Antônio José Severino de Carvalho foi a uma consulta médica, em 2014, para tratar de um problema na mão causado por um acidente de trânsito. Quando o médico que o atendeu em Goiânia soube que ele trabalhava como operador de máquina na Sama, mineradora que por mais de 50 anos explorou as reservas de amianto em Minaçu, interior de Goiás, pediu também uma tomografia do seu tórax. O exame mostrou uma mancha num dos pulmões. O diagnóstico: asbestose, uma das principais doenças ocupacionais causadas pela exposição ao amianto.
Também chamado de asbesto, o amianto é uma fibra mineral que no Brasil é usada principalmente misturada ao cimento como matéria-prima de telhas e caixas d’água. Praticamente indestrutível, resistente ao fogo e macia o suficiente para ser tecida, ela reforça a rigidez do cimento, permitindo que telhas e caixas sejam mais finas e leves.
O problema é que ele é altamente cancerígeno, segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, que recomendou que seu uso seja banido no mundo todo – já foi proibido em mais de 60 países. Aqui, o Supremo Tribunal Federal determinou o fim da exploração do amianto em 2017, mas a operação da Sama só parou mesmo em fevereiro de 2019 e agora a empresa aguarda a análise de seus recursos finais pelo tribunal.
Ao retornar a Minaçu, Carvalho procurou Eduardo Andrade Ribeiro, um dos médicos do trabalho da empresa, para mostrar o exame. A notícia não foi bem recebida. “Quando ele olhou a tomografia, bateu na mesa e rabiscou o laudo de cima a baixo”, me contou o ex-funcionário, demitido cerca de um ano depois, em 2015, após quase 14 anos na Sama.
Depois que saiu da Sama, Carvalho, que tem 44 anos, não conseguiu mais trabalhar por conta dos sintomas da asbestose, que se agravaram desde o diagnóstico. Quando caminha, precisa parar para “caçar o fôlego”. Ele fez questão de me mostrar os novos exames, recebidos em setembro – os antigos, a que ele diz que nunca mais teve acesso, ficaram na Sama. A tomografia computadorizada mostra com detalhes o endurecimento do seu pulmão, uma das principais características da asbestose, também conhecida como “pulmão de pedra”. Mas, para o médico Ribeiro, a mancha não era um sinal da doença, e, sim, um problema causado pelo cigarro. Carvalho diz que nunca fumou.
Mostrei a tomografia para o pneumologista Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. Especialista em medicina do trabalho, ele pesquisa as doenças provocadas pelo amianto desde 1989. Castro analisou o exame e não teve dúvidas: “O laudo é claro em afirmar que há lesões iniciais compatíveis com exposição ao asbesto”.
Documentos que o Intercept analisou, incluindo laudos de exames, certidões de óbito, dois estudos científicos financiados pela Sama e pela indústria do amianto, e o depoimento de ex-funcionários, mostram que não foi um caso isolado. Ribeiro e outros médicos pagos pela Sama ajudaram a ocultar doenças causadas pelo amianto nos trabalhadores da empresa. Afinal, melhor do que ter que negar que a sua operação causa asbestose e câncer é nunca ter nenhum trabalhador diagnosticado com essas doenças. E a Sama se esforçou para isso. Não que a mineradora esteja interessada em responder qualquer pergunta a respeito. Sua única resposta a todos os meus questionamentos sobre as informações desta reportagem foi: “não iremos comentar”.
A Sama é um braço do grupo Eternit, que responde a processos milionários por doenças causadas por amianto na Europa. Nas últimas décadas, a empresa bancou mais de R$ 2 milhões em duas pesquisas científicas que defendem que a exposição ao amianto não causa doenças e contratou ao menos cinco médicos cujos diagnósticos curiosamente quase nunca apontavam a existência de doenças relacionadas à fibra. A Sama também financiou dois hospitais que tratavam seus trabalhadores em Minaçu e em Goiânia.
‘Quando ele olhou a tomografia, bateu na mesa e rabiscou o laudo de cima a baixo.’
