Na noite de 4 de julho de 1954 a cidade de San Antonio, no Texas, foi abalada pelo estupro e assassinato de uma menina de 3 anos. O homem acusado por esses crimes era Jimmy Shaver, um piloto sem antecedentes criminais da Base Aérea de Lackland, que ficava na região. Shaver alegou ter perdido a memória do incidente.
A vítima, Chere Jo Horton, de 3 anos, desapareceu por volta da meia-noite do lado de fora da Base da Força Aérea, onde seus pais a deixaram no estacionamento em frente a um bar; ela brincava com o irmão enquanto eles bebiam algo lá dentro. Quando deram pela falta da menina, formaram uma equipe de busca.
Dentro de uma hora, o grupo encontrou um carro estacionado ao lado de um poço de pedras soltas; a roupa de baixo de Chere estava pendurada em uma das portas do carro. Shaver saiu da escuridão. Ele estava sem camisa, coberto de sangue e arranhões. Sem tentar escapar, ele deixou a equipe de busca levá-lo até a beira da estrada. Os espectadores o descreveram como “atordoado” e em estado de “‘transe”.
“O que está acontecendo?” ele perguntou. Ele não parecia bêbado, mas não sabia dizer onde estava, como chegou lá, ou de quem era o sangue espalhado por seu corpo. Enquanto isso, a equipe de busca encontrou o corpo de Horton no poço de pedras. Seu pescoço estava quebrado, suas pernas foram rasgadas e ela havia sido estuprada.
Policiais prenderam Shaver. Aos 29 anos, ele havia se casado recentemente, tinha dois filhos e nenhum histórico de violência. Ele estava no mesmo bar de onde Horton fora sequestrada, mas saiu com um amigo, que disse à polícia que nenhum deles estava bêbado, embora Shaver parecesse sob o efeito de alguma coisa. Antes que os policiais pudessem levar Shaver para a prisão do condado, um policial de outro distrito chegou com ordens da polícia militar para assumir a custódia dele.
Por volta das quatro da manhã, um oficial da Força Aérea interrogou Shaver e dois médicos o examinaram, concordando que ele não estava bêbado. Mais tarde, um deles testemunhou que ele “provavelmente não estava normal … ele estava muito sereno lá fora, o que eu não esperava que estivesse nessas circunstâncias”. Shaver foi levado para a prisão do condado e fichado por estupro e assassinato.
Os investigadores interrogaram Shaver pela manhã. Quando sua esposa veio visitá-lo, ele não a reconheceu. Ele fez sua primeira declaração às 10h30, inflexível em sua defesa de que outro homem era responsável: ele lembrava da imagem de um estranho com cabelos loiros e tatuagens. Depois que o oficial da força aérea voltou à prisão, no entanto, Shaver assinou uma segunda declaração assumindo total responsabilidade. Embora ele ainda não se lembrasse de nada, chegou à conclusão de que devia ser o responsável por aquilo.
Dois meses depois, em setembro, as memórias de Shaver ainda não haviam retornado. O comandante do hospital militar, coronel Robert S. Bray, ordenou uma avaliação psiquiátrica a ser realizada pelo Dr. Louis Jolyon West, chefe dos serviços psiquiátricos da base aérea. Coube a West decidir se Shaver estava legalmente são na época do assassinato.
Shaver passou as duas semanas seguintes sob a supervisão de West. Eles voltaram à cena do crime, tentando refrescar sua memória. Mais tarde, West hipnotizou Shaver e lhe deu uma injeção de pentotal de sódio, ou “soro da verdade”, para ver se conseguia acabar com sua amnésia.
Enquanto Shaver estava sob o efeito do soro, de acordo com o testemunho, ele se lembrou dos eventos daquela noite. Ele confessou ter matado Horton. Ela trouxe à tona lembranças reprimidas de sua prima, “Beth Rainboat”, que abusou sexualmente dele quando criança. Shaver começou a beber em casa naquela noite, quando “teve visões de Deus, que sussurraram em seu ouvido para procurar e matar a menina má Beth”.
Enquanto Shaver estava sob o efeito do soro, ele confessou ter matado Horton. Sob julgamento, ele manteve sua inocência.
