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Crianças fazem boa parte da colheita da fruta no Pará e são vítimas de acidentes rotineiros.

Os açaizeiros passam com frequência dos 20 metros de altura e faz parte da paisagem e dos quintais de boa parte dos ribeirinhos do Pará. Mais leves, as crianças são especialmente valorizadas nesse mercado.

Alessandro tem 13 anos, mas já é o melhor apanhador de açaí da sua casa. Ele mora em Abaetetuba, a 70 km de Belém. Às 5h, ele já está de pé, a fim de evitar o sol quente do Pará – ultrapassa os 35 graus às 10h. Seu corpo leve e pequeno é a única garantia de segurança que ele tem ao subir nos açaizeiros.

A árvore da fruta, de tronco fino e flexível, passa com frequência dos 20 metros de altura e faz parte da paisagem e dos quintais de boa parte dos ribeirinhos do Pará. É difícil encontrar quem não saiba fazer uma peconha, como é chamado o laço usado para subir nas palmeiras e que batiza quem ganha a vida colhendo açaí, os peconheiros. O trabalho exige destreza, e o aprendizado começa na infância.

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O Pará é o maior produtor de açaí do mundo. Vendemos, principalmente, para os EUA, Europa, Austrália e Japão. E grande parte da colheita é feita por menores de idade como Alessandro, em alguns casos em situações de trabalho análogo à escravidão.

As crianças são especialmente valorizadas nesse mercado. Elas são leves, o que reduz acidentes com a quebra dos galhos. Para otimizar o trabalho, muitos peconheiros se arriscam pulando de uma palmeira para a outra. Assim não precisam perder tempo descendo e subindo de árvore em árvore. Quanto mais frutas colhidas no menor tempo, maior o lucro.

A missão de Alessandro é ajudar o pai, Bolacha, e o irmão mais velho Adenilson, de 20 anos, a encher os cestos de açaí antes que os atravessadores, que revendem a fruta no porto, passem pela sua casa na metade da manhã. O material de trabalho é mínimo: o laço da peconha e um facão enfiado na bermuda. Cada cesto de cerca de 28 kg sai por entre R$ 15 e R$ 20. Dificilmente eles conseguem vender mais de 30 cestos por mês.

Mãe de Alessandro, Jacira Pereira conta que ela, o marido e os seis filhos vivem com R$ 641 que recebem de Bolsa Família pelos cinco filhos menores de idade mais a renda que conseguem com a venda do açaí – cerca de R$ 500 nos meses bons já que a colheita é sazonal. “É o que ajuda a comprar o que comer”, me disse. O filho de dez anos ainda não trabalha “por ser novo demais”. As duas meninas, de 12 e quatro anos, não sobem nas árvores, mas já ajudam a debulhar os cachos da fruta.

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Os pés de Alessandro já são marcados pela peconha.

Foto: Alessandro Falco

Apesar de a Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, proibirem o trabalho antes de os 14 anos (a não ser na condição de aprendiz), a situação de Alessandro e suas irmãs está longe de ser uma exceção na região. Não há dados oficiais sobre o trabalho infantil na colheita do açaí, mas as crianças são a mão de obra mais valorizada para o serviço, como me explicaram os conselheiros tutelares com quem falei na cidade.

Ao todo, cinco conselheiros tutelares são responsáveis por fiscalizar a região rural de Abaetetuba, que abarca 72 comunidades ribeirinhas, o que atrapalha a fiscalização e amplia a subnotificação. Lá, um dos principais centros de colheita de açaí no Pará, ouvi relatos sobre uma criança que caiu de um açaizeiro e que, durante a queda, acabou enfiando o facão no coração e quase morreu, e de um garoto que quebrou os dois braços ao se desequilibrar e despencar de uma árvore. Os casos, no entanto, não geram relatórios ou boletins de ocorrência – e caem no esquecimento. O único registro que encontrei no Conselho Tutelar foi o de uma criança de 11 anos que, enquanto trabalhava com a sua família debulhando o açaí, foi picada por uma cobra – animais peçonhentos são comuns em açaizais devido à umidade da região.

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Alessandro, os quatro irmãos e os pais vivem com os R$ 641 do Bolsa Família e os até R$ 500 da venda do açaí nos meses bons.

Foto: Alessandro Falco

10 na colheita, zero na escola

A participação de crianças e adolescentes na colheita do açaí prejudica outro ponto fundamental do desenvolvimento dos jovens: o desempenho escolar. Conversei com nove crianças e adolescentes entre nove e 14 anos que começaram a trabalhar subindo nos açaizais ainda com 11 ou 12 anos. Em comum: todas estão atrasadas na escola, e a maioria tem dificuldade para ler e escrever. Quem estuda de manhã falta às aulas devido ao horário da colheita, que se confunde com o da escola. As que estudam à tarde, devido ao cansaço, tem um rendimento menor ou até mesmo dormem em sala de aula. De acordo com o último Censo do IBGE, Abaetetuba, um dos centros de produção da fruta, está entre as cidades do Pará com maior número de crianças com até 10 anos fora da escola.

