Em 2016, Shaun Navarro era um trabalhador portuário em Oxnard, na Califórnia. Ele se considerava um “liberal padrão” e acompanhava as primárias da campanha presidencial sem muito compromisso: apoiava Bernie Sanders, mas estava convencido de que Hillary Clinton também era uma candidata forte. Enquanto descarregava carros Kia e Hyundai dos navios, ele ouvia ex-funcionários do governo Obama no podcast “Keepin’ It 1600”, o antecessor do “Pod Save America”, que asseguravam que Clinton era barbada e Trump jamais seria eleito. “Eu pensava ‘Hillary também é ótima, temos dois ótimos candidatos'”, conta ele.
Ficava, no entanto, remoendo algumas coisas. A disparidade entre seu salário e os de seus colegas sindicalizados, no mesmo porto, tornava difícil suportar os custos de vida cada vez mais altos na Califórnia.
As proteções trabalhistas também eram piores: Navarro me contou que, certa tarde daquele mês de setembro, foi demitido sem aviso por estacionar um carro no lugar errado. Ele admite que de fato cometeu o equívoco, mas nunca imaginou que seria caso de demissão. Navarro tinha educação de nível superior e estava começando a falar de política com os outros trabalhadores – não era o tipo de pessoa que um chefe não sindicalizado queria na equipe. A noite da eleição foi um segundo choque para o sistema de Navarro. Ele descobriu a duras penas que não podia confiar nos líderes do Partido Democrata para conter o fascismo.
Ele fez as malas e partiu para Las Vegas, onde morava sua avó, que estava precisando de cuidados em casa. Descobriu então que o estado de Nevada estava cheio de pessoas que, como ele, haviam sido expulsas da economia da Califórnia. “Ninguém planeja se mudar para Las Vegas, você acaba sendo obrigado a isso, então a mensagem de Bernie ecoa entre nós”, diz ele. Ele trocou de podcast, do “Pod Save America” para o “Chapo Trap House”, tentando elaborar o significado do socialismo e o seu lugar no mundo, e encontrou uma comunidade na representação local dos DSA, que regularmente fazem campanha para Sanders. Ele conta que outros latinos da região de Nevada também estavam gravitando em direção a Sanders. Pete Buttigieg, prefeito de South Bend, Indiana, que também está na disputa, “faz você lembrar do seu chefe, e Bernie é o contrário. Ele me lembra o meu tio: meio ranzinza, um pouco duro, mas está cuidando da gente”.
Navarro conseguiu um emprego de atendimento ao cliente na Amazon (os empregados do Walmart fazem mais doações para a campanha de Bernie do que os de qualquer outra empresa, seguidos de perto pelos da Amazon). Ele começou a se organizar com o grupo local Muçulmanos por Bernie (ele não é muçulmano, mas alguns de seus amigos são), fazendo recrutamento em mesquitas e tentando criar vínculos com a comunidade de outras formas. Uma dessas iniciativas aconteceu no Shiraz, um restaurante de cozinha mediterrânea em Spring Valley, Nevada, onde Sanders foi falar em outubro passado. Navarro percebeu que Sanders estava especialmente sério naquela noite, mas gostou de vê-lo, e fez uma brincadeira em um post de Facebook com o fato de que o candidato tinha precisado se sentar no final de uma sessão de perguntas e respostas.
Navarro descobriu depois por que Sanders havia pedido uma cadeira: o senador estava sentido dor no peito, era um ataque cardíaco. Ele se sentiu péssimo e apagou a piada, cruzando os dedos para que Sanders ficasse bem.
Sanders ficaria mais do que bem. Dali a três semanas, num sábado ensolarado de outono, a campanha anunciou um retorno triunfal aos trilhos, num evento em Queensbridge Park, na cidade de Nova York, ao qual compareceram mais de 26 mil de seus amigos próximos – inclusive uma novidade, a recém-eleita deputada Alexandria Ocasio-Cortez, com o objetivo de declarar apoio a Sanders no primeiro evento público do senador desde seu ataque cardíaco.
Para Claire Sandberg, no entanto, o trabalho de verdade não estava acontecendo no palanque, mas no meio do parque. Era uma expansão de algo em que ela e o pessoal da campanha vinham investindo havia pelo menos três anos. Sandberg, a diretora nacional de organização, estava procurando por milhares de outros Navarros.
Observando a multidão em fila, ela se lembrou de 2015 e 2016, e de como tinha sido doloroso ver dezenas de milhares de pessoas saindo de um evento sem deixar um número de telefone, ou sem encorajá-las a se tornarem voluntárias, salvo por um convite rápido feito do palanque e algumas iniciativas esparsas de recrutamento. Nick Martin, também veterano de 2016 e agora diretor de campo da campanha, recorda-se de trabalhar freneticamente abordando com prancheta e papel o máximo possível de pessoas nos comícios. Cada pessoa que ele conseguisse convencer a se registrar e se comprometer com um turno de recrutamento representava 40 casas que receberiam uma visita. Enquanto anotava o endereço de e-mail de um participante, percebia, impotente, um fluxo de outros passando por ele. “Lá se vão 40 casas. Lá se vão 40 casas. Lá se vão 40 casas”, Martin assinalava em sua cabeça, contabilizando as oportunidades perdidas.
Jesse Jackson, durante sua primeira campanha presidencial, em 1984, que deu início à ofensiva progressista contra a ala corporativa em ascensão no partido, descrevia os potenciais apoiadores desorganizados como “pedras jogadas por aí”, e elaborou uma estratégia para expandir o eleitorado em vez de simplesmente se apegar a uma parcela dele. Recolher essas pedras é a ambição por trás da segunda tentativa de Sanders de concorrer à presidência. É também a base de seu argumento sobre a possibilidade de vencer as primárias do partido e, ao final, as eleições gerais contra o atual presidente Donald Trump.
“Lá se vão 40 casas. Lá se vão 40 casas. Lá se vão 40 casas”, Martin assinalava em sua cabeça, contabilizando as oportunidades perdidas.