No julgamento, West fez um esforço mínimo para inocentar Shaver. O piloto foi considerado culpado. Embora um tribunal de apelações tenha decidido mais tarde que ele havia sofrido um julgamento injusto, Shaver foi condenado novamente no segundo julgamento. Em 1958, em seu 33º aniversário, ele foi executado na cadeira elétrica. Ele manteve sua inocência o tempo todo.
O julgamento, que dependia do testemunho de Shaver, poderia ter terminado de maneira diferente se o júri soubesse do passado de West. De acordo com documentos recém-publicados dos arquivos de West, o psiquiatra tinha alguns dos vínculos mais claros e nefastos de qualquer cientista com o Projeto MKUltra da CIA. Os arquivos de West – especialmente sua correspondência com o especialista em venenos da CIA, Sidney Gottlieb – lançaram uma nova luz sobre um dos projetos mais infames da história da agência. Provavelmente compreendendo mais de 149 subprojetos e pelo menos 185 pesquisadores trabalhando em instituições nos Estados Unidos e Canadá, o MKUltra foi, como o New York Times colocou, “um esforço secreto de 25 anos e 25 milhões de dólares da CIA para aprender como controlar a mente humana.” Suas experiências violaram leis internacionais e o próprio estatuto da agência, que proíbe atividades dentro dos EUA.
No julgamento, West sustentou que Shaver havia sofrido uma série de insanidades temporárias na noite da morte de Chere Jo Horton, mas ele argumentou que Shaver estava “bem são agora”. No tribunal, Shaver não parecia mentalmente são. Uma reportagem de jornal disse que ele “se sentou durante as sessões extenuantes como um homem em transe”, sem dizer nada, nunca se levantando para se espreguiçar ou fumar, embora fosse conhecido por fumar muito.
Grande parte da entrevista com o soro da verdade realizada por West com Shaver foi lida no registro do tribunal. O médico usara perguntas para guiar um Shaver em transe pela cena do crime. “Conte-me sobre quando você tirou a roupa, Jimmy”, ele disse. A transcrição da entrevista, que sobreviveu entre os papéis de West, também mostrou West tentando provar que Shaver havia reprimido as memórias: “Jimmy, você se lembra de quando algo assim aconteceu antes?”. Ou: “Depois que você tirou as roupas dela, o que você fez?”
“Eu nunca tirei as roupas dela”, disse Shaver.
A entrevista foi dividida em três partes e a segunda delas, a do meio, não havia sido gravada. Quando a transcrição voltou, dizia: “Shaver está chorando. Ele foi confrontado com todos os fatos repetidamente.”
West perguntou: “Agora você se lembra de tudo, não é, Jimmy?”
“Sim, senhor”, respondeu Shaver.
Embora os advogados tenham examinado o histórico médico de Shaver, pouca menção foi feita ao hospital militar, onde as cartas arquivadas de West indicam que ele havia conduzido seus experimentos com o MKUltra. Shaver sofria de enxaquecas tão debilitantes que enfiava a cabeça em um balde de água gelada quando sentia uma começando. Sua condição era grave o suficiente para que a Força Aérea o recomendasse para um programa experimental de dois anos. O médico que tentou recrutá-lo não foi identificado nos registros ou transcrições do tribunal.
No tribunal, West disse que nunca tinha chegado a ver se Shaver havia sido tratado no programa experimental. As autoridades de Lackland me disseram que não havia registro dele no índice principal de pacientes. Mas, curiosamente, de acordo com o arquivista da base, todos os registros de pacientes em 1954 haviam sido mantidos, com uma exceção: o arquivo de sobrenomes que começavam entre “Sa” e “St” haviam desaparecido.
O fascínio profissional de West pelo LSD era quase tão antigo quanto a própria droga. Por várias décadas, ele fez parte de um grupo de cientistas de elite que o utilizava em pesquisas ultra-secretas. A dietilamida do ácido lisérgico foi sintetizada em 1938 por químicos da Sandoz Industries, na Suíça, mas não foi introduzida como medicamento até 1947.
Nos anos 50, quando a CIA começou a experimentar com ela em seres humanos, era uma substância nova. Albert Hofmann, o cientista suíço que descobriu suas qualidades alucinógenas em 1943, descreveu-a como uma “droga sagrada” que apontava para “a experiência mística de uma realidade mais profunda e abrangente”.