Com 14 anos, Emerson*, já um peconheiro experiente, repete pela quinta vez a terceira série. Pedi para olhar o seu caderno. O que deveriam ser palavras eram apenas riscos, que ele faz para fingir que está copiando as atividades que a professora passa no quadro. Emerson não sabe ler e escrever. Professora aposentada e coordenadora local da Cáritas, instituição de caridade da Igreja Católica, na região, Isabel Silva Ferreira explica que é comum encontrar professores que ignoram as faltas dos alunos. Muitos deles, diz, são, assim como Emerson e a família de Jacira, beneficiários do Bolsa Família e, se não comprovarem frequência escolar, acabam excluídos do programa.

A  profissão de peconheiro está entre as mais perigosas do país.

A própria Jacira, hoje com 35 anos, começou a trabalhar na colheita do açaí aos oito e não teve condições de estudar. Ela se ressente de ver os filhos seguindo o mesmo caminho. “Adenilson já parou de estudar, na sétima série. Falo sempre para o Alessandro, que ele precisa estudar pra ter um futuro melhor que o meu”. Ela já recebeu diversas cartas da escola reclamando da postura do garoto em sala de aula. “A professora vive dizendo que ele dorme na sala. Não é o que gente quer, mas é isso, pra comer a gente tem dar um murro na vida”.

Eliseu* tem 13 anos e também não sabe ler e escrever. Ainda assim, abandonou a escola há poucos meses. De acordo com um relatório do Conselho Tutelar, o garoto deixou o colégio por sofrer bullying e racismo. Encontrei com ele enquanto colhia o açaí, em um terreno próximo à sua casa. Tímido, se esquivou da conversa. Me disse apenas que não tem medo de fazer o que faz, enquanto caminhava em direção a uma palmeira. Ele vive com mãe e o padrasto. A renda da casa “é Bolsa Família e um ou outro bico que meu marido faz”, me disse Marta, sua mãe.

Em agosto, Marta pediu ajuda ao Conselho Tutelar para tentar convencer o filho a voltar a estudar. “Eu falo pra ele ir pra escola, mas ele disse que o professor chamou ele de preto, de macaco. Que não quer mais ir”. Para ela, o garoto conseguiu na colheita uma autonomia que ele não quer abrir mão, mesmo sendo prejudicial ao seu futuro. “Vivo só com o dinheiro do Bolsa Família. Com o açaí, ele consegue o dinheiro pra comprar o lanche que eu não tenho dinheiro pra dar”, me disse.

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Eliseu tem 13 anos e não sabe ler e escrever. Ainda assim, abandonou a escola.

Foto: Alessandro Falco

500 gramas, 15 dólares

Uma vez cheias, os cestos com o açaí são colocadas em frente às casas de palafita dos ribeirinhos, que então aguardam os atravessadores. Eles passam de barco pelas ilhas recolhendo o açaí que é levado para o porto mais próximo e de lá revendido tanto para clientes locais quanto para grandes empresas. Os até R$ 20 pagos pelos atravessadores por 28 kg da fruta são o equivalente ao preço de um pote de 500 gramas de açaí no badalado bairro de Pinheiros, em São Paulo. Nos EUA, onde a fruta também está na moda, a mesma quantidade pode custar cerca de 15 dólares, mais de R$ 60 no câmbio atual. Metade do valor das cestas fica com os peconheiros. “Houve tempos que custava menos de R$ 5. Tem região aqui que vendia por R$ 1 a rasa”, me contou um ribeirinho.

A profissão de peconheiro está entre os ofícios mais perigosos do país. Além do calor e dos riscos de queda, diz um relatório elaborado pelo Tribunal do Trabalho no Pará, os ribeirinhos que escalam as palmeiras para colher a fruta ainda estão sujeitos a serem picados por abelhas e marimbondos ou atacados por aves que fazem ninhos na copa das árvores. Ao descer, correm risco de empalamento devido aos troncos novos, por vezes pontiagudos, que nascem de uma mesma raiz, pouco visíveis para quem está ocupado colhendo frutas a 20 metros de altura. Mas cair não é o único problema.

Chegar ao hospital é um desafio. “Para chegar do mato onde caiu até o hospital, a pessoa é manuseada umas sete vezes. Então, calcula, um indivíduo com uma fratura de coluna entra em um barco, sai do barco, sobe barreira, muda de lugar, e assim vai. A possibilidade de lesão é muito grande”, diz o médico José Guataçara Corrêa Gabriel, do Hospital Metropolitano de Belém, um dos locais mais procurados pelos ribeirinhos em situações como essa.

Gabriel chegou a inventar um “sistema de segurança” para os peconheiros e viaja pela região ensinando os ribeirinhos a imobilizarem os feridos de forma correta. “Eu bolei um aparelho para evitar que a pessoa caia do açaizeiro. É uma cadeirinha feita de cordas que a gente enrola no caule da árvore, e, se o apanhador se desequilibrar, a corda trava e ele não caí. Isso você faz com 5 metros de corda, que não custa nem R$ 10, e evita um traumatismo que pode custar quase R$ 20 mil”, explica o médico.

