Entrevista: 'Com 27 anos na polícia, só recebi ameaça de morte depois de embate com Moro', diz Fabiano Contarato

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Entrevista: ‘Com 27 anos na polícia, só recebi ameaça de morte depois de embate com Moro’, diz Fabiano Contarato

Ex-delegado, único senador homossexual e recordista em ações judiciais contra o governo diz que 'estamos numa ditadura em plena democracia'.

Entrevista: 'Com 27 anos na polícia, só recebi ameaça de morte depois de embate com Moro', diz Fabiano Contarato

Saídas à esquerda

Parte 6


Fabiano Contarato desconfia que os eleitores do Espírito Santo, que em 2018 lhe deram a maior votação da história do estado numa eleição para senador, podem ter se enganado a seu respeito. Notório entre os capixabas por ser um delegado de polícia de pulso firme, defensor da operação Lava Jato e católico fervoroso, ele desbancou o pastor Magno Malta, do PR, e foi empossado junto a uma leva de policiais e militares na esteira da eleição de Jair Bolsonaro.

Só que Contarato, filiado à Rede, não segue o alinhamento à extrema direita dos demais. Ao contrário, ainda que garanta que isso nunca esteve em seus planos, se viu na oposição a Bolsonaro pelo que classifica como omissão dos colegas em cumprir um dos papéis esperados do parlamento – fiscalizar e criticar o governo. “Falta coragem [a eles]”, me disse, numa entrevista de mais de duas horas em seu gabinete no Senado.

“Talvez por me verem como um delegado linha-dura, os eleitores pensaram que eu fosse ter [em Brasília] um comportamento similar ao do presidente da República, o que é totalmente incompatível [comigo]”, cogitou.

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Em seu primeiro ano em Brasília, Contarato bateu boca com o ministro Sergio Moro e fez uma das críticas mais contundentes que se ouviu no Congresso à operação Lava Jato. Para o senador, o ex-juiz quebrou o princípio da imparcialidade ao se aproximar dos procuradores, como foi revelado pelas reportagens da Vaza Jato. Também defendeu o aborto nos casos previstos na lei e os medicamentos à base de canabidiol, além de se posicionar enfaticamente na defesa de direitos humanos e das minorias.

O embate com o outrora imaculado Moro o fez ser alvo de uma avalanche de críticas, fake news e até ameaças de morte nas redes sociais. Algo, garante, que nunca experimentou em quase três décadas de trabalho na polícia.

Com um jeito tímido, Contarato fez questão de me mostrar que é um católico fervoroso e que mantém um crucifixo de São Francisco de Assis pendurado no gabinete. Também exibiu, orgulhoso, um retrato em que aparece posando com o marido, o filho e o pai, todos vestidos com ternos azul royal.

“Descobri a felicidade quando adotei meu filho. Agora, estamos esperando o segundo. Meu filho diz: ‘papai, eu quero um irmãozinho, uma irmãzinha ou um nenezinho de fralda'”, contou.

Leia a seguir os principais trechos da conversa – as respostas foram editadas por motivos de espaço e clareza.

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Foto: Luara Wandelli Loth/The Intercept Brasil

Intercept – O senhor é um senador de oposição. Se posiciona contra várias bandeiras levantadas pelo governo federal, como o programa da carteira de trabalho verde e amarela, as políticas para o meio ambiente. Qual sua avaliação da oposição em 2019?

Fabiano Contarato – Tudo indica que eu sou um senador de oposição, mas não gosto desse rótulo. Seria melhor se fosse assim: [para] o que tiver de coisa boa, [o governo] terá em mim um aliado. O problema é que esse governo só traz [ao parlamento] matéria negativa. Então, você acaba sendo rotulado de oposição. Mas isso não significa que eu sou ou sempre serei de oposição. Sou defensor da democracia, dos direitos humanos, dos direitos coletivos, das minorias.

De qualquer maneira, como o senhor avalia a atuação dos parlamentares que discordam das políticas do governo?

