Apesar dos inúmeros crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente neste primeiro ano de governo, não há no horizonte qualquer articulação da oposição pelo impeachment. A despeito dos escândalos de corrupção envolvendo a cúpula bolsonarista, Jair Bolsonaro segue com seu projeto de destruição da democracia e o aparelhamento ideológico do estado brasileiro com certa tranquilidade.
Ao final do primeiro ano de mandato, o presidente conta com 30% da aprovação dos brasileiros. A popularidade parou de cair, e a rejeição estancou em relação às pesquisas anteriores. Se a eleição presidencial fosse hoje, Bolsonaro estaria garantido no segundo turno e com condições de ser reeleito.
As notícias são ruins para o campo democrático, que parece ainda não ter entendido o que representa o bolsonarismo no poder. Até agora, não vimos uma oposição atuante no Congresso no enfrentamento ao extremismo governista. Há combates pontuais aqui e ali, mas não uma articulação entre os partidos, que consolide a formação de um bloco único em defesa da democracia. O governo é quem pauta a oposição, que tem uma atitude meramente reativa e quase nada propõe. É necessário que a oposição abandone a postura defensiva, na qual se limita a dançar a música escolhida pelo bolsonarismo, e juntar forças para iniciar uma ofensiva propositiva. Se isso não acontecer, a caravana da extrema-direita continuará passando enquanto a oposição fragmentada permanecerá latindo.
Como apontou o cientista social Marcos Nobre em texto fundamental na revista piauí, Bolsonaro se elegeu vendendo a ideia de que lutaria contra o sistema que seria representado por uma democracia contaminada pelas esquerdas. Qualquer um que se opor ao seu projeto de destruição do “sistema” será automaticamente classificado como esquerdista, até mesmo aqueles que até pouco tempo fizeram parte do bolsonarismo, como Alexandre Frota e Joice Hasselmann. Foi baseado nesse discurso fantasioso que ele se elegeu, continua governando e tentará a reeleição. Enquanto a realidade mostra que a polarização é entre civilização vs. barbárie, Bolsonaro continuará apostando na polarização sistema (esquerda) vs. antissistema (extrema-direita).
Levando em conta o fato de que todos que se opõem ao Bolsonaro são classificados como “esquerdistas”, está na hora do campo democrático – esquerda, centro e direita – se articular contra o bolsonarismo e montar um bloco de defesa da democracia no Congresso, já visando as próximas eleições municipais e presidenciais. Bolsonaro precipitou a corrida eleitoral, e a disputa deve ser encarada como prioridade desde já por quem zela pela democracia. Há ainda a eleição do presidente da Câmara logo no início de 2021, e a vitória de um deputado extremista representaria o aprofundamento da tragédia antidemocrática que vivemos. Os democratas não têm mais o direito de errar.
As esquerdas têm de entender rapidamente que qualquer opositor ao bolsonarismo deve ser encarado como um aliado tático. Não estamos falando de alinhamento ideológico, mas de uma aliança tática que faça frente ao desmonte do país e pavimente o caminho para a construção de uma chapa única que evite a divisão dos votos antibolsonaristas. E quando eu digo qualquer opositor é qualquer opositor mesmo, inclusive com liberais dispostos a proteger os direitos individuais e a manutenção do estado laico. Pelo jeito que a coisa se encaminha e pela matemática dos votos, uma frente ampla pura de esquerda – que parece ser a tendência – não será suficiente para vencer a eleição.
Recuar da hegemonia agora seria o melhor não só para o país, mas para o próprio PT.
Lula saiu da prisão acenando positivamente para novas alianças, mas não parece disposto a fazer o PT recuar da sua hegemonia histórica. O partido ainda é rejeitado por 43% da população, e esse é um dado que não pode continuar sendo ignorado. O PT é o maior e mais forte partido do país, com maior apelo eleitoral. É natural que busque o protagonismo. Mas não vivemos em tempos normais. Vivemos tempos atípicos, e o sucesso da fórmula eleitoral petista não se repetiu na última eleição e nada indica que se repetirá na próxima.