Já é mais do que sabido que o caminho de Sanders para a indicação como candidato depende da ativação dos insatisfeitos. Os exatos planos de sua campanha para transformar isso em realidade, no entanto, permanecem um segredo bem guardado. Entrevistas com dezenas de autoridades de campanha, voluntários e aliados de Sanders revelam um mecanismo de organização complexo e com bastantes recursos, que vem sendo estruturado há cinco anos. É a iniciativa mais ambiciosa até agora para reunir o estilo de organização “olho no olho” com tecnologias que até então não estavam disponíveis. Caso Sanders consiga obter a vitória, será graças à confiança que ele depositou em seus apoiadores voluntários para fazerem muito mais do que qualquer campanha já pediu – e sua operação de organização receberá, merecidamente, boa parte do crédito por isso.
A ênfase nessa organização – e sua respectiva dedicação financeira – não passaram despercebidas pelo restante do pessoal envolvido na campanha. A equipe de organização se espalha por boa parte do espaço da sede em Washington: a estratégia descentralizada no nível nacional exige, paradoxalmente, mais pessoal na sede central para coordenar as operações. A intenção é que os voluntários complementem o trabalho dos organizadores remunerados para aumentar as possibilidades exponencialmente, sem substituir o trabalho de campo tradicional. A campanha, de fato, ao contrário do que aconteceu em 2016, não padece de falta de pessoal. São mais de 800 pessoas empregadas, mais de 250 em Iowa, cerca de 140 em New Hampshire, e 54 funcionários de campo na Califórnia.
Isso cria um custo fixo pesado – aumentado por um acordo coletivo que, seguindo a política pró-trabalhador de Sanders, é bastante generoso em relação a outras campanhas. Até dezembro, esse custo tinha contribuído para um orçamento apertado na entrada em Iowa: a campanha digital apertou seu exército de pequenas doações, e a organização restringiu todos os gastos fora de Iowa. Enquanto outras campanhas testam artifícios para reduzir a média do valor das doações recebidas, a campanha de Sanders está fazendo tudo que pode para aumentar sua média. Depois de um quarto trimestre em que a captação de recursos disparou – a coordenação de campanha anunciou uma arrecadação de 34,5 milhões de dólares, com uma doação média de 18 dólares – ainda mais pessoal de campo está a caminho para trabalhar diretamente com os voluntários.
Investir pesado em Iowa é uma forma de remediar o que se acredita ter sido um erro fundamental da campanha em 2016. Sanders e boa parte dos mais próximos a ele não acreditavam, até que o pleito já estivesse bem adiantado, que ele poderia vencer. Tinham a intenção de que ele concorresse como candidato de protesto para puxar Hillary Clinton para a esquerda. Com isso, ele não investiu da forma como poderia nos primeiros estados, um erro de cálculo que se mostrou especialmente doloroso quando Sanders perdeu em Iowa por um lance de dados. Sanders venceu em New Hampshire, mas perdeu Nevada, Carolina do Sul, e foi arrasado no Sul em uma “Super Terça”. Ele nunca recuperou o impulso de que precisava. Dessa vez, a campanha acredita que uma vitória em Iowa é essencial, e os recursos estão sendo direcionados em massa para o estado, na expectativa de levar um número decisivo de novos participantes à convenção. Na sequência dos estados iniciais, Sanders planeja ter milhares de voluntários já treinados, prontos para ampliar sua atuação em uma campanha de âmbito nacional.
Ao investir tanto em organização, Sanders está apostando que pode ampliar para o nível nacional a estratégia que usou para vencer a disputa pela prefeitura de Burlington, em Vermont, e desarmar o sistema local. Ou talvez ele tenha calculado que não existem outros caminhos para vencer as primárias do Partido Democrata – onde os eleitores tradicionais são mais velhos, mais ricos e mais decididos a derrotar Trump, e estão inseguros sobre a elegibilidade de um socialista democrata de 78 anos, não importa quantas pesquisas cabeça-a-cabeça sejam apresentadas.
Ainda que dê errado, é muito provável que um legado permaneça. Sua campanha de 2016 ativou milhares de pessoas que de outra forma talvez não tivessem se interessado por política, e a de 2020 está tendo o mesmo efeito. Uma ramificação da última disputa, Ocasio-Cortez, compareceu ao comício do Queens, onde Sandberg esperava transformar 26 mil pessoas em centenas de milhares de conversas com eleitores. No evento de lançamento de Sanders no Brooklyn, no começo de 2019, com entrada restrita e uma longa fila de pessoas, a equipe de Sandberg, armada com tablets Android, conseguiu registrar mais de três quartos dos presentes. O enorme comício no parque do Queens foi mais desafiador, mas sua equipe ainda conseguiu registrar aproximadamente 3 mil pessoas. Centenas dessas pessoas compareceram no dia seguinte a um evento de campanha chamado barnstorm, que por sua vez gerou centenas de novos eventos conduzidos por voluntários, como mutirões telefônicos, bem como centenas de viagens a New Hampshire para bater de porta em porta.
O que está em jogo nessa campanha não é apenas o rumo da candidatura deste ano, mas o futuro da aliança do Partido Democrata, que não é o partido multirracial de classe trabalhadora que Sanders e muitos dos seus apoiadores gostariam que fosse. O próprio Sanders, historicamente, não foi membro.
A cobertura das eleições de meio de mandato de 2018 trouxe para o discurso político o termo “distritos Whole Foods” – uma forma de descrever a prevalência dos democratas nos distritos políticos de subúrbios de classe mais alta. A expressão, por si só, é uma variação de um comentário de Brian Fallon, funcionário do Partido Democrata, de que uma maioria democrata na Câmara passa pela Panera Bread.
Blue Wave in a nutshell: Democrats are doing really, really well anywhere that’s within like a 20 minute drive from a Whole Foods Market.
— Dave Wasserman (@Redistrict) October 19, 2018
Even if he doesn't hit 50 tonight, Ossoff is showing us the path to retaking the House. It runs through the Panera Breads of America.
— Brian Fallon (@brianefallon) April 19, 2017
Isso pode ser verdade no caso de uma maioria na Câmara, mas para que um socialista democrata conquiste a indicação do Partido Democrata para concorrer à Casa Branca, Sanders considera que vai precisar fazer mais do que simplesmente persuadir a maioria do eleitorado das primárias a comparecer e votar nele. Ele vai precisar criar um novo eleitorado.
