Enquanto bancos têm lucro recorde, pessoas adoecem tentando pagar boletos. Em 2019, o lucro acumulado do Bradesco, Itaú Unibanco, Santander e Banco do Brasil foi de R$ 59,7 bilhões, o maior desde 2006. A euforia do capital financeiro contrasta com o sofrimento financeiro de grande parte da população. Segundo a CNC, 65,1% das famílias brasileiras estão endividadas — índice recorde desde 2013.
Desde os escritos do pensador francês Marcel Mauss (1872- 1950), sabemos que a dívida é uma dimensão estruturante das relações humanas. Quem doa fica na posição de poder e prestígio. Quem deve fica em desonra e posição de inferioridade. A vida coletiva em todas as sociedades é marcada por uma constante dança para que essas relações de crédito sejam balanceadas em uma economia humana de reciprocidade. Mas isso, segundo o best-seller “Dívida”, de David Graeber, é impossível alcançar em economias de mercado, que, segundo o autor, são estruturadas sobre a violência estatal e produtoras de endividamento e subordinação.
A dívida também é um tema marcante da Sinologia (estudos da China), que trabalha com uma noção que considero bastante apropriada para nomear a violência que o capital financeiro produz no Brasil: mianzi, literalmente traduzido para o português como “face”. Quando um sujeito está endividado, ele “perde a face”. Isso pode levar a um longo processo de anulação do “eu” — ou, como disse o próprio Mauss, “perder a alma” referindo-se aos povos kwakiutl do noroeste americano.
Lembro de minha interlocutora chinesa que, após se endividar nos cassinos de Macau, perdeu tudo o que tinha, inclusive mianzi, e me explicou que sua situação era a de suicídio sem morrer: “eu vivo, mas não existo”, disse-me Feifei, que, aos 33 anos, decidiu se anular socialmente. Feifei havia perdido a alma.
Estou trazendo a noção de (perda de) mianzi porque é a forma radical para dar sentido a dezenas de relatos que recebi nos últimos dias como resposta a um despretensioso tuíte no qual comentava que gostaria de ouvir histórias de endividamento. Recebi longuíssimos textos, todos narrando uma saga financeira. Em cada detalhe da história, José, Maria e João elaboram sua própria trajetória. José, Maria e João são milhares, e todos eles possuem um roteiro de vida muito parecido: na medida em que a bola de neve das dívidas cresce, a capacidade de sonhar diminui.
O endividado tem seu nome no Serasa e passa a ter sua vida definida por um escore.
Graeber definiu dívida como “a perversão de uma promessa”. O itinerário do endividamento segue uma estrutura comum. Para a estudante, a saga começa com uma bolsa de iniciação científica, um cartão de crédito, um limite em conta bancária universitária e uma família em dificuldade financeira. Já os sujeitos que buscavam abrir um negócio relatam que “o sonho virou pesadelo”. Em pouco tempo, usa-se todos os limites e os juros abusivos fazem com que a dívida cresça de forma descontrolada.
O ciclo do superendividamento e da inadimplência consiste em fazer um empréstimo e/ou usar todo o limite de um cartão. Aí se tenta um segundo ou terceiro crédito para pagar o impagável. Em um piscar de olhos, todos os limites estão estourados. Quando entra um dinheiro na conta, o banco toma para si.
O endividado, então, tem seu nome no Serasa e passa a ter sua vida definida por um escore, um número vermelho ao qual todas as instituições têm acesso e que aniquila a privacidade. Você é um número vermelho, então você precisa de crédito para sair dessa situação, mas as portas estão fechadas justamente porque você é um número vermelho. Não importa a sua dignidade, as suas razões, seus sentimentos, a nobreza de seus projetos: você é reduzido a um escore. Contava-me uma filha sobre a depressão da mãe, que perdeu um salão de beleza em uma enchente:
E a minha mãe está sem paz por isso. Ela odeia dívidas. Fica nervosa, agoniada, em saber que está devendo para alguém. Ela nunca saiu sem pagar de nenhum lugar, nunca deixou de pagar um produtinho da Avon, nunca deu um cheque sem fundo, nunca deu calote em ninguém, nunca atrasou uma fatura, nunca fez fiado em nenhum lugar.
A perturbação leva à desumanização de se viver em um ciclo tortuoso e infindável de recusas. Os endividados não conseguem dormir pensando como pagar as contas. “É a insônia do boleto”, brincou uma interlocutora. “Meu banho matinal consistia em ficar pensando em como solucionar”, comentou comigo outra pessoa.
Aos poucos, todos os gastos vão sendo cortados: a escola particular dos filhos é trocada pela pública. Vende-se o carro (mas o IPVA de muitos não está pago, o que prejudica a própria venda). Muda-se para apartamento mais barato até chegar a “morar de favor”: “Eu tento comer pouco porque moro de favor e tenho vergonha de ficar pedindo, emagreci 10kg em poucas semanas assim”, relatou-me uma estudante.
Nessa direção de uma vida ‘sem alma’, a grande maioria dos relatos que recebi mencionava a vontade de morrer.
Como nossa existência não é apenas individual, famílias inteiras adoecem. Uma estudante foi a primeira geração da família a acessar o ensino superior. Ela sonhava dar uma viagem para os pais como uma forma de pagar outra dívida — o amor, a dedicação e o esforço que os pais lhe deram. O sonho era que os pais se orgulhassem dela. Mas a estudante não apenas é incapaz de dar a viagem aos pais como volta para a casa deles depois de formada, desempregada, precisando da ajuda da pequena pensão da mãe ou da avó.