Os principais afetados pelo amianto são pessoas como Carvalho, que lidam diretamente com a fibra, seja nas minas nas quais o material é extraído, no processo de beneficiamento na fábrica, em que o mineral é quebrado em pedaços muito pequenos, ou no comércio e instalação de produtos que o levam na composição. Em geral, é difícil ligar causa e consequência: os primeiros sintomas das doenças que o asbesto provoca podem demorar até 50 anos para se manifestar.
Além da asbestose, que vai lentamente endurecendo o pulmão dos afetados, a fibra também é associada a diversos tipos de câncer. O mais letal, chamado mesotelioma, pode ocorrer até em quem já teve exposições ocasionais a partículas microscópicas do amianto – ao furar uma telha em casa sem usar máscara de proteção, por exemplo. No Brasil, 788 pessoas morreram por doenças relacionadas ao amianto entre 2011 e 2017, segundo o dado mais recente do Ministério da Saúde. Mas é certo que há subnotificação, como até o próprio Ministério da Saúde admite.
Areia no peito
Osvaldino José de Oliveira, 59 anos, foi funcionário da Sama de 1982 a 1992. Mas ele calcula que já estava exposto ao amianto desde o final da década de 1970, quando ainda era menor de idade e trabalhava “carregando caminhão” para a empresa.
Responsável por fazer a limpeza dos filtros das máquinas usadas no beneficiamento do produto na usina – que retinham, obviamente, partículas microscópicas de amianto –, ele constantemente sentia falta de ar e dores no peito. “Eles davam uma máscara de algodão fraquinha que era para usar três dias, mas só prestava no primeiro. Quando aquela poeira do amianto subia, tapava o olho. Eu saía apalpando sem enxergar nada, até alcançar o bebedouro para lavar o rosto com água gelada”, recorda.
Oliveira me disse que fazia exames regulares quando ainda estava na Sama, mas nunca recebeu nenhum diagnóstico que indicasse algum problema de saúde. Em 1997, quatro anos após deixar a empresa, ele foi diagnosticado com doença pulmonar obstrutiva crônica, que limita o fluxo de ar. Enquanto conversávamos, ele também fazia pausas constantes para respirar fundo. O laudo assinado pelo médico Raimundo Augusto Veloso, de Goiânia, diagnosticou asbestose, causada pela exposição ao amianto e agravada pelo fumo. “Eu adoeci lá dentro. Sinto como se tivesse uma areia no peito”.
Os primeiros sintomas das doenças que o asbesto provoca podem demorar até 50 anos para se manifestar.
O ex-mineiro me contou que, quando os sintomas começaram a impedi-lo de trabalhar, a Sama o mandou embora. Tanto ele como Carvalho foram demitidos sob a justificativa de que a empresa precisava fazer cortes. Atitudes como essas, diz o pneumologista Hermano Castro, são uma forma da indústria ocultar o adoecimento dos trabalhadores. “São demitidos exatamente os doentes, mas dizem que é uma questão econômica da empresa”.
O caminho entre a casa na zona rural de Minaçu, em que Oliveira vive com a esposa, dois filhos e uma neta de cinco anos, e o hospital inclui uma estrada de terra esburacada, o que torna ainda mais penoso o deslocamento ao hospital todas as vezes em que passa mal, o que ocorre com frequência. “E o doutor Eduardo [Ribeiro] falava que eu não tinha problema nenhum e que aquele laudo do médico de Goiânia não valia”, recordou o trabalhador, ao falar da reação do médico da Sama quando ele mostrou o laudo do colega que o atendera na capital. “Ele ganha dinheiro da Sama, então claro que vai fazer o que querem”.
Publicamente, a Sama faz questão de dizer que a sua produção de amianto não causa problemas à saúde. A empresa trabalhava com uma variedade conhecida como amianto branco, ou crisotila, supostamente menos cancerígena. “Não existe nem existirá mais qualquer caso de doença relacionada ao amianto no país. O motivo é simples: o uso do amianto hoje é totalmente seguro”, bradou o então diretor-geral da Sama Rubens Rela Filho, em um artigo publicado no jornal O Globo em 2015.