Para entender a magnitude da mudança de classe que estamos presenciando na política partidária dos EUA, é preciso voltar a 1960, logo antes de os democratas embarcarem na legislação dos direitos civis. À época, os republicanos do norte estavam envolvidos num esforço para vincular sua política favorável ao empresariado com os segregacionistas do Sul – ambos motivados por uma intenção de enfraquecer o governo federal.
Realinhamentos não ocorrem devagar e com estabilidade, mas tendem a acontecer aos solavancos: aumentos súbitos, seguidos de estagnação. Em 1960, nos distritos da Câmara onde a renda correspondia à dos 40% mais pobres, o mais provável é que os democratas fossem escolhidos em vez dos republicanos, independentemente do critério de raça. Nas eleições de meio de mandato de 1966, na esteira do movimento pelos direitos civis e do projeto da Grande Sociedade, os republicanos fizeram incursões entre os brancos da classe trabalhadora, e conseguiram capturar dos democratas um quinto dos distritos mais pobres. Nas eleições de meio de mandato de 1974, na sequência do impeachment de Richard Nixon, os distritos mais ricos começaram a se movimentar rumo ao Partido Democrata. Essa repartição permaneceu aproximadamente a mesma pelas décadas seguintes, até a onda azul de 2006, quando o eleitorado democrata ficou ainda mais rico.
A onda do Tea Party em 2010 levou mais distritos pobres e de classe trabalhadora para os braços dos republicanos, o que acelerou o realinhamento, mas foi 2018 que cristalizou os democratas como o partido das pessoas que fazem compras no Whole Foods. Em 1960, os democratas representavam praticamente todos os distritos entre os 20% de menor renda, e quase metade dos mais ricos. Depois das eleições de meio de mandato de 2018, passaram a representar 83% dos distritos mais ricos. O Partido Democrata saiu de um domínio quase universal sobre os distritos mais pobres para um controle de apenas cerca de 40%. Os partidos trocaram de lugar na escala de renda.
Atualmente, representar os distritos mais ricos e representar os ricos são coisas diferentes. Pesquisas de boca de urna em 2016 mostraram que Trump ganhou por dois pontos percentuais entre os eleitores com renda superior a 250 mil dólares anuais. Em 2018, mesmo tendo arrebatado os bairros de classe média, os democratas perderam entre as pessoas com renda superior a 100 mil dólares anuais, e também entre aquelas de renda superior a 200 mil dólares anuais, embora tenham vencido no recorte inferior.
Mas há indícios de que essa representação dos distritos mais ricos seja um indicador claro do direcionamento do partido. Um novo estudo feito pelo economista Thomas Piketty, que embasa seu novo livro “Capital e ideologia” – sequência do best-seller de 2013, “O capital no século 21” – mostra que os eleitores com alto nível de escolaridade abrem um caminho que depois é seguido pelos mais ricos. Em 1960, os principais apoiadores do Partido Democrata tinham níveis de renda e escolaridade mais baixos que os dos republicanos. A partir de 64, teve início uma divergência: os eleitores de alto nível de escolaridade se bandearam para o Partido Democrata, embora aqueles entre os 10% mais ricos tenham permanecido no Partido Republicano. Ao longo desse percurso, os republicanos – membros do ainda “partido dos ricos” – traçaram habilmente uma caricatura dos democratas como a elite fora da realidade, professores de arte liberais desvinculados dos verdadeiros americanos bebedores de cerveja.
Quando o Partido Republicano representa os ricos e o Partido Democrata representa os bem-educados, mas não necessariamente ricos, segundo Piketty, não há um partido óbvio para abrigar a classe trabalhadora, e não há motivação para que o governo faça muita coisa por essa classe.
É uma tendência global que a campanha de Sanders está tentando bloquear e reverter. Em vez de criar uma plataforma que se adapte a uma coalizão, a campanha de Bernie está tentando criar uma coalizão que se adapte à sua plataforma.
Piketty descobriu que, em 2016, pela primeira vez os eleitores entre os 10% mais ricos tinham mais chances de votar no Partido Democrata que os 90% mais pobres, o que torna ainda mais oportuno o realinhamento que Sanders pretende impor. Sem ele, os democratas podem em algum momento se tornar tanto o partido dos mais escolarizados quanto o dos super ricos. Esse seria um partido cujas ambições políticas poderiam ficar encurraladas em meio às preocupações daqueles que já estão em situação confortável. A senadora Elizabeth Warren, por exemplo, ao recuar da proposta de acabar com os seguros de saúde privados em sua primeira investida contra o “Medicare para Todos”, estava respondendo aos seus apoiadores de maior escolaridade, que a abordavam nos comícios com a preocupação de que pudessem perder seus caros seguros de saúde. “O cerne da questão é que as pessoas com maior probabilidade de aparecer nos eventos dela são aquelas que já têm um seguro de saúde razoavelmente bom”, disse, ao Washington Post, Rod Sullivan, apoiador de Warren e membro do conselho de supervisores do condado de Johnson, em Iowa. “E aí, quando outros candidatos semeiam a dúvida entre eles e dizem ‘ela vai tirar isso de vocês. E se for pior do que o que vocês têm?’, Essas pessoas ficam ansiosas.”
Como observou Piketty, quando os dois principais partidos estão atendendo as elites, o sistema não consegue oferecer ganhos substanciais para a base ampla da população, então os partidos disputam a única coisa que uma nação pode controlar: suas fronteiras e a correspondente definição de cidadania. Sem um partido que defenda programas universais de ascensão social e um esforço coletivo para fazer frente aos desafios sísmicos que se apresentam no planeta, o diálogo nos EUA, da mesma forma que já começou a acontecer na Europa, vai se dissolver em batalhas por questões de imigração e nacionalismo, que a direita tem boas condições de vencer ao explorar o medo, a xenofobia e o sentimento de antielitismo. Em um comício em dezembro, Sanders destacou o que ele considera estar em jogo: “Estamos em um momento crucial da história dos EUA e do mundo. O futuro do planeta depende dessa eleição de uma forma muito relevante”. A abordagem da campanha de Sanders dificilmente poderia ser mais urgente ou necessária como forma de enfrentar a emergência climática e a crise global dos refugiados. Resta saber se ela vai ou não ser um caminho para vencer a eleição presidencial.