Eu almejava que fosse mais forte. Vejo que às vezes que quem deteria mais legitimidade para fazer [oposição] mais contundente, não faz. Fico decepcionado. Muitas vezes tenho tido um comportamento de mais embate. Saiu uma pesquisa [segundo a qual] eu fui o parlamentar que mais ingressou com ações judiciais contra o governo federal –só esse ano foram 25 ações na Justiça por causa do ataque [do bolsonarismo] em todas as áreas, enquanto quem deveria estar fazendo isso é quem se intitula efetivamente como oposição. Até mesmo no embate com o ministro Sergio Moro, eu não senti que quem deveria estar fazendo o questionamento, que poderia ser o PT, fez de forma… [interrompe o raciocínio]. Não estou julgando, mas é uma percepção minha. Acho que [o questionamento a Moro] podia ser feito de forma mais construtiva, com mais embasamento técnico. Infelizmente, não vejo isso.

Falta só embasamento?

E falta mais coragem. Quem propôs a CPI da quebra do princípio da parcialidade fui eu. Pago um preço altíssimo. Como delegado de polícia por 27 anos, eu nunca recebi uma ameaça de morte. Depois desse embate [com Moro], recebi ameaça de morte. Em menos de um ano como político eu já fui ameaçado. Em 27 anos lidando com bandido, nunca.

Após o seu primeiro ano de atuação parlamentar, em um ano em que houve grande renovação no Congresso e na política em geral, qual a sua avaliação? O que fazer diferente em 2020?

Acho que nas eleições de 2018 a população deu um recado claro: está cansada dos mesmos, com os mesmos resultados. Só que não basta ser novo na política, é necessário ter ideias novas. E isso não vejo aqui, mas sim conformismo e continuísmo. 85% das cadeiras [do Senado] foram renovadas, mas não foi uma renovação tão renovadora assim. E já começou muito mal. No primeiro dia, o da eleição do presidente do Senado, falei que os senadores tinham que pedir perdão à população. Onde já se viu uma eleição com 81 senadores ter 82 cédulas?

‘Este não é um governo dos pobres. Não [trabalha] para diminuir as desigualdades sociais, privilegia banqueiros, empresários’.

Tenho fé em Deus que ano que vem não vou me acovardar, me deixar abater. Por exemplo, eu fiquei muito triste com o projeto que acaba com a lei de cotas para pessoas com deficiência. As pessoas só passaram a ter esse direito em 2012. Esse governo – vou falar uma coisa que pode ser muito forte – não é um governo dos pobres. Não [trabalha] para diminuir as desigualdades sociais. É um governo que privilegia banqueiros, empresários. Isso me dá força, porque o que puder fazer como legislador eu vou fazer, mas o que não for possível, vou judicializar. E estamos tendo alguns sucessos, como no caso dos radares. Ele [Bolsonaro] queria tirar da noite pro dia oito mil radares das rodovias federais. Eu fui delegado de trânsito, sei que [a velocidade em estradas] é uma indústria de mortes. Aumentando o número de acidentes de trânsito, vai sobrecarregar o sistema de pensão por morte, invalidez, o sistema público de saúde.

Quais ações já tiveram resultado?

Foram muitas. Além da dos radares, teve o caso do leilão de blocos de petróleo em Abrolhos, que é um santuário ecológico. Na área ambiental foram 14, de um total de 25. Muitas delas impetrei como pessoa física, não como senador.

A impressão que se tem é que a oposição tem sido mais reativa às ações do governo, do que propositiva. Como mudar isso?

É porque não dá tempo. Estamos apagando incêndio de manhã, tarde, noite e madrugada. Você tem que reagir e ser proativo ao mesmo tempo, e isso demanda muito. É como se você tivesse que a todo momento reagir a uma agressão. Não quero puxar a sardinha para o meu lado, mas já entrei com 46 projetos de lei e cinco PECs, sendo que dois já foram aprovados e estão na Câmara.

Quais projetos estão na Câmara?