Na década de 50, mesmo antes dos hippies passarem a fazer uso da droga, “pouquíssimas pessoas tomavam LSD sem que alguém fosse o ‘guia do barato’”, me disse Charles Fischer, pesquisador de drogas. A sugestionabilidade do LSD era semelhante à associada à hipnose; West estudara os dois juntos. “Você pode dizer a alguém para machucar alguém, mas você diz isso de outra forma”, explicou Fischer. “Martele o prego na madeira, e a madeira, talvez, seja um ser humano.”
West parece ter usado produtos químicos livremente em sua prática médica, e suas táticas deixaram uma marca indelével nos psiquiatras que trabalharam com ele. Um deles, Gilbert Rose, ficou tão perplexo com o caso do Shaver que ele escreveu uma peça sobre ele.
“Nos meus 50 anos de profissão, esse foi o momento mais dramático de todos os tempos – quando ele bateu as mãos no rosto e se lembrou de ter matado a garota”, disse Rose em 2002 sobre Shaver e a entrevista sob o soro da verdade. Mas Rose ficou chocado quando eu lhe disse que West havia hipnotizado Shaver além de lhe dar pentotal de sódio. A hipnose, disse ele, não fazia parte do protocolo da entrevista.
Ele também nunca soube como West havia descoberto o caso tão rapidamente.
“Nós estávamos envolvidos desde o primeiro dia”, lembrou Rose. “Jolly me telefonou na manhã do assassinato. A iniciativa veio dele.”
West afirmou que estava no tribunal no dia em que Shaver foi condenado à morte. Na época, ele se opôs veementemente à pena de morte. Sabia ele que seus experimentos poderiam ter levado à execução de um homem inocente e à morte de uma criança? Se sua correspondência com Gottlieb, o chefe do MKUltra na CIA – anterior ao crime por apenas um ano – tivesse sido apresentada no julgamento, o resultado teria sido o mesmo?
Assim que tiveram acesso a ele, cientistas do governo viram o LSD como uma potencial droga milagrosa para a Guerra Fria. As pesquisas sobre o LSD começaram de fato logo após o final da Segunda Guerra Mundial, quando a inteligência americana descobriu que a URSS estava desenvolvendo um programa para influenciar o comportamento humano através de drogas e hipnose. Os Estados Unidos acreditavam que os soviéticos podiam extrair informações de pessoas sem seu conhecimento, programá-las para fazer confissões falsas e talvez persuadi-las a matar sob comando.
Em 1949, a CIA, ainda em sua infância, lançou o Projeto Bluebird, um programa de controle da mente que testava drogas em cidadãos americanos – a maioria em penitenciárias federais ou em bases militares – que nem conheciam, muito menos consentiam, a bateria de procedimentos aos quais foram submetidos.
Seu abuso encontrou justificativa adicional em 1952, quando, na Coreia, pilotos americanos capturados admitiram nas rádios nacionais terem pulverizado o interior coreano com armas biológicas ilegais. Foi uma confissão tão além dos limites que a CIA culpou os comunistas: os prisioneiros de guerra devem ter sido submetidos a uma “lavagem cerebral”. Esta expressão, uma tradução literal do chinês “xi nao”, não apareceu em língua inglesa antes de 1950. Isso tudo articulou um conjunto de medos que haviam se fundido nos EUA do pós-guerra: que uma nova classe de produtos químicos pudesse reprogramar e automatizar a mente humana.
“Você pode dizer a alguém para machucar alguém, mas você diz isso de outra forma”, explicou Fischer. “Martele o prego na madeira, e a madeira, talvez, seja um ser humano.”
Quando os prisioneiros de guerra americanos retornaram, o exército trouxe uma equipe de cientistas para “desprogramá-los”. Entre esses cientistas estava West. Nascido no Brooklyn em 1924, ele havia se alistado na Força Aérea durante a Segunda Guerra Mundial, chegando ao posto de coronel. Seus amigos o chamavam de “Jolly”, por seu nome do meio, sua corpulência impressionante e sua personalidade exagerada. Quando saiu da Força Aérea, passou a pesquisar métodos de controle do comportamento humano na Universidade de Cornell. Mais tarde, ele alegaria ter estudado 83 prisioneiros de guerra, 56 dos quais foram forçados a fazer falsas confissões. Ele e seus colegas foram creditados por reintegrar os prisioneiros de guerra na sociedade ocidental e, talvez mais importante, fazê-los renunciar a suas alegações sobre o uso de armas biológicas.
