A última vez que vi Marielle era Carnaval. Quando cheguei no beco das sardinhas, famoso reduto do samba e boemia no centro do Rio de Janeiro, ela já estava lá. Na mão, adesivos da campanha contra assédio “não é não”. O ambiente era ótimo. Cerveja, sol, samba, alegria. 100% Rio de Janeiro. Tão Rio de janeiro quanto ser executada pela milícia.
Naquele início de 2018, a gente não fazia ideia do que estava por vir – em todos os aspectos possíveis. Passou o Carnaval, vida que segue. E Marielle seguiu. Na noite de 14 de março, ela estava num evento que eu assistia pelo Facebook, enquanto trabalhava no Fogo Cruzado, plataforma que mapeia tiroteios e disparos de arma de fogo na região metropolitana do Rio. Era 21h36 quando dei o alerta de tiros nas proximidades da Praça da Bandeira. Exatos 15 minutos depois recebi um zap: “mataram uma vereadora do PSOL e seu motorista agora”.
600 dias depois, aquele dia não acabou.
Novembro chegou e com ele o que chamamos de “mês da consciência negra” – algo que deveria ser diário, ela acreditava. Se estivesse aqui, reclamaria dos muitos convites e atividades concentrados nestes 30 dias, coisas que deveriam ser discutidas e faladas o ano inteiro. Mas também não perderia uma agenda. “Temos que ocupar os lugares”, ela diria.
A imagem festeira de carnaval é complementada por uma imagem que rodou o mundo: aquela mulher forte, altiva, destemida, dura, era também, Marielle.
Um monte de gente que não conhecia Marielle achou ruim que as muitas pessoas que conheciam Marielle – e o que ela representava – chorassem sua morte. “Como assim essa pessoa que eu nunca vi, que diz coisas com as quais não me importo, mobiliza tanta gente?”
O que vimos depois de sua morte é um resumo do que podemos ter de pior como sociedade e como poder público: inábil nas tarefas mais simples e, ao mesmo tempo, empenhado no que há de mais sórdido.
Além da avalanche de notícias falsas que tinham como único objetivo justificar sua execução e destruir sua biografia, tivemos, do lado da “justiça” autoridades empenhadas em destruir a memória e minimizar o legado de Marielle. Logo depois do assassinato, uma desembargadora afirmou –- sem nenhuma prova –- que a vereadora “estava engajada com bandidos“. Na campanha eleitoral, um ex-juiz e candidato a governador quebrou uma placa que homenageava Marielle. Agora, descobrimos que uma promotora que atua no caso e que não se exime de demonstrar seu desprezo por aqueles que chama de “esquerdopatas” fez campanha para o candidato que defende “fuzilar a petralhada”. Que justiça podemos esperar?
É esse lado do sistema de justiça que costuma ser defendido – e repetido – por quem reclama da morosidade da justiça, pede o endurecimento das leis, a prisão dos vagabundos e diz que não aguenta mais ser refém da bandidagem. Tanta contradição em tão pouco espaço.
“Morrem mais de 60 mil por ano no Brasil! Por que vocês só falam disso”, dizem, minimizando o assassinato de Marielle. Eu explico: nós falamos disso exatamente porque a execução dela é o resumo da falência de tudo.
O caso Marielle mostrou um sistema de justiça contaminado.
Os órgãos de fiscalização que não se movem – Alô CNMP! A polícia que “perde provas“. A perícia que despreza procedimentos. A promotoria que corre com laudo porque tem uma coletiva de imprensa. O delegado da Polícia Federal que tenta extorquir um dos acusados e é acusado pela Procuradoria-Geral da República de obstruir investigações. A PM e sua advogada que mentem em depoimentos. O delegado da Polícia Civil que é mandado pra fora do país “para estudar“. E as pessoas pressionadas a confessar. E isso acaba como? Com a investigação da Polícia Civil sendo investigada pela Polícia Federal.
No fim, a Procuradoria-Geral da República chegou à conclusão de indiciar um conselheiro do TCE-RJ, um agente aposentado e um delegado da PF.
Isso é um resumo de todos os elos que os acusados de apertar o gatilho contra Marielle Franco e Anderson Gomes têm com a política e com a polícia. E é isso que faz com que o sistema político-jurídico seja como é: a engrenagem da manutenção de tudo o que está aí – e que todos reclamam o tempo todo.
Como não ligam lé com cré? Ou ligam e realmente acham que este sistema operaria em seu favor? Quando atentam contra uma representante do poder público é o fim da linha. Pessoas como Marielle morrem porque antes dela mataram mais de uma dezena de políticos no Rio de Janeiro e também ninguém se importou. E como não se importam com isso, também não se importam de verdade com a apuração dos mais de 50 mil mortos em 2018.
Marielle são muitas e muitos.
“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?” – Marielle Franco
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