Ribeiro e os outros médicos especialistas em saúde do trabalho ligados à empresa ajudam nessa estratégia. Além de trabalhar para a Sama como médico do trabalho, Ribeiro, por exemplo, também serviu de garoto propaganda da empresa em anúncios publicados por diversas revistas nacionais, entre elas a Veja. Nas peças, se lia que “o amianto crisotila é um mineral de exploração e aplicação controladas, responsáveis e bom para o Brasil”. Vestindo jaleco branco e com um estetoscópio pendurado no pescoço, o médico usava sua imagem para dar credibilidade à ideia de que a fibra cancerígena, apelidada de pó da morte, não provoca danos à saúde.
Quando estive em Minaçu, procurei Ribeiro pessoalmente, mas ele pediu que eu entrasse em contato através da assessoria de comunicação da Sama. A empresa me respondeu apenas que não iria comentar.
No Dossiê Amianto Brasil, relatório elaborado em 2010 por deputados federais de um grupo de trabalho formado para analisar as implicações do uso do amianto no Brasil, tanto Ribeiro quanto Milton do Nascimento, que trabalhou como coordenador de medicina do trabalho do grupo Eternit, do qual a Sama faz parte, são apresentados como “propagandistas das empresas [de amianto]”, ao defenderem a indústria do amianto em debates, conferências e audiências públicas. “O discurso dos dois é similar e vai além do que lhes caberia como profissional (sic) da área”, aponta o documento.
Em maio de 2017, durante uma audiência pública no Senado que discutia o banimento do minério no Brasil, Nascimento foi identificado como “médico especialista no tema” e cravou que “é possível, sim, trabalhar com amianto com qualidade sem pôr em risco o trabalhador”. Ele deixou a empresa no mesmo mês, após mais de 20 anos de serviços prestados. Ribeiro ainda trabalha na Sama e tem até uma clínica particular no terreno da mineradora, em Minaçu.
A junta médica que nada via
Em 1991, a então Secretaria Nacional do Trabalho do governo Fernando Collor lançou uma portaria ratificando uma convenção da Organização Internacional do Trabalho que obrigava todas as empresas que exploravam amianto a acompanhar e realizar exames de saúde periódicos em seus funcionários e ex-funcionários por até 30 anos depois que eles deixassem o emprego. Alguns anos depois, em 1995, a Associação Brasileira de Expostos ao Amianto, a Abrea, começou a denunciar publicamente os casos de adoecimento dos trabalhadores da Sama, aumentando a pressão sobre a empresa. Após um par de anos, a mineradora criou uma junta médica para acompanhar o estado de saúde dos trabalhadores.
A junta era formada por três médicos selecionados pela própria Sama: Ericson Bagatin, Luiz Eduardo Nery e Mário Terra Filho. Posteriormente, eles assinaram um estudo sobre os efeitos da exposição dos trabalhadores ao amianto também financiado pela Sama.
A empresa tinha por política propor a todos os seus ex-funcionários um acordo extrajudicial em que garantia pagamento de plano de saúde e de indenização caso a junta diagnosticasse alguma doença relacionada ao amianto. Em contrapartida, o ex-funcionário se comprometia a não processar a empresa. O diagnóstico, no entanto, quase nunca acontecia.
O antropólogo Arthur Pires Amaral morou por dez meses em Minaçu e investigou a história de 13 ex-funcionários que se consultavam regularmente com a junta médica. Seis deles morreram após apresentarem sintomas de insuficiência respiratória, tosse constante, cansaço físico extremo e dores nas costas e no tórax, características de doenças relacionadas ao amianto. Apenas dois deles, porém, foram diagnosticados pela junta com doenças associadas à fibra. Nas certidões de óbitos, as hipóteses de asbestose ou mesotelioma eram descartadas. A causa da morte era sempre descrita como câncer de pulmão, insuficiência respiratória ou até cirrose hepática, como Amaral relata em sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal de Goiás intitulada “Com o peito cheio de pó”.
‘Eu adoeci lá dentro. Sinto como se tivesse uma areia no peito’.
Assim como Carvalho, outro ex-funcionário, ainda vivo e com os mesmos sintomas, ouviu dos médicos da empresa que seu quadro não tinha relação com o fato de ter trabalhado por anos respirando fibras cancerígenas. A Sama reconheceu que o amianto adoeceu oito dos 13 trabalhadores. Para esses, a empresa pagou plano de saúde e sete deles ganharam indenizações entre R$ 5 mil e R$ 22 mil.