A vida vai demorando. Como disse uma mulher que sustentava dois filhos: “Teve época em que a gente comia o resto que buscava na casa de amigos dizendo que seria para o cachorro”. Pouco a pouco, sonhar passa a ser um luxo. “Eu só quero poder viver dia a dia, não tenho mais sonhos nem esperança de sair dessa situação”. Uma pessoa que busca emprego me relatou: “Eu acho que viver só para comer (e olhe lá) é desumano. Eu queria ir num bar, eu queria ir a um cinema e não posso”. De forma semelhante, disse-me outra mulher: “Desumanizar é isso: a gente fica sem poder escolher o que adquire e sem ter acesso ao que nos faz humanos”.
Um homem que largou um emprego formal para começar um negócio pontuou: “Tento me recuperar todos os dias, mas não vejo saída a não ser continuar trabalhando para sobreviver, sem ilusão de ser alguém bem sucedido, simplesmente vou empurrando”.
Nessa direção de uma vida “sem alma”, a grande maioria dos relatos que recebi mencionava a vontade de morrer. “Não é que eu pense em me matar, mas é que dá vontade de desaparecer, não acordar, a gente não vê saídas de como melhorar nesse país. Já são três anos desempregado.”
Não bastasse a angústia, as cobranças e o assédio moral das empresas que cobram as dívidas são constantes.
Além das cobranças a mim, meus filhos, meus irmãos, meu ex-marido, o namorado de minha filha e meus pais (idosos) também recebem telefonemas de cobrança em meu nome, o que constrange a todos e me faz me sentir humilhada e envergonhada perante todos os envolvidos. Fiz diversas reclamações, sem solução. Então, as “vítimas” das cobranças indevidas mudaram seus números de telefone. Resolveu por 6 meses, depois disso voltaram a receber telefonemas de cobrança em meu nome novamente.
Os endividados passam por um profundo processo de humilhação e não é raro serem ofendidos e julgados pelas profissionais que negociam as dívidas: “As ligações eram sempre agressivas e, quando eu pedia parcelamento, o atendente ria ou fazia alguma observação grosseira”.
Chegou uma época em que ninguém atendia o telefone se não desse o código (ligar, deixar tocar duas vezes, desligar e ligar de novo) porque a gente não queria atender cobrança. Ligavam todos os períodos, manhã, tarde e até 10 da noite, querendo cobrar do meu pai o pagamento. Parecia agiota, mas era legalizado né. Uma vez minha mãe atendeu e explicou ao cobrador que meu pai era aposentado e não tinha como pagar, que o mínimo já era o máximo. Ouviu como resposta um “Se não tinha como pagar então não devia ter gasto!”.
Sempre me pergunto se esses profissionais não estão também endividados. Provavelmente, sim. Provavelmente, eles estão reproduzindo a violência a qual também estão sujeitos.
A violência do sistema financeiro
Comecei a me interessar pelo tema da dívida como pesquisadora da economia informal em 1999. Frequentei diariamente o camelódromo de Porto Alegre por muitos anos para a pesquisa. Meus amigos ambulantes não tinham acesso a crédito e viveram, por décadas, em uma economia local de “dinheiro vivo”, recorrendo a empréstimos do “camelô rico”, que tinha sua própria tabela de juros. O sistema local funcionava em sua própria lógica auto-organizada.
Dez anos depois, a situação mudou radicalmente quando dois fenômenos incidiram sobre suas vidas: a inclusão financeira da era Lula e a formalização do camelódromo como um “shopping popular”, em 2009. Os vendedores ganharam ampla linha de crédito pela primeira vez. Em 2010, eu fui rever meus amigos no novo estabelecimento e encontrei todos endividados com bancos.
Na semana de inauguração do “shopping popular”, uma gerente do banco Itaú montou uma banquinha e abriu, em um único dia, 218 contas bancárias para sujeitos que, há décadas, só haviam operado com dinheiro — e muitos sequer eram alfabetizados. Isso fazia com que meus amigos não entendessem as cartas e os boletos que recebiam. Em um ano de formalização, encontrei os comerciantes doentes com pressão alta e estresse por causa das dívidas.
O sistema financeiro funciona como um urubu, oferecendo crédito a novos empreendedores, professores da rede pública com salários atrasados, estudantes e pensionistas. Depois que estão todos com as cordas no pescoço, enrolados em dívidas em um dos sistemas de juros mais altos do mundo, as portas do crédito se fecham. As pessoas caem em uma armadilha. Até que chegam os agiotas e as empresas que oferecem crédito “sem consulta no Serasa”. A situação piora ainda mais.
Ter a autonomia de volta, segundo os relatos que recebi, acontece quando as pessoas conseguem negociar as dívidas depois de muito tempo. Ou, ainda, quando se libertam e aprendem a dar um dane-se para bancos: “Eu aprendi que eu não sou pior porque devo para bancos”. Essa última ideia vai ao encontro do argumento de David Graeber de que a moralidade e dignidade humana não estão necessariamente atreladas ao pagamento de determinadas instituições porque, simplesmente, existem dívidas injustas.
Como me disse um interlocutor: “Dizem que é no comunismo que vão tirar a sua casa e seus bens. Pois foi no capitalismo que meu dinheiro foi tomado e minhas oportunidades de acesso foram negadas.”
O problema é estrutural, e a sua raiz se encontra no sistema financeiro, que vive para salvar o 1% e aniquilar os 99%. Diante do quadro de desemprego atual, cuja melhora só aponta para geração de “empregos” ainda mais precários, não há um horizonte otimista. A única boa notícia é que, se David Graeber estiver certo, momentos de grande endividamentos são momentos de grandes revoluções históricas.
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