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‘Uma lama densa descia como um tsunami’: bombeiro relata em novo livro resgate de Mariana

Trecho de “Além da Lama” escrito pelo bombeiro Leonard Farah, que liderou resgate de vítimas do rompimento da barragem da Samarco em Mariana, em Minas Gerais, há quatro anos.

'Uma lama densa descia como um tsunami’: bombeiro relata em novo livro resgate de Mariana

‘Uma lama densa descia como um tsunami’: bombeiro relata em novo livro resgate de Mariana

Bombeiro durante o resgate aos sobreviventes após rompimento da barragem da Samarco em 5 de novembro de 2015.

Foto: Christophe Simon/AFP via Getty Images

*O relato completo de Leonard Farah está em “Além da lama”, livro que a Editora Vestígio lançou nesta semana, quatro anos após o desastre.

Eu ainda estava cursando o mestrado em engenharia geotécnica na Universidade Federal de Ouro Preto, que me deu muito conhecimento nessa área. As matérias já tinham acabado e chegava a temível fase de escrever a dissertação. Por isso, naquele dia, eu pretendia pegar vários arquivos relacionados à barragem da Herculano para subsidiar o meu trabalho e o curso que se aproximava. Eu já tinha ouvido falar de alguns acidentes com barragens em Minas Gerais, mas quando comecei a estudar o assunto mais a fundo, vi que na realidade eles eram muitos. Em 2001, houve um acidente grande em São Sebastião das Águas Claras, cidade conhecida como Macacos, no qual cinco operários morreram. Em 2003, ocorreu um rompimento em Cataguases e, em 2007, em Miraí. Estes dois últimos não resultaram em mortes, mas o impacto ambiental foi enorme, e consequências indiretas se seguiriam ao longo de anos. Em 2014, fomos empenhados em um acidente dentro de uma mineradora em Itabirito, na Mina do Pico, onde um funcionário havia ficado soterrado em um túnel. Não se tratava de um rompimento de barragem, mas nesse dia eu percebi que o potencial de acidentes naquela área era enorme.

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Eu não apenas estava certo como também em setembro daquele mesmo ano fomos acionados por causa do rompimento da barragem na mineradora Herculano. Não era para menos, o estado de Minas Gerais, conhecido por seu queijo, é ele próprio praticamente um queijo suíço, se levada em conta a quantidade de barragens de mineração espalhadas no interior de suas divisas. Eram mais de 650 barragens, sendo 425 pertencentes à mineração. Nesse cenário, o potencial para acidentes é alto, e a preparação dos bombeiros se faz extremamente necessária, caso precisem agir. Eu investia meu tempo no estudo desse assunto, para que pudesse encontrar as melhores soluções para esse tipo de ocorrência. Atualmente, são catalogadas cerca de 700 barragens em Minas Gerais. Entre elas, mais de 400 são de rejeitos de minério, incluindo uma das maiores do mundo, localizada na cidade de Paracatu.

Tiago chegou a me mostrar na tela do aparelho que era o coordenador do Centro de Operações de Bombeiros, o Cobom, que é onde os chamados de emergência caem quando as pessoas discam 193. Não era comum o coordenador ligar para o celular do oficial de serviço do nosso quartel. Geralmente, quando ligava, não era sobre ocorrências, e sim por algum estresse por causa de escala errada ou para avisar que uma viatura estava baixada, sem condições de atendimento, coisas desse tipo.

Capa do livro “Além da Lama”, de Leonard Farah.

Enquanto Tiago atendia o coordenador, fui ler as mensagens do grupo de WhatsApp no celular. Quando voltei os olhos para o Tiago, a cara dele deixava transparecer que alguma merda tinha acontecido. Ele deu dois tapas no meu ombro e falou:

– Rompeu uma barragem da Samarco!

Ainda tentando entender, eu disse:

– O quê? Tá de sacanagem, né? Onde?

Quando olhei o telefone de novo, tinha uma mensagem do Júlio César, meu colega de curso e comandante do pelotão de Ouro Preto, dizendo a mesma coisa. Olhei para o Tiago novamente, que ainda estava ao telefone, ouvindo o que o coordenador falava. Ele mexia os lábios sem voz, para que eu fizesse a leitura labial:

– Mais de cem vítimas! Em Mariana! Rompeu em Mariana!

Eu precisava que os militares de folga se deslocassem para o quartel com urgência. Pedi o apoio inicial de 15 militares, mas que o restante aguardasse. Eu não poderia pedir todo mundo, pois ainda não sabia a dimensão do que realmente tinha acontecido. Nós poderíamos ficar lá uma semana ou um mês, mas, para isso, eu tinha que chegar ao local para ver o que estava acontecendo.