Um deles proíbe que juízes substituam a pena restritiva de liberdade para a restritiva de direitos – pagamento de cesta básica, prestação de serviços à comunidade etc. – no caso de motoristas que matam no trânsito estando embriagados ou sob uso de substância psicoativa. O Brasil tem um dos maiores índices de acidentes de trânsito do mundo. Mas ninguém fica preso por crime de trânsito. Outro é um estímulo de doação de sangue para meia entrada para quem for doador regular.

Durante a campanha o senhor levantou a bandeira do combate à corrupção e à impunidade. Foi eleito junto com uma grande leva de outros policiais e delegados. Mas seu perfil parece destoar dos demais, habitualmente muito conservadores. O senhor se sente um peixe fora d’água na polícia?

Amo ser policial, mas concebo a função como a principal garantidora dos direitos fundamentais. Só que o delegado de polícia sempre foi visto como um violador de direitos humanos. Me lembro do caso de uma mulher que tinha tido a loja furtada, e o suspeito estava na delegacia. Ela falou: “Se o senhor pendurar num pau de arara, ele vai confessar”. Respondi que isso não está dentro das técnicas de interrogatório. Para minha tristeza, a resposta dela foi: “que saudade do delegado fulano de tal”, que praticava tortura.

Os policiais com visão de mundo progressista, como o senhor, conseguem ter voz na corporação?

Não conseguem. Passei no concurso para delegado em 1992, aos 25 anos, no primeiro lugar geral. E nunca fui promovido. Eles falavam que eu não tinha disciplina hierárquica. Se a pessoa acha que a função de um policial é violar os direitos humanos, ela não sabe o que são direitos humanos. Tinha que voltar pra escola, ler sobre a concepção do estado, ler Locke, Maquiavel, Kant. Você tem que defender a democracia, o devido processo legal, assegurar o contraditório e a ampla defesa, porque isso é o verdadeiro estado democrático de direito. Sou contra a corrupção, mas os fins justificam os meios? Você gostaria de ser julgada por um juiz parcial? Que segurança jurídica isso te dá? As pessoas acham que em nome de combater a corrupção vale tudo, a qualquer preço. Isso não me seduz. Não foi para isso que fiz faculdade, sou professor e me habilitei a ser senador.

O senhor entrava em embates com os colegas?

Sim. Eu trabalhava numa delegacia de plantão, um local que era para ter 16 presos, mas tinha 140, o que já é uma violação. E tinha uma borracha de pneu de caminhão com os dizeres “direitos humanos”, e um porrete de madeira em que estava escrito “direitos constitucionais”. Toda vez que um preso chegava e falava em direitos, o policial vinha com o porrete ou a borracha. Eu fiz um auto de apreensão daqueles objetos. Encaminhei para a corregedoria e pedi que fosse instalado processo administrativo contra os policiais.

O que aconteceu?

Aconteceu que fui removido da delegacia [risos]. Quando você não compactua com aquilo, é penalizado. Noutra delegacia em que trabalhei, onde só havia policiais presos, havia um delegado preso, que tinha passado no mesmo concurso que eu. Ele foi preso por estupro e uma série de delitos, como introduzir um porrete embebido em pimenta no ânus e na vagina de presos. Lá, ele e os outros policiais podiam receber visita 24h por dia, de segunda a segunda, e não havia grades. Eles entravam e saiam. Quando eu assumi, um policial falou que estava indo ao banco. Respondi: “Meu amigo, você não sai daqui. Você é preso”.

‘Reduzir a violência não passa por armar a população. Isso é uma visão míope, imediatista. Mas seduz a população’.

Ali começou um inferno. Paguei do meu bolso uma grade e a instalei. Fiz uma representação para a Vara de Execuções Penais para regular o horário de visitas. Quando isso aconteceu, me falaram: “O senhor não fica aqui mais nem uma semana”. Fui removido de novo. Me colocaram numa delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Falei que eu não ia atrás de pescador e catador de caranguejo, eu queria o nome dos areais e das peixarias. Até que descobri que o Porto de Vitória não tinha licença ambiental. Uma oficina de bairro pobre tem que ter licença, e o porto não tinha. Apliquei multa, indiciei a secretaria de Meio Ambiente e o presidente da Codesa por crime ambiental. No outro dia, remoção da delegacia de novo.