“Por muito tempo, o Partido Republicano simplesmente usou o racismo para segregar as pessoas, a serviço dos seus verdadeiros interesses políticos”, entende Sandberg, “que eram simplesmente favoráveis às grandes empresas e aos 1% mais ricos. Mas o Partido Democrata ainda não conseguiu compreender inteiramente o antídoto óbvio para isso: é preciso formar uma aliança multirracial da classe trabalhadora, polarizando as questões econômicas e apontando o engodo que o Partido Republicano vem empregando contra muitos de seus eleitores, ao explorar seus medos de forma racista para segregar e distrair as pessoas enquanto acumulam toda a riqueza da sociedade para si e seus apoiadores em Wall Street”.
No fim de semana antes do Natal, Navarro saiu para fazer recrutamento para Sanders e seus colegas do DSA, como em quase todos os sábados. Naquela manhã, porém, ele sentiu algo diferente. Sanders estava subindo nas pesquisas, e enquanto Navarro ia de porta em porta, o senador de Vermont estava participando de um comício em Los Angeles, mais uma vez com a participação de Ocasio-Cortez, que atraiu cerca de 14 mil pessoas embora tivesse pouquíssima cobertura de imprensa. Dali a dupla pegou um voo para Las Vegas, onde Navarro foi se encontrar com Sanders pela primeira vez desde que havia presenciado seu ataque cardíaco. Ocasio-Cortez, que no dia seguinte faria um comício em espanhol – a que Navarro também compareceu – apresentou Sanders, mas se concentrou em falar da importância da organização como forma de persuadir não votantes a comparecerem e votarem. “É como eu disse quando concorri pela primeira vez: nós temos as pessoas, eles têm o dinheiro”, declarou Ocasio-Cortez, retomando uma fala de sua campanha para o Congresso em 2018 (de que eu me apropriei para o título do meu livro recém-lançado, de onde tirei a pesquisa jornalística que embasa esta matéria).
“Cada um de nós tem algo a contribuir para o movimento”, disse ela à audiência de cerca de 2 mil pessoas que compareceu à Chaparral High School. “Não estamos aqui para ser espectadores da nossa democracia. Estamos aqui para lutar por ela. Por isso precisamos decidir: você vai levar alguém com você para a convenção do partido? Você vai criar algum tipo de arte, vai espalhar pelas ruas? Você vai organizar uma reunião de campanha (barnstorm)? Você vai ligar para as pessoas de Iowa?” Poderia ser até mesmo só um post no Facebook, disse ela, e acrescentou: “mas não entre em discussões com as pessoas, isso não leva a nada”.
“Na noite da convenção, ligue a TV logo cedo, e se o mediador disser que há um grande comparecimento de eleitores, nós vencemos. Se ele disser que há baixo comparecimento de eleitores, nós perdemos. É simples assim, de verdade.”
O objetivo, segundo Ocasio-Cortez, é encontrar pessoas que nunca votaram, e argumentar com elas que vale a pena fazê-lo. “A conversão que mais nos interessa é de não eleitores para eleitores. É com esse eleitor convertido que vamos ganhar a eleição das primárias e a eleição geral. Então o que eu preciso que todos façam é sair e encontrar o maior número possível desses eleitores para converter”, disse ela, defendendo que é incorreto dizer que os não eleitores são apáticos.
“O que precisamos comunicar é isso, que esse ano, ao longo de dois dias – o das primárias e o das eleições gerais – vale a pena acreditar. Apenas deixe de lado sua descrença por dois dias do ano, é só isso que estou pedindo”, pleiteou Ocasio-Cortez.
Sanders seguiu no mesmo mote. “Alexandria bateu nessa tecla há alguns minutos, e eu quero bater de novo”, disse ele. “Há um bocado de gente lá fora que desistiu. Você os conhece. Alguns de vocês estão nesse salão – desistiram do processo político, meu voto não significa nada, a política é uma besteira. Por que eu iria querer votar?”
Ele alertou às pessoas que, quando saíssem e contassem aos amigos que tinham ido a um comício do Bernie Sanders, deveriam estar preparadas para que esses amigos perguntassem por que elas tinham se dado ao trabalho. “Por que gastar seu tempo se envolvendo com essas coisas? E aí você diz a eles que está cheio disso. Diga para que parem de reclamar e se envolvam no processo político.”
Se eles se envolverem, ele continuou, podem vencer. “A verdade é que podemos vencer essas eleições se tivermos o maior comparecimento de eleitores da história desse país”, disse ele. “Temos força em Iowa, temos força em New Hampshire, podemos vencer aqui em Nevada, acredito que podemos vencer na Califórnia e ir muito bem na Carolina do Sul. Nós podemos vencer e conseguir a indicação do Partido Democrata, mas não há como fazer isso sem aumentar o envolvimento no processo político.”
Sanders disse então que aumentar o tamanho do eleitorado é tudo. “Na noite da convenção, ligue a TV logo cedo, e se o mediador disser que há um grande comparecimento de eleitores, nós vencemos. Se ele disser que há baixo comparecimento de eleitores, nós perdemos. É simples assim, de verdade.”
Sandberg estava no Ensino Médio quando participou de um protesto contra o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional em abril de 2000, em Washington, D.C. As enormes manifestações faziam parte de um movimento mundial contra a globalização, precursor do Occupy Wall Street, que reunia elementos trabalhistas, ambientalistas e do “sul global” para protestar contra a hegemonia das grandes corporações ocidentais e do regime de comércio que era exploratório no exterior e destruía a classe média domesticamente. Ela foi detida ilegalmente num episódio de prisão em massa do tipo que fazia a fama da polícia de D.C. à época, e dez anos depois acabou recebendo uma indenização de 18 mil dólares em um acordo em ação coletiva.
Em 2010, ela usou o dinheiro para ajudar a organizar um novo grupo local, chamado Frack Action, com o objetivo de proibir o fracking” no estado de Nova York, o que era considerado completamente irreal naquele momento. No entanto, e em grande parte graças à organização do grupo, o setor de combustíveis fósseis ficou sem ação quando o fracking foi banido em âmbito estadual em 2014. Sandberg então migrou para a Rainforest Action Network, um grupo ambiental radical que emprega desobediência civil na forma de ocupações e barricadas em reuniões, juntamente com uma estratégia de mídia para pressionar governos e grandes empresas.