O sucesso de West com os prisioneiros de guerra lhe deu entrada aos escalões da comunidade de inteligência. Gottlieb, o especialista em venenos que chefiava a divisão química da equipe de serviços técnicos da CIA, juntamente com Richard Helms, chefe de operações da CIA para a Diretoria de Planos, convenceram o então diretor da agência, Allen Dulles, de que as operações de controle mental eram o futuro. Inicialmente, a agência queria apenas impedir possíveis lavagens cerebrais realizadas pelos soviéticos. Mas o programa defensivo tornou-se ofensivo. A Operação Bluebird se transformou na Operação Alcachofra, uma busca por um soro da verdade para diversos fins.
Em discurso na Universidade Princeton, Dulles alertou que espiões comunistas poderiam transformar a mente americana em “um fonógrafo tocando um disco colocado no seu eixo por um gênio externo”. Poucos dias após essas observações, em 13 de abril de 1953, ele oficialmente colocou em movimento o Projeto MKUltra.
Pouco se sabe sobre o programa. Depois de Watergate, Helms (que na época era diretor da CIA) ordenou que Gottlieb destruísse todos os documentos do MKUltra; em janeiro de 1973, a equipe de serviços técnicos destruiu inúmeros documentos descrevendo o uso de alucinógenos.
Em meados da década de 1970, depois que o Times revelou a existência do MKUltra em sua primeira página, o governo lançou três investigações separadas, todas prejudicadas pela destruição de seus arquivos pela CIA: a Comissão do vice-presidente Nelson Rockefeller sobre as atividades da CIA nos Estados Unidos (1975); o Comitê Selecionado do senador Frank Church para estudo de Operações Governamentais com respeito às Atividades de Inteligência (1975-6); e as audiências conjuntas do Comitê Selecionado do Senado dos senadores Edward Kennedy e Daniel Inouye sobre o Projeto MKUltra, o Programa de Pesquisa em Modificação Comportamental da CIA (1977). Quando os registros estavam disponíveis, eles foram editados; quando as testemunhas foram convocadas para depor perante o Congresso, elas diziam não lembrar com precisão dos fatos.
Sabemos de fato que o objetivo mais amplo do projeto era “influenciar o comportamento humano”. Sob seu espectro havia pelo menos 149 subprojetos, muitos envolvendo pesquisas sobre participantes involuntários. Gottlieb, cuja aptidão e amoralidade lhe rendeu o apelido de “Feiticeiro Negro”, desenvolveu artefatos diretamente da ficção científica: bombas fedorentas de alta potência, misturadores de drinks cheios de drogas, conchas marinhas explosivas, creme dental envenenado. Tendo convencido uma empresa farmacêutica de Indianápolis a replicar a fórmula suíça para o LSD, a CIA tinha um suprimento interno ilimitado de sua nova droga favorita. A agência esperava produzir mensageiros capazes de incorporar mensagens ocultas em seus cérebros, implantar falsas memórias e remover verdadeiras em pessoas sem seu conhecimento, converter grupos em ideologias opostas e muito mais. O objetivo mais elevado foi a criação de assassinos hipnoprogramados.
O trabalho mais sensível foi realizado longe de Langley – dirigido a cientistas em faculdades, hospitais, prisões e bases militares em todos os Estados Unidos e Canadá. A CIA deu a estes cientistas pseudônimos, direcionando-lhes dinheiro e dando instruções sobre como esconder suas pesquisas de olhares curiosos, incluindo os de seus objetos de estudo, que nada sabiam. Seu trabalho abrangeu tudo, desde estimulação eletrônica do cérebro até privação sensorial, “dor induzida” e “psicose”. Eles procuraram maneiras de causar ataques cardíacos, espasmos graves e dores de cabeça intensas. Se as drogas não funcionassem, eles tentariam dominar ESP, vibrações ultrassônicas e envenenamento por radiação. Um projeto chegou a tentar aproveitar o poder dos campos magnéticos.
