Mulher negra, lésbica, feminista, mãe e poeta guerreira. Era assim que Audre Lorde fazia questão de se apresentar. A pensadora americana, filha de imigrantes afro-caribenhos nascida em 1934, passou seus 58 anos de vida sentindo-se uma forasteira. Em muitos ciclos feministas e LGBT, a realidade do racismo era negada; em parte da comunidade negra, a lesbiandade era uma traição à raça e, o feminismo, uma distração da luta antirracista. Negar-se a silenciar aspectos de sua identidade era, para Lorde, um ato político. E é a recusa ao silêncio que ela explora com maestria neste texto.
“E essa visibilidade que nos torna mais vulneráveis é também a fonte de nossa maior força”, afirma Lorde neste ensaio publicado com exclusividade no Intercept. Ele integra o livro ‘Irmã Outsider’ – forasteira, estrangeira – a ser lançado nesta quarta-feira, 27 de novembro, pela editora Autêntica. A coletânea de conferências e ensaios mais aclamada da escritora, publicada em 1984 nos Estados Unidos, é também seu primeiro título a chegar ao Brasil.
Toda a obra de Lorde, que morreu vítima de um câncer no fígado em 1992, é perpassada pela discussão do silêncio e suas quebras. “Quais são as tiranias que você engole dia após dia e tenta tomar para si, até adoecer e morrer por causa delas, ainda em silêncio?”, questiona. Em sua vida, afinal, eram muitos os silêncios a serem quebrados. Mas, como afirma poeta guerreira, seus silêncios nunca a protegeram. E os seus tampouco os protegerão.
Boa leitura.
Passei a acreditar, com uma convicção cada vez maior, que o que me é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado, mesmo que eu corra o risco de ser magoada ou incompreendida. A fala me recompensa, para além de quaisquer outras consequências. Estou aqui de pé como uma poeta lésbica negra, e o significado de tudo isso se reflete no fato de que ainda estou viva, e poderia não estar. Há menos de dois meses ouvi de dois médicos, uma mulher e um homem, que eu deveria fazer uma cirurgia nos seios, e havia 60% a 80% de chance de o tumor ser maligno. Entre receber a notícia e a cirurgia em si, vivi três semanas na agonia de reorganizar involuntariamente a minha vida inteira. A cirurgia foi um sucesso, e o tumor era benigno.
No entanto, durante essas três semanas, fui obrigada a olhar para mim e a refletir sobre minha vida com uma lucidez, penosa e urgente, que me deixou ainda abalada, mas muito mais forte. Muitas mulheres encaram essa mesma situação, inclusive algumas de vocês que hoje estão aqui. Parte da minha experiência durante esse período me ajudou a compreender melhor o que sinto em relação à transformação do silêncio em linguagem e ação.
Ao tomar uma obrigatória e fundamental consciência da minha mortalidade, e do que eu desejava e queria para a minha vida, por mais curta que ela pudesse ser, prioridades e omissões ganharam relevância sob uma luz impiedosa, e o que mais me trouxe arrependimento foram os meus silêncios. Do que é que eu tinha medo? Eu temia que questionar ou me manifestar de acordo com as minhas crenças resultasse em dor ou morte. Mas todas somos feridas de tantas maneiras, o tempo todo, e a dor ou se modifica ou passa. A morte, por outro lado, é o silêncio definitivo. E ela pode estar se aproximando rapidamente, agora, sem considerar se eu falei tudo o que precisava, ou se me traí em pequenos silêncios enquanto planejava falar um dia, ou enquanto esperava pelas palavras de outra pessoa. E comecei a reconhecer dentro de mim um poder cuja fonte é a compreensão de que, por mais desejável que seja não ter medo, aprender a vê-lo de maneira objetiva me deu uma força enorme.
Do que é que eu tinha medo? Eu temia que questionar ou me manifestar de acordo com as minhas crenças resultasse em dor ou morte.
Eu ia morrer, mais cedo ou mais tarde, tendo ou não me manifestado. Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você. Mas a cada palavra verdadeira dita, a cada tentativa que fiz de falar as verdades das quais ainda estou em busca, tive contato com outras mulheres enquanto analisávamos as palavras adequadas a um mundo no qual todas nós acreditávamos, superando nossas diferenças. E foi a preocupação e o cuidado dessas mulheres que me deram força e me permitiram esmiuçar aspectos essenciais da minha vida.
As mulheres que me apoiaram durante esse período eram brancas e negras, velhas e jovens, lésbicas, bissexuais e heterossexuais, e todas nós travamos, juntas, uma guerra contra as tiranias do silêncio. Todas me deram a força e o acolhimento sem os quais eu não sobreviveria intacta. Durante essas semanas de medo intenso veio a compreensão – dentro da guerra, todas lutamos com as forças da morte, de maneira sutil ou não, conscientemente ou não – de que não sou apenas uma baixa, sou também uma guerreira.
Quais são as palavras que você ainda não tem? O que você precisa dizer? Quais são as tiranias que você engole dia após dia e tenta tomar para si, até adoecer e morrer por causa delas, ainda em silêncio? Para algumas de vocês que estão aqui hoje, talvez eu seja a expressão de um dos seus medos. Porque sou mulher, sou negra, sou lésbica, porque sou quem eu sou – uma poeta negra guerreira fazendo o meu trabalho –, então pergunto: vocês têm feito o trabalho de vocês?
