“Segredos Oficiais”, que estreia na quinta-feira, dia 31, no Brasil – nos Estados Unidos, saiu em agosto – é o melhor filme já feito sobre as circunstâncias que antecederam à Guerra do Iraque. Admiravelmente preciso e fiel aos fatos, o longa deixa o espectador com uma sensação de desânimo, esperança e raiva – tudo ao mesmo tempo. Imperdível.
Muitos já esqueceram, mas a Guerra do Iraque e suas abomináveis consequências – centenas de milhares de mortos, a ascensão do Estado Islâmico, o caos na Síria, e talvez até a presidência de Donald Trump – por pouco não aconteceu. Nas semanas anteriores à invasão – iniciada em 19 de março de 2003 –, a campanha dos EUA e do Reino Unido a favor da guerra parecia fadada ao fracasso. O lobby dos falcões anglo-americanos era um velho calhambeque caindo aos pedaços, prestes a dar seu último suspiro.
Naquele breve momento, a diplomacia de George W. Bush parecia ter chegado ao limite de suas forças. Seria extremamente difícil os americanos invadirem o Iraque sem o apoio dos ingleses, seus fiéis escudeiros. Mas, no Reino Unido, a ideia de declarar guerra sem o apoio do Conselho de Segurança da ONU era extremamente impopular. Além do mais, agora sabemos que Peter Goldsmith, procurador-geral britânico, havia dito ao então primeiro-ministro Tony Blair que a resolução aprovada pelo Conselho de Segurança contra o Iraque em novembro de 2002 “não autoriza o uso da força sem uma nova determinação do Conselho”. Michael Wood, principal conselheiro jurídico da pasta de Relações Exteriores do Reino Unido, fora ainda mais duro: “Usar a força sem a autoridade do Conselho de Segurança seria um crime de agressão”. Ou seja, Blair precisava desesperadamente da anuência da ONU. Para a surpresa geral, porém, o Conselho de Segurança, composto por 15 países, teimava em resistir.
No dia 1º de março, o jornal britânico The Observer jogou uma bomba numa situação que já era extraordinariamente tensa: o vazamento de um e-mail datado de 31 de janeiro e assinado por um alto funcionário da NSA, uma agência de espionagem norte-americana. Falava-se em grampear as delegações dos países membros do Conselho de Segurança – “com exceção dos EUA e do Reino Unido, é claro”, brincava ele no e-mail – e de outros países não-membros que pudessem fornecer informações úteis.
Isso provava que Bush e Blair estavam blefando quando afirmavam querer que o Conselho de Segurança votasse uma resolução definitiva sobre o assunto. Eles sabiam que eram minoria. Embora reivindicassem a necessidade de uma invasão no Iraque para preservar a eficácia da ONU, ambos os líderes não tinham escrúpulos em pressionar – e até chantagear – seus colegas no Conselho de Segurança. E o fato de isso ter vazado demonstra que o plano da NSA era esdrúxulo o suficiente para que alguém de dentro da labiríntica comunidade de inteligência arriscasse a própria pele para denunciá-lo.
Esse alguém era Katharine Gun.
Interpretada com maestria por Keira Knightley em “Segredos Oficiais”, Gun trabalhava como tradutora na Sede de Comunicações do Governo – a equivalente inglesa da NSA. À primeira vista, “Segredos Oficiais” é um simples filme de suspense. Nele, vemos como Gun teve acesso ao e-mail, por que e como o vazou, por que confessou logo em seguida, as terríveis consequências que enfrentou e a singular estratégia jurídica que obrigou o governo britânico a retirar todas as acusações contra ela. Na época, Daniel Ellsberg, autor de um vazamento de documentos secretos do Pentágono nos anos 1970, disse que os atos de Katharine Gun haviam sido “mais oportunos e importantes do que os Pentagon Papers”, e que “revelações como esta podem impedir uma guerra”.
