem uma “poupança” suficiente para se manter. Muitos deles passaram boa parte da vida em empregos mal pagos ou informais, como reflexo da flexibilização das leis trabalhistas promovida pela ditadura, e hoje oito em cada dez pensionistas chilenos recebem abaixo do salário mínimo nacional. Os trabalhadores do país estão se aposentando com valores médios de 158,7 mil pesos chilenos mensais (R$ 884) em um país onde o salário mínimo bate nos 301 mil pesos (R$ 1.676).
A revolta aumenta quando se comparam com as pensões dos militares, que nunca aderiram ao sistema de capitalização imposto por Pinochet ao resto do país. Eles têm uma seguridade social própria e valores muito acima dos civis: saem da caserna ganhando, em média, 972,3 mil pesos mensais (R$ 5.415). Uma indignação resumida na troca de farpas que Daniel Jadue, prefeito de esquerda da Recoleta, outra comuna de Santiago, teve ao encontrar policiais militares nas ruas durante uma das manifestações da semana passada: “queremos o mesmo que vocês (têm)”.
Brasil e Chile: rebeldes na “bonança”
Desde que os protestos se agravaram, uma imagem muito utilizada na imprensa internacional se refere à suposta excepcionalidade do Chile frente aos vizinhos: se a ideia que o resto do mundo tinha do país andino era a de um paraíso, agora havia fogo às suas portas. A principal razão para isso? A crescente classe média do país que, apesar de todos os avanços das últimas décadas, não consegue dar o passo além, pois gasta o que tem para acessar serviços básicos que tenham alguma qualidade, como ocorre na saúde e na educação.
“O país cresceu em anos recentes. A pobreza está em seu nível mais baixo desde que há registro. Mesmo a desigualdade – uma característica tão própria do país – está em seus níveis históricos mais baixos”, escreveu o cientista político chileno Patricio Navia, da Universidade de Nova York. Para ele, a culpa não seria tanto do modelo econômico do país, mas da sua lentidão em se renovar: “os chilenos estão descontentes porque o país não avança o suficientemente rápido pelo caminho do crescimento econômico e o desenvolvimento com oportunidades iguais para todos”.
Se muito dessa leitura parece familiar, é porque vimos interpretações semelhantes no Brasil de junho de 2013. Hoje, mais de meia década de depressão econômica, social e política mais tarde, ficou mais difícil de lembrar que, naquele momento, também apresentávamos os melhores indicadores sociais de nossa história: a desigualdade havia atingido seu nível mais baixo desde os anos 1960 (agora voltou a crescer), o país estava a ponto de deixar o Mapa da Fome (para logo reaparecer nele) e vivia uma condição próxima do pleno emprego (dispensável dizer onde estamos hoje nesta questão).
Vistas como óbvias em retrospecto, as manifestações de 2013 pareciam um paradoxo ao primeiro olhar. Na época, o Financial Times argumentava que essa parte da população, que podia “consumir como nunca”, ainda não havia visto melhorias em outros setores: pagava caro por serviços de má qualidade. “A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais”, resumia o filósofo Paulo Arantes.
Aqui, como no Chile, havia o impulso de uma nova e descontente classe média, que viu a vida melhorar, mas agora queria mais – e não conseguia dar o passo além. O estopim foi o mesmo, um aumento nas passagens do transporte se somando ao resto, e as causas subjacentes são bem parecidas: o tanto que se gasta para ter acesso ao que deveria ser básico. Aqui, na forma de impostos elevados que pareciam não trazer o devido retorno. Lá, no país onde o estado se desfez de quase tudo, pelas altas taxas que financiam serviços que, mesmo nominalmente públicos, operam como privados – quando não estão inteiramente privatizados, como a água e a energia, cujos custos elevados também apareceram entre as bandeiras das manifestações.
Ontem, em uma tentativa de apaziguar os protestos, Piñera respondeu com uma série de propostas que, se levadas adiante, finalmente começariam a desmontar a pesada herança social da ditadura: 1) reajuste e ampliação das chamadas pensões solidárias, que contam com aporte estatal, 2) ampliação do convênio do Fonasa, 3) criação de um seguro que permita às famílias não gastarem com saúde além de um teto definido pelo governo, 4) garantia de um complemento salarial para trabalhadores que recebem valores insuficientes, 5) redução da tarifa de energia elétrica, entre outras promessas que aprofundariam a responsabilidade do estado sobre questões adiadas nas últimas duas décadas.
Da promessa à concretização há um longo caminho. Mas, se o pacote sair do papel, o Chile veria um aumento das redes de subsídios e proteção social dizimadas pela privatização descontrolada dos anos 1980 e que nenhuma reforma da democracia conseguiu reconstruir por inteiro. Faria isso, curiosamente, sob um presidente conservador, que provavelmente nem tocaria nessa agenda se não fosse acossado pelas ruas. Em um surpreendente (mas não inesperado) movimento de contramão, o Brasil indignado nos protestos de 2013 desembarcou, seis anos mais tarde, com um governo que queria imitar o Chile. Agora, porém, os chilenos parecem ir às ruas querendo ser um pouco mais Brasil pré-crise.
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