Os processos que você começou antes de ser removido continuavam andando depois?

Sim, mas aí o interesse mudava. Eram arquivados, perdidos… Até que me colocaram na delegacia de Trânsito. Eu era visto como delegado-problema, e essa era uma delegacia que não dava problema, porque ninguém ficava preso. Foi ali que tive mais notoriedade. Eu entrava com medida cautelar para suspender carteira de motorista, porque sabia que o Detran demora muito para fazer o processo administrativo. Entrei com ação contra Facebook e Twitter quando as pessoas começaram a denunciar onde estava tendo blitz. Me colocaram na delegacia de Costumes e Diversões e queriam que eu acabasse com os puteiros. Eu falei: “Tudo bem, mas o código penal diz que não pode haver estabelecimento com prostituição ou local destinado para crime libidinoso, haja ou não finalidade de lucro. Então, vou fechar puteiro, mas vou fechar os motéis também”. Indiciei os donos de motel, comecei a cassar alvarás. O rigor da lei só vale para casa de prostituição pobre, para caminhoneiro, com luz vermelha na porta? No outro dia, fui removido de novo. Penei por muitas delegacias.

Uma das grandes críticas que se fez à esquerda, nas eleições de 2018, foi sobre a falta de uma proposta para a segurança pública, o que deixou a área na mão de gente como Jair Bolsonaro. Como vencer isso? É possível tirar da agenda de segurança das mãos de quem defende “bandido bom é bandido morto”?

Acho que é possível, sim. Reduzir a violência não passa por armar a população. Isso é uma visão míope, imediatista. Mas seduz a população. Se hoje fizessem um plebiscito para instituir a pena de morte, é provável que fosse aprovado. Só falta querer queimar gente em praça pública… Estamos vivendo um momento muito difícil no Brasil, em que crescem as bancadas fundamentalistas, conservadoras, retrógradas. O Congresso está querendo discutir para acabar com o aborto até nos casos em que é para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez for resultado de estupro.

Esses dias tive que falar de forma contundente na Comissão de Assuntos Sociais sobre uma sugestão de lei feita pela população para uso de remédios feitos a partir do canabidiol. Enquanto há países com discussões super avançadas, aqui temos um procurador-geral da República que assinou um documento que reconhece família apenas nas relações heterossexuais, que acredita em cura gay. Me sinto até envergonhado de tomar uma postura quando perguntei ao procurador-geral [Augusto] Aras se ele não reconhece a minha família, se eu sou doente. Todos os direitos que a população LGBTI conquistou, nenhum deles foi por lei. Direito à adoção, a mudar o nome social, a colocar o companheiro ou companheira na previdência social, a declaração de imposto de renda conjunta, ao casamento… Tudo foi por decisão judicial.

Quando reclamam que o Supremo está legislando, digo que é premissa constitucional. O poder Judiciário não se eximir de exercer o direito. Se nós nos acovardamos e não pautamos algum assunto por questões religiosas, alguém vai ter que dizer o que fazer. Vejo uma omissão daquele que deveria estar cumprindo a função constitucional [de legislar]. Os poderes são harmônicos e independentes entre si, mas no aspecto legislativo nós [parlamentares] estamos deitados eternamente em berço esplêndido.

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Foto: Luara Wandelli Loth/The Intercept Brasil

Qual sua opinião sobre as propostas do governo Bolsonaro para o excludente de ilicitude?

Ele já existe, no artigo 23 do Código Penal. [O que Bolsonaro e Moro propõem] É outra coisa, que está sendo jogada para a plateia para justificar a execução sumária, o que é grave. O artigo 23 já diz que não há crime quando você reage a uma injusta agressão matando uma pessoa por legítima defesa própria ou do patrimônio, ou de terceiro, ou em estado de necessidade. Isso já existe [no Código Penal] desde 1940. Agora, justificar um excludente de ilicitude para conter o direito e a liberdade de expressão, de reivindicar direitos, dos movimentos sociais, é justificar o genocídio em nome de um comportamento imediatista e populista. Isso não vai ter a minha digital.