O MKUltra era tão altamente confidencial que, quando John McCone sucedeu Dulles como diretor da CIA no final de 1961, ele não foi informado de sua existência até 1963. Menos de meia dúzia de agentes da agência estavam cientes disso em qualquer período durante seus 20 anos de história.
West chefiou o departamento de psiquiatria da UCLA e o renomado centro de neurociência da universidade até sua aposentadoria em 1988. Um dia, em meio a um lote de trabalhos de pesquisa sobre hipnose nos arquivos de West, encontrei cartas trocadas entre West e seu agente da CIA, “Sherman Grifford” – o nome da capa, de acordo com “The Search for the Manchurian Candidate”, de John Marks, indicava que este se tratava de Sidney Gottlieb. West, que certa vez escreveu para um editor de revista dizendo que “nunca havia trabalhado para a CIA”, de fato havia trabalhado em estreita colaboração com o próprio “Feiticeiro Negro” da agência.
As cartas começavam no meio do assunto, sem prólogo ou informações preliminares. A primeiro era datada de 11 de junho de 1953, apenas dois meses após o início do MKUltra, quando West era chefe do serviço de psiquiatria na base aérea de Lackland.
Quem seriam as cobaias? West listou quatro grupos: aviadores de baixo escalão, voluntários, pacientes e “outros, possivelmente incluindo prisioneiros de bases locais”.
Ao se referir a Gottlieb como “SG”, West descreveu os experimentos que ele propôs realizar usando uma combinação de drogas psicotrópicas e hipnose. Ele começou com um plano para descobrir “o grau em que a informação pode ser extraída de sujeitos presumivelmente pouco dispostos (através da hipnose sozinha ou em combinação com certos medicamentos), possivelmente com amnésia subsequente do interrogatório e/ou alteração da lembrança do sujeito da informação sabida anteriormente. Outro item proposto foi aperfeiçoar “técnicas para implantar informações falsas em indivíduos específicos … ou para induzir neles distúrbios mentais específicos”. Ele esperava criar “mensageiros” que levassem “uma mensagem longa e complexa” embutida secretamente em suas mentes, e estudar “a indução de estados de transe por drogas”. Sua lista estava perfeitamente alinhada com os objetivos do MKUltra.
“Não é necesssário dizer que”, acrescentou West, os experimentos “devem ser postos à prova em ensaios práticos em campo”. Para esse fim, ele pediu a Gottlieb “algum tipo de carta branca”.
Quem seriam as cobaias? Ele listou quatro grupos: aviadores de baixo escalão, voluntários, pacientes e “outros, possivelmente incluindo prisioneiros de bases locais”. Somente os voluntários seriam pagos. Com os outros tudo poderia ocorrer sem sua vontade expressa e, embora não estivesse explicitamente escrito, sem seu conhecimento. Seria mais fácil preservar seu sigilo se ele estivesse “induzindo distúrbios mentais específicos” em pessoas que já os exibiam. “Certos pacientes que necessitam de hipnose em terapia ou sofrem de distúrbios dissociativos (transes, fugas, amnésias etc.) podem se prestar a nossos experimentos”. As investigações oficiais sobre o MKUltra renderam pouca informação sobre seus assuntos, mas a carta de West sugere que o programa tinha grande abrangência.
A resposta de Gottlieb veio em papel timbrado da “Chemrophyl Associates”, uma empresa de fachada que ele usava para se corresponder com os subcontratados do MKUltra. “Meu bom amigo”, escreveu, “eu estava imaginando se sua aparente compreensão rápida e abrangente de nossos problemas poderia ser real. … Você realmente desenvolveu uma imagem admiravelmente exata do que estamos buscando. Sou-lhe muito grato por isso.”
Gottlieb saudou seu novo recruta: “Nós ganhamos um importante aliado no relacionamento que estamos desenvolvendo com você.”
West respondeu a camaradagem: “Fico muito feliz ao perceber que você me considera ‘um aliado’”, respondeu ele. “Certamente não há empreendimentos mais vitais concebíveis nestes tempos.”