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A profissão de peconheiro está entre os ofícios mais perigosos do país, segundo um relatório elaborado pelo Tribunal do Trabalho no Pará.

Foto: Alessandro Falco

Saúde para quem?

José Luiz tem 38 anos e trabalha como apanhador para outros ribeirinhos da região. Ele recebe R$ 10 reais por cada rasa que enche e passou por duas cirurgias em menos de um ano. Uma por ter fraturado a costela após cair de um açaizeiro que quebrou, a outra devido a uma apendicite. Está quase há um ano sem poder trabalhar, por ordens médicas. Mas ainda assim se arrisca nas palmeiras. Diante disso, o mais velho dos seus cinco filhos, Ezequiel, de 12 anos, agora precisa subir nas árvores que sucumbiram ao seu pai. Depois da cirurgia, José conta que consegue encher, até 4 rasas por dia, mas, com a ajuda do filho, chega a 10.

O garoto de cabelos loiros, pele parda queimada pelo sol, pequeno e magro, ficou ouvindo a conversa pendurado na janela da casa. José prefere que ele não fale comigo. Seu filho trabalhando é o suficiente para perder o Bolsa Família, o único recurso mensal que possui e que não chega a um salário mínimo. “Tô sem trabalhar. A gente se esforça como pode. O menino me ajuda porque a gente precisa sobreviver”, me disse o homem, com receio. “O pouco que entra [de dinheiro] a gente usa pra comer”, explicou. Devido às características de Ezequiel, José acredita que as chances de acontecer algum acidente com o menino é pequena, mas, mesmo assim, não esconde a preocupação: “não deixo ele fazer nada que seja perigoso”.

Além das quedas, o esforço exigido na atividade da peconha pode gerar deformidades permanentes no corpo das crianças, como a arqueadura dos pés e pernas, o que pode causar artrose do joelho quando envelhecerem.

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Do Pará para o mundo

A produção do açaí é importante para o estado e faz parte do plano Pará 2030, que visa à promoção do desenvolvimento sustentável da região. O juiz do trabalho Otávio Bruno da Silva Ferreira, no entanto, lembra que o documento não traz sequer uma linha sobre a segurança do peconheiro ou sobre o frequente trabalho infantil na colheita. O consumidor nacional e estrangeiro também ignora a importância das crianças na colheita da fruta. “Nota-se, inclusive, a tentativa de elaboração de um Selo Verde, o que revela uma atenção claramente voltada à proteção do meio ambiente em face do desmatamento, sem que, contudo, haja, preocupação com o ser humano que sobe e desce diuturnamente nos açaizeiros para contribuir para o crescimento previsto no programa”, diz o juiz.

Apesar de já existir uma versão da fruta desenvolvida pela Embrapa que pode ser plantada em terra firma e cresce no máximo até três metros, um bom pedaço da produção de açaí paraense ainda depende dos peconheiros e seus facões nas alturas.

‘Não estou dizendo que as pessoas não devem tomar açaí, mas que devem buscar saber a origem do produto’.

Em novembro de 2018, uma força-tarefa do Ministério do Trabalho em conjunto com o Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União e Polícia Rodoviária Federal resgatou 18 trabalhadores em condições análogas à escravidão, entre eles dois adolescentes de 15 anos, na Ilha do Marajó, outro ponto de produção de açaí. Eles dormiam numa estrutura de madeira, sem paredes e com um teto improvisado com lona preta e folhas das palmeiras de açaí, não tinham água potável, banheiros e nenhum equipamento de proteção. Fiscalizações do tipo, infelizmente, são raras. A última havia acontecido em 2011, quando sete trabalhadores foram resgatados.

No fim de 2018, um trabalho de conscientização começou a ser feito pelo Ministério Público do Trabalho do Pará e Amapá a fim de prevenir tragédias na colheita do açaí. O projeto pretende mapear as grandes empresas do Brasil que utilizam açaí e seus derivados, extraídos nos estados, e tentar negociar medidas que possam prevenir e sanear o trabalho infantil e o trabalho escravo na colheita da fruta.

Segundo Edney Martins, ex-assessor do Tribunal Regional do Trabalho no Pará, a invisibilidade é um dos grandes problemas para lidar com o trabalho infantil e com situações de trabalho análogo à escravidão na cadeia de produção da fruta. “O peconheiro é invisível, alguns não têm nem certidão de nascimento”, afirma. Edney explica que em função disso eles ficam expostos a acidentes e fora da escola. Para ele, as pessoas precisam ter consciência do que consomem. “Eu não estou dizendo que as pessoas não devem tomar açaí, mas que devem buscar saber a origem do produto. Aí, eu te faço a pergunta: quantos trabalhadores infantis têm no seu açaí?”.

Correção: 2 de janeiro, 10h

Diferentemente do informado inicialmente, a família de Alessandro colhe cerca de 30 cestos de açaí ao mês. O texto foi alterado.

* Essa reportagem foi realizada com o apoio da Clínica de Trabalho Escravo da Universidade Federal de Minas Gerais e da ANDI – Comunicação e Direitos.

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