Alguém pode realmente se sentir feliz quando tudo à sua volta está em estado de devastação e miséria?
Essa pergunta tem assediado os consultórios de psicanalistas e terapeutas desde que as eleições de 2018 criaram uma nova atmosfera de afetos e perspectivas.
Momentos sombrios criam uma espécie de recolhimento defensivo. Você tende a se contentar com menos, reduzindo expectativas e comparando sua própria vida com a infelicidade alheia. O futuro se encurta, o passado se torna um pesadelo de bons momentos agora perdidos. Os detalhes e insignificâncias, aos quais se apega nossa miséria neurótica, são fonte de irritação e contrariedade permanente. A alternância entre dores e prazeres se torna tediosa como um longo caminho que não leva a lugar algum.
A retórica da insegurança e da ameaça baseada em inimigos internos e imaginários, levada a cabo pela ascensão de Bolsonaro, parece ter nos convencido de que buscar a felicidade é uma tarefa luxuosa demais em tempos nos quais a sobrevivência já é por si um grande valor. O medo reduz a curiosidade e nossa orientação para o risco, como bem sabem os economistas. Mas eles ignoram que o medo nem sempre é combatido apenas com regras claras e estáveis.
O fator político da felicidade não depende apenas da negação do medo. Ele envolve uma espécie de confiança relacional, ou seja, nem a aposta egoísta em si mesmo, nem a esperança altruísta nos outros, mas a perspectiva de que, para o bem e para mal, estaremos juntos na jornada de felicidade que inventamos para nós mesmos. Quando isso acontece, tudo pode terminar mal, mas terá sido, mesmo assim, uma boa viagem.
Durante a campanha eleitoral de 2018 nunca se falou tanto em política nos divãs: relações perdidas, famílias partidas, amores interrompidos e sobretudo decepções. Depois disso, sobreveio um tempo de luto e silenciamento, em meio a contagem de mortos e feridos. Mas não foi como nas outras vezes nas quais a política desapareceu, nas brumas do passado, como final do campeonato ou último capítulo da novela.
Desta vez, a renovação da tarefa da felicidade se tornou um peso e um fardo, quando não uma obrigação sem sentido. É como se assistíssemos, impotentes, a felicidade queimar na Amazônia em chamas, escoar pelo ralo da Lava Jato, humilhar-se em nosso passado de tortura glorificado sem decoro, embrutecer-se na ciência faminta que restou nas universidades.
Involuímos nosso padrão de felicidade. Isso se explica pelo caráter dual do discurso do presidente, que se capilariza nas relações cotidianas de autoridade e poder. Por um lado, trata-se de uma caçada e de uma intimidação aos demasiadamente felizes: os que mamam nas tetas do governo, os que fazem cocô demais, os corruptos privilegiados, os que praticam goldenshower, os intelectuais, professores e artistas.
Por outro, temos a felicidade compulsória, justa e “como deve ser”, passada a limpo e lavada a jato. Aqui emerge a ideia de que todo mundo deve gozar do mesmo jeito, e esse jeito é conforme o tamanho de seus meios e de suas posses. Logo, quem tem mais goza mais, quem tem menos, goza menos. Aqui a felicidade assume um gosto obsceno da falsa justiça, da justiça feita com as próprias mãos, também chamada de vingança. O que caracteriza esse tipo de felicidade é a relação de posse, de uso e de abuso com relação aos meios. Se eu tenho um chicote, por que não usá-lo? Talvez isso explique porque os níveis reais de criminalidade caem enquanto a percepção social de insegurança cresce.
Mas o verdadeiro cavalo de pau na felicidade brasileira veio em função do fator tempo. A promessa de que ações diretas trariam resultados rápidos para uma massa agonizante, assim que a torneira da corrupção fosse fechada, foi gradualmente substituída por números pífios da economia, devastações ambientais, regressões na educação e na cultura, sem falar na névoa de corrupção que começa a se insinuar por entre bravatas e vergonhas presidenciais.