Conversei com os familiares de Manoel de Souza e Silva Júnior, um ex-funcionário que assinou o acordo extrajudicial e morreu de asbestose em 2008, aos 64 anos. Ele passava anualmente pela junta médica, mas só descobriu que estava doente em 2006, depois de se consultar com um cardiologista particular que lhe pediu um exame do pulmão. “Para a surpresa dele, apareceu um nódulo nessa radiografia”, me disse o familiar, que pediu para não ser identificado por medo de ser perseguido ou estigmatizado na cidade.
Ao comparar esse exame com outro que tinha feito pela Sama há alguns meses, Silva Júnior descobriu que a mancha já estava lá, mas havia sido ignorada pelos médicos da mineradora. O laudo de 24 de junho de 2005, assinado pelos médicos da junta Ericson Bagatin, Luiz Eduardo Nery e Mário Terra Filho, afirmava que nenhuma alteração respiratória relacionada ao asbesto tinha sido identificada.
Os familiares lembram que a Sama, ao ser informada sobre o problema, garantiu que pagaria o tratamento e todos os custos decorrentes dele, como transporte e hospedagem em Goiânia ou em São Paulo, centros de referência para a doença. Era uma forma de compensar o erro dos seus médicos, que não viram – ou fingiram que não viram – a mancha antes.
A boa vontade da empresa durou tempo suficiente para ela conseguir autorização da família e enviar um pedaço do pulmão de Silva Júnior para o exterior. O médico Victor Roggli, da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, examinou a amostra e concluiu que não era possível relacionar o problema de saúde com a exposição ao amianto. Especialista em doenças relacionadas à fibra, Roggli também atua como consultor para empresas que produzem amianto. Depois disso, me disse o parente, a Sama não “ajudou” mais.
Após a morte de Silva Júnior, a família enviou uma amostra do pulmão do ex-funcionário para o pneumologista Ubiratan de Paula Santos, membro da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Ao contrário do laudo encomendado no exterior pela Sama, esse exame confirmava a relação entre a doença que levou a morte do ex-funcionário e a exposição ao amianto.
Médicos e embaixadores do amianto
Os pneumologistas Bagatin, Nery e Terra Filho, escolhidos pela Sama para formar sua junta médica, são autores de duas pesquisas científicas que, juntas, custaram R$ 4,4 milhões. A Sama financiou parte da primeira, em cerca de R$ 997 mil. Já os outros R$ 1 milhão foram bancados pelo Instituto Brasileiro do Crisotila. O órgão, ligado à mineradora e a outras empresas que exploram amianto, ao governo de Goiás e até ao Ministério de Minas e Energia, foi criado em 2002 com a missão de “buscar continuamente o uso seguro do amianto crisotila e contribuir para a divulgação e expansão do modelo brasileiro sustentável de extração de fibras minerais e industrialização de telhas e outros produtos de qualidade”. Ou seja, defender a indústria do amianto.
A primeira pesquisa, divulgada em 2000, analisava a mortalidade e o adoecimento dos trabalhadores expostos ao amianto de 1946 a 1996. Para isso, foram investigados 7 mil funcionários ou ex-funcionários da Sama que passaram pelo crivo da junta médica. A conclusão foi de que as baixas concentrações de fibras no ar e a exposição apenas ao amianto do tipo crisotila durante o trabalho na empresa resultaram “na redução significativa do número de casos de asbestose e placas pleurais em trabalhadores”, como Bagatin disse em 2017 em uma apresentação ao Senado. O avanço tecnológico e a automação da produção a partir dos anos 1980, defendem os pesquisadores, passaram a evitar o contato direto do trabalhador com fragmentos da fibra. O que é mentira.
Só esse estudo custou quase R$ 1,9 milhão, metade financiada pela Sama e a outra metade pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp.
Nas certidões de óbitos, as hipóteses de asbestose ou mesotelioma eram descartadas.
O ex-funcionário Silva Júnior, que morreu de asbestose em 2008, foi um dos participantes da pesquisa. Como jamais recebeu o diagnóstico da doença da junta médica, ele provavelmente estava no rol de trabalhadores que, segundo os pesquisadores, não apresentavam doenças relacionadas ao amianto.