O senhor é o primeiro senador a assumir publicamente ser homossexual. Um dos três entre mais de 500 parlamentares eleitos no ano passado. Qual a importância disso para a população LGBTI brasileira, a seu ver?

Tenho muito orgulho da minha orientação sexual. Só questiono quando as pessoas falam “respeito sua opção”, porque essa escolha não foi minha. Só fui admitir ter minha primeira relação homoafetiva com 26 para 27 anos. Eu ia para a igreja, ajoelhava e rezava, pedia para que Deus mudasse aquilo em mim. Sou filho de motorista de ônibus, minha mãe é semi-analfabeta, teve seis filhos, sou o mais novo. A gente era muito pobre. Quando passei na escola técnica, não tinha dinheiro para pegar ônibus. Falava: “sou filho do motorista Alvino, deixa eu entrar pela frente?” Não estou falando isso como vitimismo, mas para explicar meu comportamento. Acabei em duas profissões extremamente conservadoras: o direito e a polícia. Ouvi muito uma frase que até hoje me marca: “ele é inteligente, mas é gay”. Esse “mas” sempre me pressionou. Era como se eu tivesse que ser o melhor, que para ser aceito eu tinha que ser diferente.

‘Ser pobre, LGBTI e depender da família é ser a bichinha, a sapatão, a vergonha da família. Se você é formado, delegado, senador, tudo bem. Que aceitação é essa?’.

Por isso questiono até a aceitação [da homossexualidade na sociedade brasileira]. Quando alguém pergunta se a família me aceita, digo que sim. Claro, quando você é gay, mas tem autonomia financeira, não depende de ninguém, tudo bem. Mas a maioria da população LGBTI não tem isso. Ser pobre, LGBTI e depender da família é ser a bichinha, a sapatão, a vergonha da família. Se você é formado, delegado, senador, tudo bem. Que aceitação é essa? Que hipocrisia é essa? Tenho os pés no chão. A aceitação tem um preço muito alto. Não é fácil [para o homossexual] viver no Brasil, e o preconceito está mais forte hoje por causa do comportamento do presidente.

Fico triste quando escuto relatos de casais homoafetivos que antes da eleição andavam de mãos dadas, e agora não fazem isso por medo. Até hoje não há estatísticas oficiais sobre mortes violentas da população LGBTI, e isso é meio como justificá-las. Você pode achar que estou exagerando, mas digo pela minha experiência como delegado de polícia. Você mata uma mulher e coloca o corpo no local onde se faz prostituição, está justificado, dizendo que o comportamento da vítima contribuiu para o fato. Penaliza a vítima. Outro dia, postei minha indignação com as mortes em Paraisópolis e as pessoas respondiam: “Se estivesse na igreja e não no baile funk não teria morrido”.

O senhor responde?

Respondo. Alguns até por áudio. Principalmente quando vem algum elogio, porque do meu estado recebo muita crítica. É um estado conservador, bolsonarista, e a minha postura aqui de enfrentamento deixa as pessoas que são pró-Bolsonaro – eu não gosto de falar o nome dele, pra mim ele tem que ser impessoalizado – ficam com raiva de mim. Tanto é que fui ameaçado de morte. Estou entrando com ações nos casos mais graves. Teve um cara que falou que se me encontrar na rua vai quebrar todos os meus dentes. Ofendeu minha honra, minha família, meu filho. [Mostra a foto da família num porta-retratos] Esse é meu pai, meu esposo, meu filho, estamos esperando outro filho, se Deus permitir. Você pode não concordar comigo como senador, mas nada te dá o direito de ameaçar minha integridade física, minha paz. Só quem passa por ameaça sabe como é não poder dormir direito, acordar no meio da noite pensando no que vai acontecer com você e sua família.

Além das ameaças, também houve bastante fake news contra o senhor depois do embate com Moro. Acha que houve uma ação coordenada para atacá-lo?