Os sismógrafos psicanalíticos voltaram a tremer na segunda-feira, 19 de agosto, quando as trevas se formaram nos céus de São Paulo. A atmosfera é um fator potente para a felicidade miúda, como se vê nas depressões sazonais, nas alegrias de primavera ou nos amores de verão. A natureza ainda encerra uma mensagem que nos submete a todos como uma espécie de lei geral. Se cada época tem a felicidade que merece, naquela segunda-feira sombria de agosto pudemos realizar a equação que nos levou do desastre, no passado recente, ao futuro de devastação ambiental, por meio de nossa própria vontade e voto.
Diante dele o argumento de que “ao menos” não temos pessoas parasitando ou se aproveitando de nós, defendido por Bolsonaro e seus eleitores durante a campanha, está se tornando pequeno e gasto demais. Depostos inimigos, o que fazer com o deserto? O que fazer com a ingratidão sombria, o sentimento de que o mundo e “as pessoas” se apequenaram em suas covardias justas ou ressentidas, escondidas em suas neutralidades suspeitas?
Para recriar alguma felicidade em tempos sombrios proponho aqui um roteiro em três passos:
Autocrítica não é culpa
Quando os aliados bombardearam impiedosamente Hamburgo ou afundaram um navio após outro no porto alemão de Danzig (atual Gdansk), minha avó assistia a tudo isso, segurando seu filho de nove anos, futuramente meu pai, e só tinha um pensamento: “nós merecemos”.
Talvez a felicidade reconstituída comece pela lucidez realista e implicada. Mas implicação não é culpa. A culpa muito frequentemente é uma maneira de localizar a causa, não de reverter seus efeitos.
Pensemos aqui no marido que trai a esposa e precisa confessar para ela depois, simplesmente para se livrar da culpa, não para reparar sua deslealdade. A culpa é um verdadeiro fermento moral da irresponsabilidade, pois, frequentemente permite que possamos nos penitenciar, geralmente de forma sádica, vingativa ou cruel, para logo em seguida estar “limpos” para pecar de novo. Nem sempre a culpa nos transforma, a maior parte das vezes ela apenas faz com que encontremos explicações para nos evadirmos da responsabilidade de consertar os efeitos de nossos atos, ou de nos implicarmos em fazer melhor da próxima vez.
A felicidade é realista, ou não será. Por isso se diz que aquele que não puder encontrar a mais melancólica tristeza no abismo de si mesmo jamais será realmente feliz. Os desavisados, os possuídos pelas massas digitais, os isentos inconsequentes, os militantes que não chegaram junto nos últimos votos, os que não souberam prezar as alianças e os que se apaixonaram por elas, os que acharam que era “só um jeito de dizer” e 10% de convictos – enfim todos nós, sem exceção, agimos, deixamos de agir ou deixamos os outros agirem. Estamos todos implicados no presente que nós criamos. Das desculpas rameiras jamais adveio felicidade alguma.
Não deixe seu desejo ser subornado pela esperança
Segundo passo: é preciso superar o estado no qual nos deixamos chantagear pela esperança. Ninguém tem que nos oferecer nada, nem nos convencer que a vida vale a pena ou que há luz no final de túnel. Lacan dizia que era muito importante não envenenar ainda mais o depressivo com esperanças, ou seja, com ilusões improdutivas.
Esperança é efeito do desejo, não a sua causa. Aposente a conversa sobre otimismo ou pessimismo, deixe isso para os pequenos moralistas e o coaching. Seria preciso reconstruir a felicidade por uma certa reconciliação com o fato que o desejo não pode ser condicionado a nada. Neste momento, a névoa de culpa e as sombras do medo cedem lugar para a descoberta de que é nesta hora mais escura que podemos reconhecer quem são, afinal, aqueles com quem podemos contar.
Ninguém precisaria dar motivos ou razões para que nós nos implicássemos em nosso desejo, pois aquele que está nesta posição de espera – aliás de onde vem a palavra esperança – está de saída subornado pelo outro. Por isso, também o desejo opera melhor em estado de solidão produtiva e intransigente do que na massa turbulenta. Quando percebemos que entregamos nossos mais preciosos sonhos em troca de palavras vazias, da ilusão de uma felicidade fácil e inconsequente, há pelo menos um benefício. Aprendemos que a felicidade custa caro, e que perdê-la é como perder a liberdade.