Nesse meio tempo o tenente Tiago disse, fazendo um gesto com a mão, como que me pedindo para esperar:

– Parece que não tem vítima.

Não entendi nada. Pela nossa experiência, dificilmente uma barragem que rompe não deixa vítimas. Logo em seguida recebi um áudio do Júlio dizendo:

– Farah, rompeu a barragem e soterrou um distrito inteiro. Distrito de Bento. E são barragens em cascata.

Na hora um turbilhão de pensamentos terríveis veio à minha cabeça. O mestrado tinha me dado conhecimento suficiente para saber que barragens que estão “em cascata” foram dimensionadas para suportar uma determinada quantidade de água ou rejeito, e o meu moral desabou mais ainda.

Quando Tiago desligou o celular, reuni a tropa e falei rapidamente:

– Se preparem para o pior. O Júlio disse que soterrou uma cidade inteira, e são barragens em cascata, quer dizer que outras podem se romper. Outra coisa, o rejeito é tóxico, por isso, em hipótese alguma, vocês podem entrar em contato com ele.

As informações não paravam de chegar via rádio e via telefone, mas nenhuma delas era totalmente confiável. Naquela altura já não sabíamos o que era verdade e o que era especulação. Mas assim que chegou a informação, pelo Cobom, de que uma escola com mais de cem crianças estava soterrada, um silêncio terrível tomou conta de todos nós, e nem havíamos saído ainda. Uma escola infantil soterrada, e nós sem podermos fazer nada. Ao longe começávamos a ouvir o barulho das aeronaves e já estávamos em condições de embarcar. Ferreira, Magela, Magalhães e Menon estavam perfilados e abaixados para embarcar no helicóptero da Polícia Civil, enquanto Lopes, Henrique e eu estávamos prontos para o próximo helicóptero.

Quando o piloto do helicóptero da Civil deu sinal de embarque, eu dei um tapa nas costas de um por um para prosseguirem. Eu olhava nos olhos de cada um, e ninguém mais sorria, ninguém mais falava. Eu nunca tinha presenciado um clima tão tenso no quartel. Naquela hora eu tive certeza de que o bombeiro que dizia não ter medo só o fazia porque ainda não tinha vivido o que a gente viveu. Era algo nítido no olhar de cada um deles. Não era pavor, mas um certo medo do que iríamos ver, pois, por mais experiente que um bombeiro possa ser, ele nunca está preparado para encontrar uma escola infantil soterrada. Aquela não era uma situação qualquer; o desconhecido é sempre desconfortável para a mente, mas era preciso enfrentá-lo. O último tapa foi nas costas do soldado Magalhães, que foi correndo abaixado em direção ao helicóptero. Assim que todos embarcaram, fiz um sinal positivo para o piloto, que decolou.

O comandante da aeronave colocou potência no motor e já podíamos ver o quartel de outro ângulo.

Meu celular vibrava incessantemente. Consegui abrir uma foto antes de perder o sinal, e a imagem que vi me aterrorizou. Era uma vista aérea da extensão da barragem que havia se rompido.

Realmente não estávamos preparados para o que estava por vir.

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Vista aérea da lama que cobriu o distrito de Bento Rodrigues em Mariana, Minas Gerais, em 6 de novembro de 2015.

Foto: Christophe Simon/AFP via Getty Images

À medida que nosso helicóptero avançava no horizonte, a tensão aumentava em todos nós. Peguei a câmera e o celular para filmar, pois as imagens poderiam nos ajudar a rever ambientes, avaliar processos e até realizar estudos posteriores com o intuito de evitar novas tragédias. Vi que o celular já estava com a bateria bastante baixa e decidi desligá-lo para poupar a carga, pois não sabia o que estava por vir. Alguns minutos se passavam e, sob o sol forte, começávamos a ver uma poeira densa no horizonte. Ainda era cedo para falar que se tratava de algo, mas já percebíamos que aquilo não era normal. Mais à frente víamos o Carcará, o helicóptero da Polícia Civil. Provavelmente ele chegaria alguns instantes antes da gente. Eu era competitivo nesse sentido, gostava de ser o primeiro a chegar e o último a sair de uma operação. Mas a experiência mostrava que não era eu que determinava quando isso iria acontecer.

Do alto da aeronave as referências eram bastante diferentes de quando estávamos em solo, mas consegui avistar o que parecia ser o pátio de uma empresa e uma grande barragem à frente coberta por uma nuvem de poeira. Forcei a vista e vi algumas pessoas acenando lá de baixo. Sim, estávamos no local certo pelo agitar de braços. Mais à frente conseguimos ver uma lama densa que descia como um tsunami.