As condições materiais dadas não são mais as mesmas e está claro que compartilhar o comando da oposição com novos atores, com um novo pacto em defesa da democracia, é o melhor caminho para não morrer na praia no segundo turno, mais uma vez. Recuar da hegemonia agora seria o melhor não só para o país, mas para o próprio PT, arrefecendo o antipetismo e aumentando as chances de voltar ao poder, ainda que com participação reduzida.
As esquerdas parecem ter a certeza de que o governo Bolsonaro é inviável e entrará em colapso sozinho. Mas não é possível dizer que isso irá acontecer. Se não for formada uma frente que abarque os interesses de um eleitorado que não é tradicionalmente identificado com a esquerda, Bolsonaro e seu discurso antissistema – ou algum candidato de direita que se vender como um Bolsonaro mais moderado – têm potencial maior de pegar os votos do um terço do eleitorado de centro que não se identifica nem com o PT nem com o Bolsonaro. É uma questão matemática, que foi ignorada em 2018.
Lula é o nome de maior apelo eleitoral, mas está inelegível e dificilmente deixará de estar. A última eleição demonstrou que os votos dele não se transferem na sua totalidade para um candidato do PT. Muitos petistas acreditam que o partido só não ganhou na última eleição por causa da facada sofrida por Bolsonaro – e não pela alta rejeição ao partido –, o que é uma tremenda ingenuidade. Não há sinais de que a fervura do antipetismo irá diminuir, já que o bolsonarismo aumenta o fogo todos os dias. É hora de dividir o protagonismo no campo oposicionista para aumentar o poder eleitoral dos democratas contra o bolsonarismo.
No Reino Unido, o líder do partido trabalhista Jeremy Corbyn se recusou a compor uma frente ampla com outros partidos de esquerda e de centro, apesar da insistência da militância anti-Boris Johnson. Perderam miseravelmente nas urnas e permitiram o crescimento da direita mais obscura. Fica mais essa lição para Lula e o PT.
Lideranças esquerdistas do Nordeste como Flávio Dino, do PCdoB, e o petista Rui Costa entenderam que a saída é ampliar a articulação com setores antibolsonaristas, sejam eles do espectro político que for. Segundo Dino, “eles (extrema-direita) conseguiram cindir o bloco histórico do lulismo. Precisamos cindir o pacto antinacional e antipopular, e isolar o bolsonarismo hard. Precisamos ter amplitude.” A deputada Luiza Erundina aponta o mesmo caminho: “Não é um partido, dois partidos, esquerda, direita ou centro, não é isso mais. Todos os segmentos devem se juntar para salvar o Brasil, salvar o projeto democrático”.
Os democratas não têm mais o direito de errar.
Outro nome importante da esquerda, Ciro Gomes, que resolveu viajar para Paris enquanto a democracia estava à beira do precipício, passou o ano inteiro atacando Lula e o PT, contribuindo ainda mais para a divisão do campo oposicionista. As críticas corretas e necessárias ao petismo que o pedetista fez durante as eleições deram lugar a ataques virulentos recorrentes, dificultando ainda mais a formação de uma unidade. O PT é o maior partido do país, tem alcance nacional e força eleitoral. Ciro aparece semanalmente no noticiário implodindo as poucas pontes que tinha com o petismo. Não tem como isso dar certo. Não existe qualquer possibilidade de se formar uma frente ampla em defesa da democracia sem a participação do principal partido de oposição. Chegou a hora de guardar o rancor, justificado ou não, e parar de fazer política com o fígado.