Em 1954, na mesma época do assassinato de Chere Jo Horton, West começou a dividir seu tempo entre Lackland e a Faculdade de Medicina da Universidade de Oklahoma, onde lideraria o departamento de psiquiatria. West havia dito a seu possível empregador que suas funções em Lackland eram “puramente clínicas” e que “não estava conduzindo pesquisas, confidenciais ou não” – e pediu ao conselho de administração de Oklahoma permissão para aceitar dinheiro do Fundo Geschickter Para Pesquisas Médicas, que ele chamou de “uma fundação de pesquisa privada sem fins lucrativos”. De fato, como a CIA reconheceu mais tarde, Geschickter era outra das ficções de Gottlieb, uma organização de fachada que o habilitava.
Em 1956, West relatou à CIA que os experimentos que ele começara em 1953 finalmente haviam rendido frutos. Em um artigo de 1956 intitulado “Os estudos psicofisiológicos da hipnose e da sugestionabilidade”, ele afirmou ter alcançado o impossível: ele sabia como substituir “verdadeiras memórias” por “falsas” em seres humanos sem o seu conhecimento. Sem detalhar incidentes específicos, ele colocou em termos leigos: “Verificou-se ser possível capturar a memória de um evento definido na vida de um indivíduo e, por sugestão hipnótica, provocar a lembrança consciente subsequente de que esse evento nunca realmente ocorreu, mas que um evento diferente ( evento fictício) realmente ocorreu.” Ele fez isso, afirmou, administrando “novos medicamentos” eficazes para “acelerar a indução do estado hipnótico e aprofundar o transe que pode ser produzido em determinados sujeitos”.
Nos Arquivos de Segurança Nacional em Washington DC, encontrei a versão de “Estudos Psicofisiológicos da Hipnose e Sugestibilidade” que a CIA entregou aos senadores Kennedy e Inouye em 1977. O nome e a afiliação de West foram editados, conforme o esperado. Mas a versão da CIA também era, em comparação, mais curta e diluída. O documento de West tinha 14 páginas. Este tinha cinco, incluindo uma capa. Surpreendentemente, não houve menção à conquista triunfante de West, a substituição da “memória de um evento definido na vida de um indivíduo” por um “evento fictício”.
Uma passagem, ausente no original de West, afirma que a CIA jamais usou LSD em estudos: “Os efeitos do [LSD e outras drogas] na produção, manutenção e manifestações de estados desassociados nunca foram estudados”.
West, é claro, estudou esses efeitos por anos. Mas quando se tratou de elaborar sobre suas descobertas em implantar memórias e controlar pensamentos, mesmo no artigo encontrado nos arquivos de West, ele ofereceu alguns detalhes. Ele parecia estar em uma fase rudimentar de sua pesquisa. O ácido, conforme ele escreveu, tornava as pessoas mais difíceis de hipnotizar; era melhor aplicar a hipnose juntamente com longos períodos de isolamento e privação do sono. Fazendo uso de sugestões hipnóticas, ele afirmou, “uma pessoa pode ser informada de que um ano se passou e, durante o decorrer deste ano, muitas mudanças ocorreram … de modo que agora é aceitável que ele discuta assuntos que ele achava que não deveria … Um indivíduo que insiste que deseja fazer uma coisa revelará que secretamente deseja exatamente o contrário.”
Teria a CIA manipulado o documento original de West para enganar o comitê do Senado? E, se de fato fez isso, por que a agência teria se esforçado tanto para esconder descobertas experimentais que não foram tão reveladoras assim? Funcionários da agência alegaram que o programa havia sido um fracasso colossal, levando a manchetes como “A gangue que não conseguiu cometer crimes direito”. Talvez a agência quisesse que o mundo assumisse que o MKUltra era um fracasso e esquecesse tudo.
A CIA parece ter reduzido o MKUltra em meados dos anos 60, de acordo com testemunhos do Congresso e registros financeiros que sobreviveram, mas a pesquisa de Jolly West, com financiamento do governo, continuou em ritmo acelerado. No final do outono de 1966, West chegou a São Francisco para estudar os hippies e o LSD. Alto, largo e com corte à escovinha, com uma aparência totalmente americana de acordo com seu passado militar, West montou um novo guarda-roupa e começou a pular cortes de cabelo. Ele garantiu uma subvenção do governo e tirou um ano sabático da Universidade de Oklahoma, teoricamente para buscar uma bolsa de estudos em Stanford, embora a universidade não tivesse registro de sua participação em um programa lá.