Mas o filme vai ainda mais longe e, de forma mais sutil, faz a seguinte pergunta: “Por que o vazamento não fez diferença?” Sim, é verdade que o escândalo aumentou a oposição aos EUA e ao Reino Unido no Conselho de Segurança, que nunca chegou a deliberar novamente sobre o Iraque, pois Bush e Blair sabiam que seriam derrotados. Mesmo assim, o primeiro-ministro inglês conseguiu o apoio do Parlamento britânico para a guerra algumas semanas mais tarde.
A grande resposta para a pergunta acima, tanto no filme quanto na vida real, está na grande mídia dos EUA. “Segredos Oficiais” desnuda a desonestidade intelectual da imprensa americana, que se prontificou a ajudar seus queridinhos no governo Bush, protegendo-os do escândalo.
É fácil imaginar como a história poderia ter sido diferente. Os políticos britânicos, assim como os americanos, não gostam de criticar as agências de inteligência de seus respectivos países. Mas a grande mídia americana poderia ter atraído a atenção do Congresso dos EUA se tivesse dado a devida atenção ao furo do Observer. Isso, por sua vez, seria um incentivo para que parlamentares britânicos se opusessem à guerra e exigissem explicações. O argumento a favor da guerra estava se desintegrando tão rápido que qualquer demora, por menor que fosse, poderia adiar a invasão indefinidamente. E se Bush e Blair insistiram tanto no assunto é porque sabiam disso.
No mundo real, todavia, o New York Times não publicou quase nada sobre o vazamento nas quase três semanas que antecederam a invasão. O Washington Post veiculou apenas um artigo de 500 palavras na página A17 – e com a seguinte manchete: “Relatório de espionagem não choca a ONU”. Da mesma forma, o Los Angeles Times publicou apenas uma matéria antes da guerra, cuja chamada já explicava: “Forjado ou não, há quem diga que não é nada de mais”. Entrevistado pela reportagem, um ex-alto funcionário da CIA chegava a levantar suspeitas sobre a veracidade do vazamento.
E foi justamente esse o argumento mais eficaz para neutralizar a reportagem do Observer. Como o filme mostra, em um primeiro momento a TV americana ficou muito interessada no vazamento. Mas os convites aos repórteres do jornal britânico cessaram quando o Drudge Report, um portal de notícias conservador, passou a espalhar a informação de que o e-mail seria obviamente falso. Por quê? Porque continha palavras escritas com a grafia britânica e, portanto, não poderia ter sido redigido por um americano.
Na verdade, o vazamento original usava a grafia americana, mas, antes de ser publicado, a equipe de apoio do Observer adaptara o texto à forma britânica, o que passou despercebido pelos repórteres. E os canais americanos, como sempre, curvaram-se à pressão dos ataques da direita. Quando a questão foi finalmente esclarecida, a mídia já não tinha o menor interesse em repercutir o furo dos ingleses.
Se o vazamento recebeu alguma atenção nos EUA, foi em grande medida graças ao jornalista e ativista Norman Solomon e à organização fundada por ele, o Institute for Public Accuracy, ou IPA (“Instituto pelo Rigor Público”, em tradução livre). Solomon havia estado em Bagdá alguns meses antes e era coautor do livro “Alvo: Iraque – o que a imprensa não contou“, publicado nos EUA no fim de janeiro de 2003.
“Eu senti uma afinidade instantânea – que eu poderia até chamar de amor – por quem havia se arriscado tanto para revelar o memorando da NSA. Só que eu não fazia a menor ideia de quem era aquela pessoa, é claro”, recorda Solomon. Pouco depois, ele assinou uma coluna, distribuída a vários veículos de imprensa, intitulada “Mídia americana se esquiva do caso de espionagem na ONU”.
Por que um jornal de peso como o New York Times não cobriu a pauta? Essa foi a pergunta de Solomon a Alison Smale, então editora da seção internacional do jornal. “Não é que não tivéssemos interesse”, respondeu Smale. “Só que não conseguimos nenhuma confirmação ou comentário [do governo sobre o e-mail da NSA]. Mas ainda estamos acompanhando. Não pense que não”, justificou.