Foi um movimento de quem é a favor do governo. Falaram em pedir meu impeachment, fizeram memes, fake news… Em 27 anos lidando com criminosos, nunca fui ameaçado. Em menos de um ano [no Senado], fui ameaçado. É uma intolerância muito grande. A gente não precisa [na política] apenas de brasileiros bons, honestos, íntegros, mas também de brasileiros corajosos. Por isso convoco homens e mulheres a entrarem em algum partido político. Nunca pensei que ia falar isso, mas é importante para haver representatividade das minorias. Acharei lastimável se, nas próximas eleições, a esquerda ficar sendo radical para um lado e a direita para o outro. Tem que haver equilíbrio, serenidade, sobriedade.

O Brasil precisa crescer, precisamos de reformas administrativa e tributária, reduzir o abismo existente entre os milhões de pobres e os ricos, ter imposto sobre grandes fortunas… Quem vai ganhar com radicalismo vai ser o próprio presidente. Se a esquerda ficar medindo forças internamente vai se pulverizar e vamos perder a chance de corrigir e voltar a colocar o Brasil nos trilhos. O Brasil tem que voar, e não pode ser voo de galinha.

O senhor se considera de esquerda?

Eu me considero de centro-esquerda. Essa coisa do estado mínimo me assusta demais. O estado tem que ser grande, é isso que está na Constituição. Saúde, segurança e educação são direitos de todos e dever do Estado. Quem paga por eles é a população pobre, que não tem emprego e paga impostos sobre qualquer produto que consome. Não estou preocupado com a economia, mas com salvar vidas humanas.

Assistimos a um governo que diariamente sabota as lutas de minorias – o indicado para ser presidente da Fundação Palmares, por exemplo, diz não haver racismo no Brasil e faz pouco de quem o combate. Qual o resultado, para as minorias, de um governo que age dessa forma? Qual será o legado de pelo menos quatro anos desse tipo de discurso e política?

‘Sempre houve discriminação, mas hoje as pessoas se sentem legitimadas, com o presidente, a verbalizar e agir contra as minorias’.

É um convite à reflexão e ação. Mas que é preocupante, não tenho dúvida. Estão sendo dizimadas. Sempre houve discriminação, mas hoje as pessoas se sentem legitimadas, com o presidente, a verbalizar e agir contra as minorias. Fico muito preocupado com os três anos pela frente de um governo que não mede palavras e ações no sentido de desmontar ou aniquilar minorias. O Congresso tem que estar atento e ser um freio, um contrapeso a essas atrocidades. As instituições têm que ser fortes.

O ministro Edson Fachin arquivou um pedido de impeachment contra o ministro Ricardo Salles, de autoria do senhor e do seu colega de partido Randolfe Rodrigues, alegando que ultrapassaram a competência do cargo. Como presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado, área com uma das situações mais críticas no país hoje, qual é a sua responsabilidade, e o que pretende fazer a partir de agora?

O Ministério do Meio Ambiente é anti-ambientalista. O governo federal almejava acabar com o ministério. Ele não conseguiu fazer isso, mas está fazendo por dentro. Acabou com plano de desmatamento, com a secretaria de mudanças climáticas, enfraqueceu órgãos de fiscalização como Ibama e ICMBio, funcionários estão sendo vítimas de assédio moral, ONGs estão sendo criminalizadas, proliferam agrotóxicos, houve aumento de queimadas e desmatamento por causa da redução da fiscalização. Agora o óleo está chegando nas praias e afetando pescadores, marisqueiros, artesãos, a rede hoteleira, turística. O desmonte da área ambiental, seja por ação ou omissão, é muito grande, e caracteriza sim crime de responsabilidade. O pedido foi aceito, ele só foi rejeitado pelo mérito. A via estava correta, mas acharam que não havia motivo [para impeachment].

Uma de suas propostas é tipificar o crime de ecocídio para casos como o de Brumadinho. É uma pauta que vai contra interesses de bancadas que hoje têm muito poder no Congresso. Acredita que poderá ser aprovado?