Quando ele chegou a Haight-Ashbury, West era o único cientista do mundo que previra o surgimento de “cultos de LSD” potencialmente violentos, como a família de Charles Manson. Em um livro de psiquiatria de 1967, West havia contribuído com um capítulo chamado “Alucinógenos”, alertando estudantes sobre uma “substância notável” ocupando os campi das faculdades e cidades. O LSD era conhecido por deixar os usuários “incomumente suscetíveis e emocionalmente instáveis”. Conforme o texto, a substância apelava a crianças alienadas que almejavam “atividades proibidas compartilhadas em um ambiente de grupo para fornecer um sentimento de pertencimento”.
O ácido, conforme ele escreveu, tornava as pessoas mais difíceis de hipnotizar; era melhor aplicar a hipnose juntamente com longos períodos de isolamento e privação do sono.
Outro de seus artigos, “Os perigos da hipnose”, de 1965, previa o surgimento de grupos perigosos liderados por “malucos” que hipnotizavam seus seguidores para cometerem crimes violentos. Ele citou dois casos: um duplo assassinato em Copenhague cometido por um homem hipnotizado e um “crime militar” induzido experimentalmente em uma base não revelada do Exército dos EUA. (Não está claro se o último tenha se referido ao assassinato de Chere Jo Horton cometido por Shaver.)
Ele também supervisionou um estudo em Oklahoma City, no qual contratou informantes para se infiltrar em gangues de adolescentes e gerar “uma mudança fundamental” em “assuntos morais, religiosos ou políticos”. O título do projeto era “Conversão em massa” e havia sido financiado por Gottlieb.
Em Haight, West providenciou o uso de uma casa vitoriana em ruínas na Frederick Street, onde montou o que descreveu como um “laboratório disfarçado de abrigo hippie”. O local foi inaugurado em junho de 1967, no início do chamado “verão do amor”. Ele instalou seis estudantes de pós-graduação no “abrigo”, dizendo-lhes para “se vestirem como hippies” e “atrair” jovens itinerantes para o apartamento. Os desconhecidos eram bem-vindos para fazer o que quisessem e permanecer o tempo que quisessem, desde que não se importassem que os alunos de pós-graduação anotassem seu comportamento.
De acordo com registros nos arquivos de West, seu “abrigo” foi financiado pelo Foundations Fund for Research in Psychiatry, Inc., que também havia financiado vários de seus outros projetos ao longo das décadas e das instituições às quais West pertenceu. O Dr. Gordon Deckert, sucessor de West como presidente da Universidade de Oklahoma, me disse que encontrou documentos na mesa de West que revelaram que o Foundations Fund era uma fachada para a CIA.
Este não teria sido o primeiro “laboratório disfarçado” da agência em São Francisco. Alguns anos antes, a sugestivamente nomeada Operação Clímax da Meia-noite viu agentes da CIA abrirem pelo menos três refúgios na baía de São Francisco disfarçados de bordéis de luxo, equipados com espelhos de mão única e fotografias eróticas. Um espião chamado George Hunter White e seus colegas contrataram prostitutas para atrair futuros clientes para as casas, onde eram servidos coquetéis com ácido aos homens. O objetivo era verificar se o LSD, associado ao sexo, poderia ser usado para obter informações confidenciais dos homens. White escreveu mais tarde para seu supervisor da CIA: “Eu era um missionário muito menor, na verdade um herege, mas trabalhei de todo o coração nas vinhas porque era muito, muito, muito divertido.”
No abrigo de Haight-Ashbury, porém, os motivos de West eram vagos. Ninguém parecia ter uma compreensão firme do objetivo do projeto – nem mesmo os envolvidos nele. Os alunos de pós-graduação contratados para trabalhar no laboratório de “abrigo” de West foram designados a manter diários de seu trabalho. Em certos momentos, quase todos esses estudantes admitiram que algo não fazia sentido. Eles não tinham certeza do que deveriam estar fazendo, ou por que West estava lá. E muitas vezes ele não estava lá.
Um dos diários dos arquivos de West pertencia a um estudante de psicologia de Stanford que morou no abrigo naquele verão. A experiência foi inútil a ponto de não ter valor, ela escreveu. Quando os “visitantes” chegaram, “ninguém fez questão de descobrir algo sobre eles”. Mais frequentemente, os hippies não apareciam, pois muitos deles aparentemente olhavam para o local com suspeita. “O que diabos Jolly está fazendo, é como um zoológico”, enfureceu-se o estudante. “Ele está estudando nós ou eles?”