Vimos que o Carcará começou a perder altitude, e, de repente, a nuvem de poeira engoliu o helicóptero. O Carcará estava caindo!

Eu não podia acreditar naquilo. O helicóptero de resgate voava até lá para ajudar as pessoas, e algo que a gente nunca espera estava acontecendo: ele estava caindo. Os militares da nossa equipe poderiam se ferir na queda da aeronave, pensando na melhor das hipóteses. Mas, segundos depois, o helicóptero retomou a altitude e saiu da nuvem de poeira. O major Chinelato disse no fone:

– Pelo visto nós vamos pegar rabo nesse local.

“Rabo” era sinônimo de algo terrível. Sim, eu sabia que seria terrível, mas não imaginava que seria nesse nível. Veio o aviso do Carcará para que tomássemos cuidado com a baixa altitude, pois eles quase tinham caído. Mal deu tempo de nos recompormos daquele susto e logo veio uma imagem que eu jamais vou esquecer: era um verdadeiro mar de lama.

O que eu via era inexplicável. Na imensidão daquela poeira, surgiu um vale preenchido de rejeitos e, com ele, um cheiro muito intenso. Pensei logo – é rejeito tóxico, o que vamos fazer?

– Olha o cheiro do rejeito! Está muito forte! – eu disse para os outros na aeronave.

Eu não sabia se eles tinham a mesma noção que eu de como aquilo poderia atrapalhar a nossa operação. Dependendo do rejeito, não poderíamos nem pensar em chegar perto daquela lama.

Seguíamos o fluxo para ver o que encontraríamos mais abaixo, e o que vimos não foi nada agradável. Uma cidade debaixo da lama. Na parte alta, havia poucas casas. Mas na parte baixa, apenas telhados. Não pude guardar meu pensamento pra mim:

— Morreu gente demais, meu Deus.

Esse pensamento veio acompanhando de um sonoro:

— Puta que pariu! Que merda que deu aqui! — soltou o major Chinelato. – Isso parece coisa de filme. Isso é um desastre, velho! Como vocês vão fazer?

Eu sabia que ele não queria uma resposta para aquela pergunta, mas ela realmente me incomodou. O que iríamos fazer? Eu não sabia. Era muita coisa. Levaria dias, meses. E olha que eu ainda não fazia a mínima ideia do que estava por baixo daquela lama.

Eu via carros, muitos mesmo, e telhados inteiros sendo carregados. Estávamos voando em baixa altitude e, por isso, o major deu um alerta ao Carcará para que tomassem cuidado com o Pégasus em voo baixo. Consegui avistar um campo de futebol ao lado de um ginásio, parecia ser um bom local para pousarmos. No solo, várias pessoas agitavam os braços chamando o helicóptero.

Quando ele terminou de completar a frase, eu vi mais uma cidade e disse:

– Comando, olha lá. Às 2 horas!

Era uma pequena cidade, e as pessoas se agrupavam agora no campo de futebol, acenando. Será que elas estavam precisando de socorro? Será que estavam nos chamando para ajudá-las a sair dali? O major então começou a se aproximar, a descer cada vez mais com a aeronave, e foi então que me dei conta de algo terrível. Eram várias crianças brincando, rindo, dando tchau para o helicóptero. Elas não faziam a mínima ideia do que estava prestes a acontecer com elas.

– Major, elas estão rindo, dando tchau! Elas não sabem que a barragem rompeu!

– A gente tem que descer – veio o alerta de alguém de dentro da aeronave.

– Mas será que dá tempo de a gente avisar? – questionou o copiloto.

– A lama está logo atrás da gente – alguém disse, para que não esquecêssemos o estrago que ela estava provocando.

– A gente tem que descer. A gente tem que avisar – falei.

– Velho, vai dar merda, é muito arriscado. Eu não posso tomar essa decisão sozinho. Isso tem que ser uma decisão colegiada. A gente pode…

O major não precisou completar a frase para que todos nós entendêssemos o que poderia acontecer conosco. Na aeronave, a decisão é do comandante. Se ele decidisse que não pousaria naquele ponto, a decisão estaria tomada, da mesma maneira que se ele decidisse pousar, ele pousaria. Na verdade, o major já estava decidido a pousar, estava decidido a arriscar a vida dele por aquelas pessoas, mas ele não podia decidir se arriscaria as nossas vidas. O que ele queria ouvir era se estávamos preparados para morrer. Se estávamos prontos para dar as nossas vidas para salvar a vida daquelas pessoas lá embaixo.

Pensei no juramento que fizemos quando nos formamos: “Mesmo com o sacrifício da própria vida”.

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