Muito se diz que a gente aprende com desastres, mas é grande mentira. O que mudamos desde os desastres das mineradoras em Minas Gerais? Nada. Quantas pessoas foram presas? Nenhuma. Sou otimista e tenho fé em Deus. Acho que, na hora em que [o projeto] chegar no plenário, vai pegar mal votar contra.

O senhor defende a Lava Jato, mas disse que Sergio Moro foi parcial. Como avalia que deveria ser a postura de instituições a esse respeito? Qual sua avaliação sobre o que a Vaza Jato revelou?

Eu me inspirei na Lava Jato porque por 27 anos fui utilizado pelo estado para agir com o rigor da lei contra uma só camada da população: a pobre afro-descendente. A Lava Jato foi um divisor de águas porque, pela primeira vez na história do Brasil, políticos, empresários e banqueiros ficaram presos. Só que a Lava Jato é uma conquista da população brasileira, não pertence a uma pessoa. Tem muitos juízes, procuradores, delegados, investigadores, auditores. É impessoal. Esse é o fator positivo.

Agora, a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos têm que ser julgados por um juiz imparcial. O código de processo penal diz que um de seus princípios é a imparcialidade, que o juiz tem que garantir tratamento igualitário entre o titular da ação e a defesa. A Lei Orgânica da Magistratura também fala isso, o Código de Ética da Magistratura… Os fins não justificam os meios. Quando um juiz, começa a manter contato com frequência com quem tem 100% de interesse na condenação… Nem entro no mérito do diálogo, mas foi feito da mesma forma com a defesa? Se a resposta foi não, houve quebra do princípio da imparcialidade.

Sou contra a corrupção, mas defendo o devido processo legal. Se a gente abre um precedente para isso, abre para qualquer coisa. Se o Supremo disser que o juiz quebrou o princípio da imparcialidade, é causa de nulidade absoluta [de processos]. Doa a quem doer. E, se isso acontecer, eu digo com toda a força da minha alma e da minha voz: o único culpado foi um ex-juiz, Sergio Moro. Não teve outro culpado. Porque ele não se portou como um magistrado deve se portar.

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Foto: Luara Wandelli Loth/The Intercept Brasil

Como cristão praticante, como o senhor avalia a influência maciça da religião sobre os assuntos públicos? É possível separar crença pessoal de atuação laica? Como?

Acho perfeitamente possível e saudável. Sou católico, batizado, crismado, faço parte do Terço dos Homens. Mas sei separar as coisas. Os princípios que regem a administração pública são claros. O estado é laico, e temos que entender e respeitar as diferenças. O político tem que saber que tem que legislar para todos os brasileiros, de raças, religiões, gêneros diferentes. Independente da minha convicção religiosa, do meu crucifixo de são Francisco de Assis, a minha postura aqui tem que ser diferente. Defendi a produção do canabidiol, defendo o aborto em caso de anencefalia. Não sou favorável à redução da maioridade penal, a armar a população, à castração química de criminosos contra a dignidade sexual. Estou representando a população e tenho que pensar no que é melhor para ela, não na minha convicção.

O senhor comentou que o Espírito Santo é um estado muito conservador. A que atribui sua eleição? As pessoas não entenderam as suas posições, ou queriam alguém com visão mais progressista?

Quanto à sexualidade, acho que eles sublimaram. Fui candidato pela Rede Sustentabilidade, que não é um partido de direita. Pelas pessoas me verem como um delegado linha-dura, talvez tenham pensado que eu fosse ter um comportamento que similar ao do presidente da República, o que é totalmente incompatível [comigo]. Quem me conhece sabe que eu não sou assim. Sou apaixonado pelos direitos humanos e isso não é da boca pra fora. Agradeço à população, ela não foi enganada. É bem provável que achassem que, com essa onda do presidente, eu fosse mudar de lado. Mas jamais vou mudar.

Ao Estadão, o senhor se disse “petista de coração”…

[interrompendo] Isso me deu tanto problema… [risos]

Mas, em 2014, o senhor se filiou ao PR, conservador, porque, em suas palavras, foi o único que lhe ofereceu a candidatura ao Senado. Não lhe parece um movimento político oportunista e carreirista?