Mas ela sabia que ir de estado em estado e de empresa em empresa não seria suficiente, e considerava que algo precisava mudar no alto escalão para permitir que os grupos de base avançassem proporcionalmente à extensão da crise. Ela não conhecia ninguém na campanha de Sanders, mas estava com sorte: ninguém que desejasse uma carreira dentro do Partido Democrata se interessava em trabalhar para Sanders, para não correr o risco de ficar do lado errado contra os vingativos Clintons. Como Sandberg não queria fazer carreira em Washington, isso não era obstáculo, e a campanha então a convocou, juntamente com Zack Exley e, posteriormente, Becky Bond para comandar o programa de organização digital.
Sua tarefa imediata era cumprir uma promessa de campanha e organizar milhares de watch parties em 29 de julho de 2015 para demostrar a amplitude e a profundidade do apoio à campanha. Exley e Sandberg logo descobriram que nenhuma cavalaria viria ao resgate de seus esforços. “Bernie é um solitário”, disse Exley sobre a versão 2015 de Sanders, antes que ele se tornasse um líder com um verdadeiro grupo de seguidores. “Ele faz as coisas do seu próprio jeito. Mas também não permite que outra pessoa promova uma organização. Ele acompanhava de perto e questionava cada contratação durante a campanha. O diretor financeiro ficava desesperado; Bernie não aprovava nada.” Há uma clara diferença entre a microgestão de Sanders em 2016 e seu estilo em 2020, agora que a liderança da campanha tem espaço para tomar decisões (o que, por sua vez, significa que essa liderança vai receber críticas caso as decisões não se revelem acertadas).
O modelo de captação de recursos de Sanders em 2016 era diferente das campanhas tradicionais, que se apoiavam nas contribuições altas e no sistema de “super PACs”. Não sem razão, ele se preocupava com o momento em que a fonte pudesse subitamente secar. Em razão disso, Sandberg, Exley e Bond precisavam montar sua operação de organização com poucos recursos, reunindo um orçamento apertado e uma equipe de voluntários altamente comprometidos. Uma estratégia de organização de baixo para cima que deixa boa parte da iniciativa e da responsabilidade nas mãos de voluntários é conhecida como uma organização descentralizada (ou “grande organização”, o termo que Exley e Bond depois usaram em seu livro sobre o assunto, “Rules for Revolutionaries”). A equipe de Sandberg precisou em grande parte esconder essa iniciativa da chefia na sede da campanha, que se sentia desconfortável em delegar responsabilidades relevantes para os voluntários. A campanha, no entanto, tinha aprovado a contratação de um punhado de estagiários. A equipe não queria um bando de universitários apenas em busca de dinheiro. Eles queriam gente que realmente acreditasse, e foi o que Exley encontrou ao visitar um evento no condado de Orange, na Califórnia, quase totalmente organizado por alunos de faculdades comunitárias: Alexandra Rojas, Cole Edwards, Kyle Machado e Lynn Hua. Sem os mesmos recursos dos estudantes mais abastados, não tinham um meio simples para chegar ao escritório central. Eles se amontaram no Nissan Murano de Edward e atravessaram o país dirigindo até Burlington, Vermont, organizando reuniões ao longo do caminho. Hanna Fertig, uma organizadora universitária da Universidade do Colorado, em Boulder, completou a equipe.
Não se esperava muito dessa operação. Sandberg se recorda de uma das primeiras reuniões com um dos líderes do movimento, que acabou caindo fora, um indicativo da forma em que a militância tradicional enxergava o que eles tentavam fazer ali. “Lembro que ele nos disse: ‘olha, pessoal, vocês são o cachorro dançarino. Fiquem satisfeitos porque o cachorro dança. Não tentem inventar que ele faça mais nada’”, conta ela. “O que ele queria dizer é que já é um sucesso o simples fato de termos um sistema em que as pessoas podem vir por conta própria toda semana (…) com amigos e organizar eventos em prol de Bernie, desenhando com giz na calçada, fazendo um buzinaço ou colocando uma mesa em uma feira agrícola – e que isso é o melhor que dá para fazer, envolver pessoas que, sem participação da equipe de campanha, se ocupam de tarefas que todo mundo sabe que não são relevantes.”
Em vez disso, os organizadores queriam que os voluntários executassem tarefas relevantes: entrar em contato com eleitores, persuadi-los e virar votos. Demorou bastante até que conseguissem ajustar o mecanismo de funcionamento. Uma peça que finalmente se encaixou e se tornou fundamental para a campanha de 2020 é o novo conceito de barnstorm. Em certo sentido, o termo barnstorm, que poderia ser traduzido como “reunião de aquecimento”, é tão antigo quando a própria ideia de organização eleitoral nos EUA: uma reunião de um grupo de apoiadores, onde o objetivo é indignar as pessoas e depois convidá-las a participar de alguma ação que beneficie a campanha, como organizar um mutirão telefônico ou um evento de recrutamento. Mas só esses ingredientes não eram suficientes para permitir o máximo aproveitamento da energia dos potenciais voluntários, e foram meses repetindo o processo até encontrar a fórmula adequada de pressão social, comprometimento e imposição que levaria a um impulso de ação que se retroalimentasse.
Em janeiro de 2016, a operação de organização estava finalmente começando a deslanchar. “Só conseguimos construir a pista logo antes de chegar ao final dela”, conta Sandberg. “Até janeiro de 2016 ainda não tínhamos nem contratado a maior parte da nossa equipe descentralizada, e só tínhamos chegado a um milhão de ligações do total de 85 milhões que chegamos a fazer em Iowa.”
Enquanto a equipe descentralizada se ocupava dos estados tardios, onde ainda não havia pessoal local, os estados iniciais como Iowa estavam sendo conduzidos da forma tradicional. Essa abordagem exige que os voluntários compareçam a um escritório local de campanha para fazer ligações, buscar material de campanha ou fazer recrutamento porta a porta. O pessoal de campo passa o tempo no telefone, tentando recrutar mais voluntários.
“Só conseguimos construir a pista logo antes de chegar ao final dela”, conta Sandberg sobre a operação de 2016.