O pneumologista Eduardo Algranti, pesquisador e chefe do serviço de medicina da Fundacentro, órgão ligado ao ministério da Economia que trata de segurança do trabalho, ajudou a elaborar o projeto da pesquisa e era o responsável por analisar as radiografias dos pacientes, mas deixou o estudo após a entrada da Sama. Por telefone, ele me contou que desconfiou do interesse da empresa. No início, lembra, a verba era apenas da Fapesp. Depois que o estudo começou a Sama propôs fazer a doação, quase dobrando o recurso disponível.
“Minha intenção era publicar o estudo em revistas científicas importantes, mas vi que isso não iria acontecer por causa do conflito de interesse no financiamento. Então decidi abandonar o projeto”, disse. A pesquisa foi publicada apenas na revista britânica Occupational and Environmental Medicine.
Em um artigo de revisão, publicado um ano depois na Revista da Associação Médica Brasileira, com o objetivo de analisar estudos já realizados sobre amianto no Brasil, o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP Victor Wünsch Filho contestou os resultados da pesquisa e ressaltou que o estudo coordenado por Bagatin deixou de acompanhar mais de 50% dos trabalhadores. Não se sabe, por exemplo, se eles pararam de comparecer à clínica da junta médica para fazer os exames anuais por morte, doença, ou simplesmente porque desistiram da pesquisa. Segundo Wünsch, isso “pode ter induzido sérias distorções no estudo, comprometendo sua validade”.
A segunda etapa do estudo, concluída em 2010, foi ainda mais cara – custou R$ 2,5 milhões. Dessa vez, mais de R$ 1 milhão veio através do Instituto Brasileiro de Crisotila. O restante da pesquisa foi paga pela Fundação de Apoio à Pesquisa da Universidade Federal de Goiás e pelo CNPq.
Esse estudo investigou os riscos aos consumidores causados pela exposição a telhas ou caixas d’água produzidas com amianto, um dos motivos que levaram a OMS a orientar o banimento da fibra no mundo. Os pesquisadores concluíram que não há “evidências de acometimento clínico, funcional e tomográfico” causados por esse tipo de exposição à fibra. Ou seja, quem tem telhas ou caixas d’água de amianto em casa não correria o risco de ser contaminado.
O avanço tecnológico e a automação da produção, defendem os pesquisadores, passaram a evitar o contato direto com a fibra. O que é mentira.
A conclusão, no entanto, é contestada por diversas pesquisas científicas e pela própria OMS, que é categórica: “A exposição ao amianto (…) provoca câncer do pulmão, laringe e ovários, mesotelioma (câncer das membranas pleurais e peritoneais) e asbestose (fibrose pulmonar). As doenças relacionadas com o amianto podem e devem ser prevenidas e a forma mais eficaz de o fazer é banir a utilização de toda e qualquer forma de amianto a fim de evitar a exposição”. Um estudo publicado em 2009 na Eastern Mediterranean Health Journal afirma que o risco de desenvolver mesotelioma pleural, um tipo raro de câncer no tecido que envolve os órgãos, por exemplo, é 26 vezes maior para quem é exposto ao amianto nessas situações.
Para Hermano Castro, da Fiocruz, os resultados das pesquisas realizadas pela junta médica da Sama “são risíveis”. “Por mais que tenha rigor metodológico, quando é o pesquisado que paga a pesquisa, pode haver pequenos desvios que vão gerar um resultado completamente diferente daquilo que é a realidade”, afirmou.
Busquei alguma revista que tivesse publicado essa segunda etapa da pesquisa. Não encontrei. Curiosamente, os dois estudos coordenados por Bagatin foram divulgados no site do Instituto Brasileiro de Crisotila, como prova de que o amianto não causa danos à saúde. Por telefone, Bagatin me disse que os relatórios de suas pesquisas eram públicos e que não iria falar “para evitar distorções” porque “esse é um assunto muito polêmico”. Os médicos Terra Filho e Nery não responderam aos contatos que fiz por e-mail e telefone.