Muitos partidos me procuraram, mas ninguém queria me dar a candidatura ao Senado. Se eu quisesse só me eleger, teria tentado a Câmara, que tem maior número de vagas. O problema é a representatividade na Câmara. Enquanto o Espírito Santo tem 10 deputados, São Paulo tem 70. Você acaba não tendo vez, nem voz. No Senado, são três por estado. Nunca tive identificação com o PR, mas foi o único partido que me ofereceu a vaga. Aí, quando fui ver como era [a legenda], não quis mais e não fui candidato.

O que aconteceu?

Ele [se refere ao ex-senador Magno Malta] queria colocar como minha suplente a esposa dele. Mas eu valorizo o mérito. Toda a minha equipe foi montada com processo seletivo. Falei que aquilo não era compatível comigo. Em 2014 eu estava no auge da visibilidade, mas tive coragem de dizer que não queria. Se eu fosse vaidoso ou carreirista, aquela era a minha oportunidade. Mas preferi deixar para concorrer em 2018, já filiado à Rede, que me deu total autonomia e liberdade para fazer as coisas da forma como acho que tem que ser.

Além da Lauriete [Rodrigues, deputada federal, ex-esposa de Malta], o que mais te desagradou naquele momento?

Naquela época era permitido o financiamento de campanha por empresas, e eu sabia que isso ia acontecer. Não queria que a conta no banco fosse aberta no meu nome e pessoas fossem pedir dinheiro para as empresas para financiar minha campanha. Via que o próprio partido queria determinar o que eu ia falar. Eles perguntavam minha opinião sobre, por exemplo, redução da maioridade penal, e queriam que eu falasse o que eles pensavam. Mas eu não sou marionete.

O próprio Magno Malta cobrava essas coisas?

Tinha algumas questões, como do gênero sexual. Uma vez, ele falou: “Estou sendo cobrado pelos pastores…”. Foi o maior ato de violência contra mim. Todo mundo sabia [da homossexualidade], aí ele vem falar dos pastores. Pra mim, foi a gota d’água.

E, em 2018, o senhor foi o mais votado e tirou Malta da disputa. Falou com ele depois?

‘Não tenho dúvidas. Estamos numa ditadura em plena democracia’.

Não. Encontrei Malta, mas ele nunca mais falou comigo. Reconheço que fui muito inocente. Eu nunca havia me filiado ao partido. Fui crente de que teria autonomia e depois vi que não era assim.

“Estamos vivendo uma ditadura em plena democracia”, o senhor já disse. Sua percepção mudou? Se aprofundou? Corremos o risco de não haver eleições para presidente em 2022?

Não tenho dúvidas. Estamos numa ditadura em plena democracia. Quando o presidente não respeita a Constituição, preside por decreto e medida provisória, há falas dele e do alto escalão do governo enaltecendo a ditadura e a tortura, falando em AI-5, ameaçando retaliação aos meios de comunicação… O que é isso? É um comportamento muito grave. Vejo que está se aprofundando, mas acho que não corremos o risco de não ter eleição em 2022. Tenho fé em Deus que o Brasil vai acordar e que merecemos um país verdadeiramente democrático.

Como reagiu quando Randolfe Rodrigues, seu colega de partido, apareceu na Vaza Jato sendo usado pelos procuradores da Lava Jato numa representação contra o ministro Gilmar Mendes?

Eu tenho uma relação muito boa com ele. Mas os fins não justificam os meios. Se efetivamente aconteceu, não teria o meu aval. Acho que não se pode jogar com armas que não sejam lícitas ou moralmente aceitas. Não posso aceitar que um procurador da República, que tem como uma das funções ser fiscal da lei, use um partido, seja ele qual for, para conseguir esse tipo de medida. Tem por mim total repúdio e execração.

 

Correção: 7 de janeiro de 2020, 11h20

Uma versão anterior deste texto informava que o excludente de ilicitude já está previsto na Constituição. Na verdade, ele está no artigo 23 do Código Penal brasileiro. O texto foi corrigido.

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