O Times só mencionou Katharine Gun em janeiro de 2004, 10 meses depois. Mas não na seção de notícias. Devido à insistência do IPA, o colunista Bob Herbert se debruçou sobre o tema. Estarrecido com a indiferença dos editores, ele assumiu a apuração da pauta.
A esta altura, o leitor deve estar caindo no desespero. Mas continuem lendo, porque a parte mais inacreditável desta história ainda está por vir – algo tão complexo e improvável que nem sequer é mencionado no filme.
Por que Gun decidiu vazar o e-mail da NSA? Sua principal motivação só foi revelada por ela recentemente.
“Eu já tinha sérias dúvidas sobre os argumentos a favor da guerra”, conta ela, por e-mail. Desconfiada, Gun entrou em uma livraria, se dirigiu à seção de Política e comprou dois livros sobre o Iraque. Em um fim de semana, terminada a leitura, ela se convenceu de que “não havia provas de verdade que justificassem a guerra”.
Um dos livros era Iraque: plano de guerra – dez razões contra a guerra ao Iraque, de Milan Rai. O segundo era “Alvo: Iraque”, o já citado livro de Norman Solomon e Reese Erlich.
“Alvo: Iraque” foi publicado pela Context Books, uma pequena editora que faliu logo depois. Gun descobriu o livro de Solomon meras semanas após o lançamento. Poucos dias depois, no dia 31 de janeiro, o e-mail da NSA apareceu na caixa de entrada da tradutora, que logo soube o que fazer com ele.
“Fiquei atônito ao saber que ‘Alvo: Iraque’ havia influenciado a decisão dela de vazar o memorando. Eu não sabia como lidar com aquilo”, conta Solomon.
O que tudo isso significa?
Para jornalistas que levam o jornalismo a sério, isso significa que, por mais que se tenha a sensação de estar pregando no deserto, nunca se sabe qual será o alcance e o impacto sobre outras pessoas de nosso trabalho. Nem todos que trabalham nas instituições de poder são supervilões inacessíveis. A maioria são pessoas normais, que vivem no mesmo planeta que nós e que, como todo mundo, se esforçam para fazer a coisa certa. Sem saber, todo jornalista pode estar influenciando alguém a tomar uma atitude.
Jornalistas ou não, também podemos tirar outra lição desta história: não percamos as esperanças. Solomon e Gun lamentam profundamente o fato de terem feito de tudo para impedir a Guerra do Iraque, e ela ter acontecido assim mesmo. “Fico feliz por um livro que ajudei a escrever ter repercutido dessa forma. Mas, ao mesmo tempo, parece que nada disso fez diferença”, diz Solomon.
Para mim, contudo, o que Solomon e Gun fizeram – e outros ainda podem fazer – não pode ser visto como uma derrota. As pessoas que tentaram impedir a Guerra do Vietnã só tiveram sucesso depois que milhões já haviam morrido, e muitos daqueles escritores e ativistas também pensavam ter fracassado. Mas, nos anos 1980, quando certas correntes dentro do governo Reagan quiseram invadir países latino-americanos, a organização e a experiência de décadas de ativismo frustraram seus planos. É verdade que os falcões de Reagan tinham um plano B – o apoio a esquadrões da morte que mataram dezenas de milhares de pessoas –, mas bombardeios de saturação no estilo do Vietnã teriam sido muito piores.
Do mesmo modo, é verdade que Gun, Solomon e aqueles que lutaram para impedir a Guerra do Iraque falharam em seu objetivo imediato. Mas quem estava prestando atenção na época sabia que o Iraque era apenas o primeiro passo dos planos de conquista do Oriente Médio pelos EUA. E eles podem não ter evitado a Guerra do Iraque, mas, pelo menos até o momento, ajudaram a evitar a Guerra do Irã.
E é por isso que “Segredos Oficiais” é imperdível. Poucos filmes retratam tão bem o que é estar diante de um verdadeiro dilema moral e tentar fazer a coisa certa. Mesmo em dúvida. Mesmo com medo. Mesmo sem a menor ideia do que vai acontecer em seguida.
Tradução: Bernardo Tonasse
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