‘Uma mãe para Minaçu’
A Sama foi por décadas a principal fonte de renda de Minaçu. A 504 km de Goiânia, na divisa com o Tocantins, a cidade de cerca de 30 mil habitantes cresceu em função do amianto. Uma de suas principais ruas é a Avenida do Amianto – a poucas quadras da Rua do Pó. A barragem de rejeito de amianto, uma lagoa com azul cristalino repleta de substâncias altamente tóxicas, é um dos pontos turísticos da cidade. Foi lá também que a Sama instalou a sua maior mina na América Latina.
O antropólogo Amaral diz que era comum ouvir os moradores culpando os doentes, e não a empresa, pelos sintomas, algo estimulado pelos médicos da Sama. Nascimento e Ribeiro, lembram os ex-funcionários com quem conversei, costumavam defender sempre que possível que a doença dos trabalhadores era causada pelo cigarro ou pela bebida. Ou ainda que os doentes que eram indisciplinados e não usavam corretamente os equipamentos de proteção individual.
Encontrei até ex-empregados doentes que fazem eco a essa versão. Aberson Donato Rodrigues Rocha, de 68 anos, que trata um câncer de pulmão, acredita que seu problema foi causado apenas pelo cigarro, embora reconheça que o amianto possa ter matado pelo menos três colegas que trabalharam com ele na mesma época na empresa, entre 1980 e 1992, entre eles Silva Júnior. “Eu fumei por 60 anos. Foi por causa disso que eu adoeci”, me disse.
Era comum ouvir os moradores culpando os doentes, e não a empresa, pelos sintomas, algo estimulado pelos médicos da Sama.
Ele fazia exames anualmente e recebeu resultados negativos para problemas de saúde relacionados ao asbesto. Rocha também assinou o acordo extrajudicial com a Sama.
O ex-funcionário defende, inclusive, a volta da exploração do amianto. Boa parte dos moradores com quem conversei tem a mesma opinião. Eles se referiram a Sama como “uma mãe para Minaçu” e lembravam como a empresa garantia empregos, impostos e desenvolvimento econômico para a cidade. Em maio, após a decisão do STF que proibiu a exploração do amianto no Brasil, 400 trabalhadores da mineradora foram demitidos.
A empresa se instalou em Minaçu em 1967, mas começou a explorar amianto no Brasil 30 anos antes, no município de Bom Jesus da Serra, no interior da Bahia. Lá, como consta em uma ação de 2009 do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual da Bahia, os trabalhadores estavam diretamente expostos às partículas da fibra, pois sequer havia equipamentos de proteção individual.
Diferentemente do que aconteceu em Minaçu, a junta médica que avaliou a saúde desses ex-trabalhadores da Sama em Bom Jesus não tem relação com a empresa. Ela foi criada em 2011 e escolhida pelo Ministério Público do Trabalho, as prefeituras da região e a secretaria de Saúde da Bahia. O único médico vinculado à Sama foi Eduardo Ribeiro, que participou como representante da mineradora.
Em entrevista por e-mail, o procurador do MPF Roberto D’Oliveira Vieira me disse que 41 pessoas já foram diagnosticadas com doenças relacionadas ao amianto desde que a junta foi criada. Uma decisão da Justiça Federal obrigou a mineradora a pagar 1,5 salário mínimo mensal vitalício e plano de saúde aos trabalhadores. Como os efeitos do amianto podem aparecer décadas após a exposição à fibra, Vieira diz que o trabalho de identificação dos doentes no estado ainda não terminou.
A mineradora, observou o antropólogo Amaral, também exerce influência no Hospital Coop Saúde, construído pela empresa e conhecido por todos em Minaçu como “hospital da Sama”. Desde 2001, a mineradora firmou uma parceria com a Cooperativa dos Trabalhadores da Saúde do município, que passou a administrar o hospital. Atualmente, o Coop Saúde faz atendimento particular e por convênio, incluindo o que é pago pela Sama para alguns ex-funcionários. É para lá que eles vão quando têm algum problema de saúde.
Muitos médicos que atendem na unidade atuam ou já atuaram no setor de saúde e segurança ocupacional da mineradora. O hospital, aliás, fica dentro da Vila da Sama, um condomínio fechado de casas onde fica também a sede da empresa e a clínica de Ribeiro.