Autocrítica e vergonha são melhores companheiros para escrever a história do que culpa ou esperança.
Antes ela parecia gratuita e sem custo, mas que agora, sua ausência nos aparece asfixiante. Esta é a grande lição que os piores momentos nos deixam: autocrítica e vergonha são melhores companheiros para escrever a história do que culpa ou esperança. Essa moral da resistência é importante para sonhar com uma felicidade que não seja merecimento divino ou graça recebida de padrinhos mágicos e que, portanto, pode nos ser tirada por tiranos de ocasião.
Felicidade é encontro precioso e raro, não estado de beatitude. É uma conquista e uma tarefa para cada qual, exatamente como a felicidade menor e a moral do sobrevivente: contente por estar vivo. Isso também passará, diz o ditado judaico.
Cultive sonhos antes que eles virem pesadelos
Mas a verdadeira felicidade só será restaurada pela capacidade de sonhar. E sonhos são feitos da mesma fina poeira que recobre a realidade e dá forma às trevas. Esta sutil matéria chamada felicidade é feita de pessoas, qualidade de experiência e tempo.
Geralmente, achamos que, para desejar, é preciso causas relevantes, motivos importantes ou razões de ordem superior. Mas a felicidade no desejo é amiga da falta e do respeito com a escassez. Freud falava em “técnicas de felicidade” cujos maiores exemplos são o trabalho coletivo, o amor e a criação estética. Evite os tipos menores como a fuga delirante da realidade, o refúgio na fantasia neurótica ou a anestesia tóxica. O desejo não desperta quando nos livramos do sofrimento, essa conjectura virtual e enganadora, depois da qual a vida afinal começará.
O desejo não desperta quando nos livramos do sofrimento, essa conjectura virtual e enganadora, depois da qual a vida afinal começará.
O desejo do novo vem quando escutamos seu percurso de formação, que sempre fala baixo, mas que, quando aparece, vem com a força de algo que sempre esteve aí. Por isso é importante ater-se ao seu “grow onírico”, ou seja, pequenos sonhos, mas cultivados com carinho e continuidade, no tempo longo em que as coisas começam de novo.
Cada um encontrará o momento em que decretamos o fim do luto e o novo começo, uma espécie de marco zero para a retomada. E ela virá do trabalho alternado de decifração do passado e de criação de futuros mais longos do que quatro anos.
Passar tempo com pessoas queridas, cultivar alguma gratidão, qualificar prazeres e sabores podem, lentamente, transformar o medo e culpa na raiva e coragem necessárias para mudar a si e ao mundo. Experimente intensamente o momento presente, em sua infinita tragédia e devastação. Lembre-se de cada passo que nos trouxe até aqui, agora com sobriedade e distância.
Se for para resumir em uma palavra: estude.
Estude como sua própria história se combinou com a de todos nós. Se for para resumir em uma palavra: estude. Aprenda como um monge copista na Idade Média. Leia como um inveterado romântico ou como um beatnik dos anos 1960. Entenda que estamos diante de uma época de ignorância, com pessoas presas às suas sombras, como na Caverna de Platão.
Aprenda com os resistentes da Matrix, com os replicantes de Blade Runner. Certifique-se, como os próprios olhos, que Jesus não é isso que está sendo vendido por aí, atrás de uma arma ou em cima de uma goiabeira, e nem Newton foi aposentado pela terra plana. Lembre-se que não há saber sem amor e que se você trocou seus sonhos por bijuteria é porque não estava cuidando muito bem deles.
Evite sobretudo as ilusões reativas que nos trouxeram até aqui, movidos por um futuro feito de felicidade fácil a preço módico, muita ignorância e justiça feita às pressas.
Quando acordar para vida, na próxima vez, pise com cuidado, porque o peso da sua felicidade faz parte do sonho de todos nós.
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