Em março, depois das quatro primeiras disputas, em que Sanders ganhou New Hampshire, perdeu Iowa e Nevada por pouco, e foi arrasado na Carolina do Sul, o foco mudou para os estados da “Super Terça”, quando várias convenções estaduais acontecem ao mesmo tempo. Isso causou um conflito: a campanha tradicional começou a enviar para campo o pessoal contratado, que se deparava com a experiência descentralizada radical então em curso. Em alguns estados, a equipe de campo trabalhou em colaboração com a equipe descentralizada – em geral, porque Sandberg tinha ajudado a contratar o diretor estadual específico – mas em outros eles acabaram expulsando as operações de voluntários como Sanberg, Exley e Bond. Em um determinado estado, a campanha cancelou um mutirão telefônico organizado por voluntários, porque haveria um evento de inauguração do primeiro escritório oficial do pessoal de campo, e não queriam concorrência. Às vezes as coisas funcionavam. Em Michigan, a operação descentralizada já estava em ação meses antes de o pessoal de New Hampshire ser realocado para lá. A conexão ocorreu com tranquilidade, ampliando a atuação dos voluntários previamente organizados.
Na maior parte das campanhas, a equipe da linha de frente, encarregada de organizar os eventos, normalmente fica isolada do restante da operação, em especial dos organizadores de campo. Um evento exige preparação meticulosa, pois cada parte depende do funcionamento das demais no momento exato em que sejam necessárias. Nenhuma peça extra é desejável nesse quebra-cabeças. Certo dia em Lansing, Michigan, em março de 2016, a equipe de campo de Sanders, apoiada pelos voluntários, reuniu uma multidão estimada em 10 mil pessoas em um comício realizado no Breslin Center. A despeito de alguns contratempos com o pessoal da linha de frente, os organizadores conseguiram registrar 3 mil pessoas no evento para o trabalho voluntário – usando papel, não os aparelhos Android. Ao longo dos dias seguintes, entraram em contato com cada uma dessas pessoas, encorajando-as a cumprir os compromissos. Mesmo com uma proporção razoável de “furos”, o evento de Lansing foi facilmente convertido em dezenas de milhares de conversas porta a porta em Michigan. Sanders aparecia com 20 pontos a menos em 8 de março, quando aconteceu a votação das primárias, mas teve uma reviravolta surpreendente contra Clinton.
Porém, mesmo naquele momento, estava começando a ficar claro que não era mais possível vencer as primárias, e o prego no caixão foi uma derrota feia em Nova York. Em março, uma parte da equipe de organização descentralizada – Exley, Corbin Trent, Saikat Chakrabati, e Rojas, que fazia a logística dos barnstorms – saiu da campanha para fundar, juntamente com Isra Allison, o PAC Brand New Congress, que foi lançado em abril. Posteriormente, o grupo se desmembraria para formar o PAC Justice Democrats.
Sandberg, por sua vez, ficou até o final infeliz, apagou as luzes da campanha depois da convenção, e se uniu a outro grupo, chamado Our Revolution, que Sanders organizou para dar seguimento à revolução política. Era um movimento alinhado à estratégia de Sanders de reformar o Partido Democrata rumo a uma imagem mais progressista e de classe trabalhadora. Em vez disso, tornou-se parte das estatísticas contrárias ao argumento de que tal reforma fosse sequer possível. Embora tenha tido certo sucesso, ficou longe de se tornar uma força relevante dentro da política do Partido Democrata.
A única condição imposta por Sandberg para se unir ao Our Revolution era simples: Jeff Weaver, o diretor da campanha de Sanders em 2016, não poderia estar à frente do grupo. Weaver estava alinhado a Sanders quanto a fazer uma revolução política, mas a questão de como conseguir isso pelo Our Revolution era um pouco diferente. Os ativistas que pretendiam tocar o Our Revolution queriam uma organização descentralizada de baixo para cima, e Weaver preferia um modelo mais tradicional para um grupo externo, financiado por grandes doações em uma base financeira reduzida.
Sanders prometeu que Weaver não estaria no comando, e transformou Shannon Jackson, seu ex-assistente pessoal – a pessoa que segue um político para verificar se tudo está no lugar – em diretor executivo.
Our Revolution tornou-se parte das estatísticas contrárias ao argumento de que tal reforma fosse sequer possível.
Weaver, porém, acabou assumindo a presidência do Our Revolution, e o grupo foi enquadrado legalmente nos termos da seção 501(c)(4) do U.S. Code. Por esse enquadramento, poderia receber contribuições ilimitadas sem necessidade de transparência (dark-money), mas não poderia trabalhar diretamente com as campanhas. Era exatamente o oposto do que a equipe do Our Revolution esperava encontrar.
Sandberg, juntamente com a maioria dos contratados, optou por sair do grupo. Quando a história veio a público, ela não guardou segredo.
“Tem a ver tanto com a captação de recursos quanto com os gastos: Jeff quer conseguir dinheiro alto de pessoas ricas, inclusive bilionários, e gastar em anúncios publicitários”, afirmou Sandberg ao site Politico, especializado em notícias da área. “É o oposto do que deveria ser o objetivo dessa campanha e desse movimento, e depois de falar com firmeza e acionar o alarme, a equipe não viu outra alternativa a não ser sair.”
Depois de se unir ao PAC MoveOn [Siga em Frente] e apoiar Hillary Clinton nas eleições gerais, Sandberg passou boa parte do final de 2016 e começo de 2016, pós-eleições, como muitas pessoas: sendo presa em manifestações no Capitol Hill e pressionando os democratas a endurecerem o jogo contra Trump.
Por fim, Sandberg saiu do país e foi ajudar no treinamento de movimentos de esquerda na Europa, levando as lições aprendidas pela operação de organização da campanha de Sanders. Ela se uniu ao Podemos na Espanha, ao Labour Party no Reino Unido, e ao Die Linke na Alemanha. As campanhas insurgentes nos EUA, porém, a atraíram de volta: primeiro, conduzindo a operação de organização para Abdul El-Sayed, candidato ao governo do estado de Michigan. Ela levou para lá Hannah Fertig, a ex-estagiária da campanha de Sanders que havia ajudado a organizar o evento de Lansing. Depois de vencer as primárias em junho de 2018, Ocasio-Cortez, juntamente com Sanders, declarou apoio a El-Sayed e fez campanha para ele em Michigan, mas El-Sayed perdeu as primárias.