Quando West fez uma de suas raras aparições, ele estava vestido como um “hippie bobo”; às vezes ele trazia amigos para casa. A atitude geral deles, escreveu ela, “era que essa era uma boa oportunidade para se divertir. … Eles passaram boa parte do tempo chapados.” Ela acrescentou: “Eu sinto que ninguém está sendo honesto e direto, e a coisa toda é um enorme fingimento. … O que ele está tentando provar? Ele está interessado em drogas, isso é claro. O que mais?”
Em dezembro de 1974, o MKUltra finalmente veio à luz em um fantástico flash de manchetes e intrigas. Seymour Hersh publicou sobre na primeira página do Times: “Enorme operação da CIA conduzida nos EUA contra as forças antiguerra.” As três investigações do governo que se seguiram – as audiências da Comissão Rockefeller, do Comitê de Church e do Comitê Selecionado Kennedy-Inouye – analisaram atividades domésticas ilegais de várias agências federais de inteligência, incluindo escutas telefônicas, abertura de correspondência e testes de drogas sem conhecimento de cidadãos americanos.
O relatório final do Comitê de Church revelou uma avaliação interna do MKUltra de 1957 pelo inspetor geral da CIA. “Devem ser tomadas precauções”, alertou o documento, “para ocultar essas atividades do público americano em geral. O conhecimento de que a agência está envolvida em atividades antiéticas e ilícitas teria sérias repercussões.” Uma revisão de 1963 do inspetor-geral colocou a situação de forma ainda mais séria: “Uma fase final do teste dos produtos MKUltra coloca em risco os direitos e interesses dos cidadãos dos EUA.”
O Comitê de Church descobriu que o MKUltra havia causado a morte de pelo menos dois cidadãos americanos. Um era um paciente psiquiátrico que havia sido injetado com um derivado sintético da mescalina. O outro era Frank Olson, um cientista militar contratado que inconscientemente usara LSD em uma pequena reunião da agência no interior de Maryland, presidida pelo próprio Gottlieb. Olson caiu em depressão irreparável depois disso, o que o levou a se atirar pela janela de um hotel em Nova York, onde os agentes o levaram para “tratamento”. (A continuação da investigação conduzida pelo filho de Olson, Eric – dramatizada por Errol Morris na série “Wormwood” – sugere fortemente que a CIA providenciou para que os agentes forjassem seu suicídio, jogando-o pela janela porque eles temiam que ele mencionasse o MKUltra e o uso militar de armas biológicas na Guerra da Coreia.)
As notícias da morte de Olson chocaram uma nação que já se recuperava de Watergate e agora estava menos inclinada do que nunca a confiar em suas instituições. O governo tentou conter a controvérsia, aprovando novos regulamentos sobre experimentação em seres humanos. A destruição de Gottlieb dos arquivos do MKUltra foi investigada pelo Departamento de Justiça em 1976, mas, segundo o Times, “foi abandonada silenciosamente”. Gottlieb testemunhou perante o Senado em 1977 apenas sob a condição de receber imunidade criminal.
O Senado exigiu a formação de um programa federal para localizar as vítimas dos experimentos com o MKUltra e buscar acusações criminais contra os autores. Esse programa nunca foi criado. Os registros remanescentes nomearam 80 instituições, incluindo 44 universidades e faculdades, e 185 pesquisadores, entre eles Louis Jolyon West. O Times identificou West como um dos poucos cientistas que participaram secretamente do MKUltra sob um disfarce acadêmico.
No entanto, nenhum pesquisador foi investigado em nível federal e nenhuma vítima foi jamais notificada. Apesar da indignação dos líderes do Congresso e de mais de três anos de manchetes sobre as brutalidades do programa, ninguém – nem o “Feiticeiro Negro” Sidney Gottlieb, nem o alto funcionário da CIA Richard Helms, nem Jolly West – sofreram consequências legais.
Este artigo é um trecho adaptado de “Chaos: Charles Manson, the CIA, and the Secret History of the Sixties.”
Tradução: Maíra Santos
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