A Sama se negou a me responder o quanto ainda investe no hospital e informou através de sua assessoria de imprensa que não iria comentar, resposta que repetiu todas as vezes que entrei em contato com a empresa citando esta reportagem. Também falei com Nascimento por telefone, que solicitou que as questões fossem encaminhadas por e-mail e não respondeu até a publicação desta reportagem.
Conselhos fingem não ver
Em 2010, a comissão da Câmara que elaborou o Dossiê Amianto Brasil solicitou ao Conselho Federal de Medicina que investigasse os possíveis desvios éticos dos médicos responsáveis pelas pesquisas pró-amianto financiadas pela Sama, e de Milton do Nascimento e Eduardo Ribeiro Andrade, que não identificaram sinais de asbestose em funcionários.
Ao CNPq, a comissão pediu a instalação de inquérito sobre a liberação dos recursos para o estudo. Também solicitou que fossem adotados critérios mais rigorosos na liberação de verbas públicas em pesquisas de interesse de empresas privadas.
A Abrea denunciou os médicos ligados à Sama aos conselhos regionais de medicina de São Paulo e de Goiás por negligência nos diagnósticos e por ocultarem doenças dos pacientes. Nenhum deles foi punido pelos conselhos. A associação também levou reclamações dos médicos envolvidos nas pesquisas da Sama às comissões de ética em pesquisa da Unicamp, da USP e da Unifesp, onde atuaram como pesquisadores. Ninguém foi punido. Na Unicamp, a denúncia foi arquivada. Na USP, não há registro do caso. A assessoria da Unifesp informou que não há denúncias sobre esse assunto no Comitê de Ética em Pesquisa da universidade.
Quase 10 anos depois, em 2008 e em 2009, a Abrea encaminhou uma nova acusação contra os três médicos ao CNPq e à Fapesp, órgãos financiadores das pesquisas coordenadas por Bagatin. Por e-mail, a assessoria de imprensa da Fapesp me informou que, devido à denúncia, todos os pesquisadores que recebem recurso da fundação precisam ter autorização para aceitar outras fontes de financiamento. Já a assessoria do CNPq disse que não recebeu denúncia oficial referente às pesquisas.
A empresa rica e seus políticos amestrados
A empresa também financiou capital político ao longo dos anos. A Sama doou dinheiro a candidaturas de prefeitos, vereadores e até do atual governador Ronaldo Caiado, do DEM. Em 2014, quando ele foi eleito senador, a Sama lhe doou R$ 300 mil.
Em abril, os senadores Davi Alcolumbre e Chico Rodrigues, do DEM, Vanderlan Cardoso, do PP, e Luis do Carmo, do MDB, acompanhados pelo governador Caiado, visitaram a Sama e assumiram a missão de defender a liberação do amianto no Brasil. “Os trabalhos científicos estão aí mostrando que não existe nenhum problema que cause câncer”, argumentou o senador Rodrigues, que, na melhor das hipóteses, está mal informado.
Senadores visitam trabalhadores de mineradora em GO e pedem liberação do amianto pic.twitter.com/WyzsPqevCi
— Senado Federal (@SenadoFederal) April 29, 2019
Em julho, atendendo aos interesses da mineradora, Caiado ignorou a decisão do STF e sancionou uma lei que autoriza a extração do amianto em Goiás. Deverá ser barrado: em parecer enviado ao Supremo em novembro, após uma ação movida pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, o procurador-geral da República Augusto Aras afirmou que a lei estadual “viola os direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente”.
Apesar da força dada por Caiado à mineradora com a lei estadual, a produção da Sama segue desativada. Na sede da empresa, em Minaçu, estão trabalhando apenas algumas pessoas no setor administrativo.
“Se for pelo desenvolvimento da cidade, se falar em dinheiro, a Sama vai reabrir”, apostou o ex-funcionário Oliveira, entre uma e outra pausa para recuperar o fôlego perdido para o amianto. “Mas, pra mim, o ser humano devia ter mais valor. Eu mesmo tenho sofrido muito”.
Atualização – 23 de janeiro de 2020, 19h30
O texto foi atualizado para acrescentar a resposta da assessoria de comunicação da Unifesp.
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