Sandberg se mudou de lá para conduzir uma operação externa de última hora, financiada pelo minoritário Working Families Party, o WFP, tentando impulsionar a candidatura do desafiante Kerri Harris nas primárias do Senado em Delaware. Harris também não conseguiu. Ela ainda ajudou o WFP, que declarou apoio a Elizabeth Warren em 2020, nos esforços para eleger Zephyr Teachout como procuradora-geral de Nova York e Jumaane Williams como vice-governador. É possível encontrar justificativas idiossincráticas para cada uma dessas derrotas, como para muitas outras derrotas de candidatos desafiantes em 2018. Porém, a despeito dos melhores esforços empreendidos pelos organizadores em Michigan, Delaware e Nova York – Rojas, outro ex-estagiário de Sandberg, também havia se mudado para Delaware depois de ajudar na vitória de Ocasio-Cortez – os eleitores das primárias do Partido Democrata simplesmente escolheram outro rumo, em mais um lembrete do tamanho do desafio à frente de Sanders (Williams, porém, depois foi eleita ouvidora da cidade de Nova York).
À medida que 2020 foi se aproximando, Sandberg começou a imaginar qual seria o alcance da próxima campanha de Sanders, caso todo seu potencial fosse realmente aproveitado, com mais de um ano para se preparar. Ela fez as pazes com Weaver e pediu desculpas por ter lavado roupa suja em público. Sanders, numa decisão administrativa que posteriormente teria implicações drásticas sobre o tipo de campanha que viria a conduzir, concordou em trazê-la de volta. Dessa vez, porém, decidiu colocar sob a batuta de Sandberg a operação de organização inteira – descentralizada, tradicional, tudo.
Weaver passaria a ser um assessor sênior, não um diretor de campanha. A mudança rumo a uma campanha de mobilização, porém, jogou fora parte do bebê de 2016 junto com a água do banho. Mesmo em estágio inicial, a campanha de 2016, conduzida por Weaver, foi surpreendentemente eficaz (Weaver continua envolvido, mas apenas como assessor sênior). Durante sua primeira candidatura, os consultores de mídia de Sanders, liderados por Tad Devine, um aliado de longa data, foram parte fundamental do processo. Eles produziram uma peça memorável chamada “America“, que viralizou e deu um impulso importante à campanha. Dessa vez, não há mais consultores – eles saíram quando Sanders detonou o vídeo de lançamento que haviam produzido e fez uma versão própria – agora, os anúncios são produzidos internamente. Nenhum deles foi especialmente memorável. O único vídeo viral foi criado por um apoiador de Sanders, que depois foi contratado e demitido quase imediatamente.
This fan-made video about Bernie Sanders has racked up 1.7 million views on Twitter. https://t.co/HS5uZcvY7R
— Holly Otterbein (@hollyotterbein) October 5, 2019
Uma campanha que se enxerga primeiro como movimento social e só depois como campanha pode acabar criando distrações em prejuízo próprio. Logo no começo, assessores que se opunham a certos termos da negociação com o sindicato vazaram a notícia para a imprensa. Depois, parte da equipe que se insurgia contra o uso da Amazon e do Airbnb pela campanha também vazou essa intriga para a imprensa.
Mas também há vantagens. Em 2018, organizadores que depois viriam a se juntar à campanha de Sanders conseguiram algumas vitórias políticas enquanto trabalhavam para Jess King na disputa pela Câmara na Pensilvânia, simplesmente porque não se restringiam a angariar votos. De maneira semelhante, mas em muito maior escala, a campanha empregou seus recursos de forma sem precedentes em prol de lutas que não estão diretamente relacionadas a questões da candidatura. “Antes de começar, Bernie me disse: ‘Vamos ter uma força de organização muito poderosa, mas não apenas a serviço da campanha, quero que esteja a serviço também de movimentos alinhados aos nossos valores'”, o diretor de campanha, Faiz Shakir, contou ao The Intercept.
O representante de Sanders, Joe Calvello, informou que, até agora, a campanha enviou centenas de milhares de e-mails e pelo menos meio milhão de mensagens de texto encorajando os militantes a se reunirem em mais de cinquenta movimentos grevistas, protestos, e outras ações.
Durante a greve do Sindicato dos Professores de Chicago, o CTU, a campanha produziu vários vídeos, enviou dezenas de milhares de mensagens de texto e e-mails em apoio à greve, e indicou um dos contratados para se envolver diretamente com o CTU.
Em setembro, durante a greve do Sindicato dos Professores de Chicago, o CTU, Sanders se encontrou com os professores e participou dos atos de greve, mas não parou só nisso. A campanha produziu vários vídeos, enviou dezenas de milhares de mensagens de texto e e-mails em apoio à greve, e indicou um dos contratados, Alex Han, para se envolver diretamente com o CTU. Ele organizou um treinamento de desobediência civil para aproximadamente 600 professores e funcionários, ensinando a eles como bloquear o tráfego ou fechar entradas de prédios, manobras que o CTU usou com sucesso durante a greve. Enviar e-mails para os militantes encorajando-os a se reunir em piquetes, como a campanha fez diversas vezes, não sai de graça. Cada e-mail disparado para impulsionar o movimento é um e-mail que deixa de angariar dinheiro para a campanha.
Em junho, quando o governo Trump anunciou que pretendia usar um antigo campo de concentração para nipo-americanos, o Fort Sill, como centro de detenção de imigrantes, grupos locais planejaram um protesto. Calvello conta que a campanha identificou centenas de apoiadores nas redondezas de Fort Sill, e ajudou a coordenar o protesto e levar as pessoas para a rua, além de produzir um vídeo. O governo depois voltou atrás nos planos.
Quando o governo ameaçou fazer incursões em grandes cidades por todo o país, a campanha enviou gráficos de “conheça seus direitos” em espanhol e em inglês. O material foi feito com base nas orientações da American Civil Liberties Union, a ACLU, onde o diretor de campanha Faiz Shakir havia sido diretor político pouco tempo antes. A isso se somam os ganhos materiais que Sanders obteve, inclusive aumentos de salário para trabalhadores da Amazon e da Disney.