E é claro que tenho medo, porque a transformação do silêncio em linguagem e ação é um ato de revelação individual, algo que parece estar sempre carregado de perigo. Mas minha filha, quando contei para ela qual era o nosso tema e falei da minha dificuldade com ele, me respondeu: “Fale para elas sobre como você jamais é realmente inteira se mantiver o silêncio, porque sempre há aquele pedacinho dentro de você que quer ser posto para fora, e quanto mais você o ignora, mais ele se irrita e enlouquece, e se você não desembuchar, um dia ele se revolta e dá um soco na sua cara, por dentro”.
Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você.
Em nome do silêncio, cada uma de nós evoca a expressão de seu próprio medo – o medo do desprezo, da censura ou de algum julgamento, do reconhecimento, do desafio, da aniquilação. Mas, acima de tudo, penso que tememos a visibilidade sem a qual não vivemos verdadeiramente. Neste país, onde diferenças raciais criam uma constante, ainda que velada, distorção de visões, as mulheres negras, por um lado, sempre foram altamente visíveis, assim como, por outro lado, foram invisibilizadas pela despersonalização do racismo. Mesmo dentro do movimento social das mulheres, nós tivemos que lutar, e ainda lutamos, por essa visibilidade, que é também o que nos torna mais vulneráveis – a nossa negritude. Para sobrevivermos na boca desse dragão que chamamos de américa, tivemos de aprender esta primeira lição, a mais vital: que a nossa sobrevivência nunca fez parte dos planos. Não como seres humanos. Incluindo a sobrevivência da maioria de vocês aqui hoje, negras ou não. E essa visibilidade que nos torna mais vulneráveis é também a fonte de nossa maior força.
Porque a máquina vai tentar nos reduzir a pó de qualquer maneira, quer falemos, quer não. Podemos ficar eternamente caladas pelos cantos enquanto nossas irmãs e nós somos diminuídas, enquanto nossos filhos são corrompidos e destruídos, enquanto nossa terra é envenenada; podemos ficar caladas a salvo nos nossos cantos, de bico fechado, e ainda assim nosso medo não será menor.
Na minha casa este ano estamos celebrando o Kwanzaa, festival afro-americano da colheita, que começa um dia depois do Natal e dura uma semana. O Kwanzaa tem sete princípios, um para cada dia. O primeiro é Umoja, que significa “unidade”, a decisão de se esforçar para alcançar e preservar a integridade individual e a união da comunidade. O princípio de ontem, o segundo dia, foi Kujichagulia, “autodeterminação”, a decisão de definirmos quem somos, nos darmos um nome, falarmos por nós, em vez de nos deixarmos definir pelos outros ou deixar que os outros falem por nós. Este é o terceiro dia do Kwanzaa, e o princípio de hoje é Ujima, “trabalho coletivo e responsabilidade”, a decisão de nos erguermos e nos mantermos unidas, a nós e à nossa comunidade, e de reconhecer e resolver nossos problemas juntas.
Cada uma de nós está aqui hoje porque, de uma forma ou de outra, compartilhamos um compromisso com a linguagem, com o poder da linguagem e com o ato de ressignificar essa linguagem que foi criada para operar contra nós. Na transformação do silêncio em linguagem e em ação, é essencial que cada uma de nós estabeleça ou analise seu papel nessa transformação e reconheça que seu papel é vital nesse processo.
Porque a máquina vai tentar nos reduzir a pó de qualquer maneira, quer falemos, quer não.
Para aquelas entre nós que escrevem, é necessário esmiuçar não apenas a verdade do que dizemos, mas a verdade da própria linguagem que usamos. Para as demais, é necessário compartilhar e espalhar também as palavras que nos são significativas. Mas o mais importante para todas nós é a necessidade de ensinarmos a partir da vivência, de falarmos as verdades nas quais acreditamos e as quais conhecemos, para além daquilo que compreendemos. Porque somente assim podemos sobreviver, participando de um processo de vida criativo e contínuo, que é o crescimento.
E nunca é sem medo – da visibilidade, da crua luz do escrutínio e talvez do julgamento, da dor, da morte. Mas já passamos por tudo isso, em silêncio, exceto pela morte. E o tempo todo eu me lembro disto: se eu tivesse nascido muda, ou feito um voto de silêncio durante a vida toda em nome da minha segurança, eu ainda sofreria, ainda morreria. Isso é muito bom para colocar as coisas em perspectiva.
E nos lugares em que as palavras das mulheres clamam para ser ouvidas, cada uma de nós devemos reconhecer a nossa responsabilidade de buscar essas palavras, de lê-las, de compartilhá-las e de analisar a pertinência delas na nossa vida. Que não nos escondamos por detrás das farsas de separação que nos foram impostas e que frequentemente aceitamos como se fossem invenção nossa. Por exemplo: “Provavelmente eu não posso ensinar literatura feita por mulheres negras – a experiência delas é diferente demais da minha”. E, no entanto, quantos anos vocês passaram ensinando Platão, Shakespeare e Proust? Outra: “Ela é uma mulher branca, o que teria para me dizer?”. Ou: “Ela é lésbica, o que meu marido, ou meu chefe, diria?”. Ou ainda: “Essa mulher escreve sobre os filhos e eu não tenho filhos”. E todas as outras incontáveis maneiras de nos privarmos de nós mesmas e umas das outras.
Podemos aprender a agir e falar quando temos medo da mesma maneira como aprendemos a agir e falar quando estamos cansadas. Fomos socializadas a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação, e enquanto esperarmos em silêncio pelo luxo supremo do destemor, o peso desse silêncio nos sufocará. O fato de estarmos aqui e de eu falar essas palavras é uma tentativa de quebrar o silêncio e de atenuar algumas das diferenças entre nós, pois não são elas que nos imobilizam, mas sim o silêncio. E há muitos silêncios a serem quebrados.
Tradução: Stephanie Borges
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