Como apontou Marcos Nobre, a direita comprometida com a democracia também tem enorme responsabilidade no enfrentamento ao governo extremista: “a centro-direita precisa parar de fazer o jogo ‘me engana que eu gosto’, como se estivesse usando o atual governo para passar as mudanças legislativas com que sonha há mais de duas décadas. Quem usa os outros é quem está no poder. E quem está no poder é a extrema-direita”. O cientista social aponta também a importância de um cessar-fogo entre Lula e a centro-direita: “O centro precisa parar de tratar Lula e o PT como inimigos preferenciais e passar a considerá-los como adversários com os quais é necessário se entender sobre o que será a democracia brasileira. Porque, como se sabe, na democracia há apenas adversários, e não inimigos”.
O PSL tem uma rejeição ainda maior que a do PT. Em pesquisa de novembro feita pelo Ibope, 50% dos eleitores disseram que não votariam de jeito nenhum no ex-partido do presidente. Acontece que o próprio Bolsonaro já rejeitou o PSL, sinalizando para o eleitorado que a sigla está corrompida pelo sistema. Agora está prestes a construir o Aliança pelo Brasil, o partido centrado na lealdade à sua figura, que se venderá como antissistema, mas não é nada mais que um partido neofascista que tem como objetivo consolidar o processo de destruição da democracia. Pelo que vimos neste primeiro ano de mandato, Bolsonaro usará a máquina do governo em favor da sua reeleição de forma ostensiva, como nenhum outro governante já fez. É ingenuidade supor que ele chegará sangrando em 2022 e será facilmente batido.
A indignação e a lacração não estão funcionando. Há de se propor novas ideias de forma conjunta para reformar as instituições e não deixar Bolsonaro monopolizar a bandeira antissistema. É preciso chacoalhar o sistema de representação e abrir os olhos do eleitorado para a importância da defesa da democracia. Só uma frente ampla com todos os setores antibolsonaristas reunidos em torno de um novo pacto democrático seria capaz disso. É isso ou assistiremos o colapso completo das instituições. Não dá mais para perder tempo apenas denunciando os absurdos bolsonaristas e se limitando a cumprir o papel de indignados. É hora de união e enfrentamento concreto.
Se os votos antibolsonaristas forem pulverizados entre várias candidaturas, há chance de um candidato de esquerda nem chegar ao segundo turno.
Bolsonaro continuará dissolvendo a democracia pelos próximos três anos, alegando estar lutando contra o sistema. Continuará fidelizando a sua base de 30%, que apoia o colapso ao qual as instituições estão sendo submetidas, sem se preocupar com sua popularidade ou em formar maioria no Congresso. O objetivo é destruir o SUS, a educação pública, a cultura e todas as políticas públicas das quais dependem os mais pobres. Nas próximas eleições, Bolsonaro jogará todos os problemas do seu governo nas costas do Congresso, do Supremo Tribunal Federal, das instituições, enfim, do “sistema”. Dirá que precisará de mais quatro anos para varrer completamente a “esquerda” do poder. E, não duvidem, a lorota pode colar.
Se os votos antibolsonaristas forem pulverizados entre várias candidaturas, há chance de um candidato de esquerda nem chegar ao segundo turno. Há o risco de Bolsonaro disputar a presidência com alguém igualmente autoritário como Sergio Moro ou até mesmo um outsider eleitor de Bolsonaro como Luciano Huck ou qualquer outro palhaço do momento disposto a surfar a onda do bolsonarismo moderado. As estratégias do jogo político devem ser mudadas e isso cabe principalmente às esquerdas. Não vivemos uma democracia em que progressistas e liberais, por exemplo, possam exercer suas divergências históricas.
O momento é de salvar a democracia e restaurar a normalidade do jogo político. E, para isso, é essencial estabelecer um novo pacto com todos os setores democráticos, propor reformas institucionais necessárias (não apenas defendê-las da destruição governista). Se tudo continuar como está, a esquerda – e todos os que viraram “esquerdistas” – caminha para apanhar mais uma vez nas urnas em 2020.
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