A primeira contratação de Sandberg foi Becca Rast, veterana do movimento pelo clima que ajudou a lançar o Movimento Sunrise – onde ela era a segunda mais velha, aos 27 anos. Quando Sandberg entrou em contato pela primeira vez, Rast não tinha interesse em trabalhar para uma campanha presidencial. Ela tinha acabado de se atirar em uma das disputas mais dinâmicas do ciclo de 2018, como diretora da campanha de Jess King para o Congresso em plena região Amish da Pensilvânia – sua terra natal, o condado de Lancaster. O distrito se mostrou inexoravelmente republicano, e King perdeu por 18 pontos percentuais, mas conseguiu aumentar o comparecimento dos democratas a um número que teria sido suficiente para vencer caso o distrito não tivesse sido redesenhado pelo tribunal estadual no meio da disputa.
Mas Sandberg apresentou a ela a magnitude das ambições de organização da campanha. Isso fez sentido para Rast, que há muito tempo já se interessava em remodelar o Partido Democrata. Seus anos de juventude longe da Pensilvânia a convenceram de que regiões como a sua cidade natal não deveriam ser deixadas de lado pelos democratas. “Quando fui embora [de Lancaster], muitas pessoas disseram que o lugar de onde vim jamais seria progressista, que seria sempre conservador”, Rast contou ao Intercept. “E eu me permiti pensar isso, em certa medida. Mas quando aprendi sobre organização e como organizar a atuação das pessoas e provocar mudanças políticas, percebi quanto potencial profundo existe aqui.” Depois da eleição de Trump, ela se juntou ao marido, Jonathan Smucker, e a Nick Martin, um colega das manifestações contra a Guerra do Iraque durante o ensino médio, e formou a Lancaster Stands Up (LSU), que foi tema de uma matéria do Intercept em 2018. Quando saiu para se unir à campanha de King, levou Martin para ser seu diretor de campo.
“Nós brincamos que somos a única equipe de liderança que, se quisesse, poderia fazer uma barricada.”
Rast planejava se valer do sucesso da iniciativa de base da LSU, que tinha ajudado a virar diversas disputas locais, e expandi-la para o âmbito estadual com a formação da Pennsylvania Stands Up. Mas Sandberg foi insistente na defesa da ideia de que a campanha de Sanders representava uma oportunidade única nessa geração para mudar o jogo, e que não havia ninguém mais que estivesse equipado com as habilidades dela de fazer campanha de nível nacional e lidar com organização descentralizada. E Rast permanecia comprometida com a política global: uma semana depois da campanha de 2018, ela e Martin foram a Washington, D.C. participar de uma ocupação do gabinete da deputada Nancy Pelosi, com participação de Ocasio-Cortez. Ela fez as malas e se mudou para Washington, onde fica a sede da campanha de Sanders, para se tornar diretora nacional de ações de campo no começo de 2019.
A primeira contratação de Rast, como vice-diretor de campo, foi Martin. Para completar a equipe, foram convocados os estagiários de 2016, Fertig, Edwards, Hua e Machado, agora para funções mais altas, e trouxeram Yong Jung Cho, que Sandberg e Rast conheciam do movimento pelo clima, para ser diretora de eleitorado. O único estagiário que não voltou tinha um bom motivo: Rojas, que já foi até tema de perfil na revista Vanity Fair, é diretor executivo do Justice Democrats. Outros que se juntaram à equipe de organização nacional vieram do movimento pelos direitos dos imigrantes, do movimento trabalhista, e dos Socialistas Democratas – experiências prévias pouco comuns para operadores de campanha.
Ajudou que muitos já tinham se organizado juntos ao longo dos anos, o que reduziu a fricção das disputas territoriais internas à campanha, e facilitou o alinhamento estratégico. Isso também constituiu uma campanha única na política moderna, que se apoia mais em organizadores de movimentos do que em operadores e consultores políticos. “Vários dos nossos organizadores e contratados na verdade têm um histórico de movimentos sociais”, disse Cho em uma entrevista na sede da campanha. “Nós brincamos que somos a única equipe de liderança que, se quisesse, poderia fazer uma barricada.”
Cho parou por um momento, pensando se deveria ter dito isso. Martin interveio: “É, nós poderíamos partir para a ação direta se quiséssemos.” Em Chicago, com os professores, eles quiseram.
Brad James, de 26 anos, viu a mudança de 2016 para 2020 em ação. Ele viu Sanders falar pela primeira vez em Waterloo, Iowa, em 2015, e ficou encantado. “Está aqui um cara”, pensou James, “que não está sendo condescendente conosco e falando sobre o time de futebol da cidade. Ele só dizia ‘aqui estão os problemas, e aqui está como podemos resolvê-los’.”
James tinha um quarto vago onde hospedou voluntários de fora do estado, fez ligações, e calcula que bateu em milhares de portas naquele inverno. Ele até viajou para fazer campanha no Colorado com amigos antes da convenção local.
Porém, no meio disso tudo, ele se sentia uma engrenagem em uma máquina – sem dúvida, uma engrenagem muito bem disposta, inserida na máquina que ele esperava que pudesse mudar o país, mas uma engrenagem, de qualquer forma. “Em Iowa, havia um cabo eleitoral de Bernie no comando, e eles encaminhavam as pessoas para bater nas portas”, ele se recorda, notando a semelhança com outras campanhas de que participou depois, onde “você é um veículo para levar um panfleto a uma porta”.
“Em comparação com 2016, e considerando o quanto Bernie se saiu bem naquele momento, sinto muita esperança ao ver como a campanha está significativamente mais disciplinada e organizada, com foco na qualidade das interações, não na quantidade”, diz o voluntário Brad James.
Ele é voluntário para a campanha de Sanders novamente, dessa vez em seu estado natal de Michigan, mas percebeu uma mudança substancial. “Está diferente de 2016”, disse ele, e explicou que a campanha deixou muito claro que espera que os voluntários sejam uma parte mais relevante do que está acontecendo. Em 2016, “um monte de coisas escapavam pelos dedos. Você já tinha completado 90% do processo e o aplicativo parava de funcionar, ou algo assim.”
Desta vez, há mais tarefas para os voluntários, ele disse, mais apoio para executá-las, e mecanismos para cobrar responsabilidade das pessoas pelo que prometem fazer. Para ele, conseguir que as pessoas assinem compromissos é uma forma muito poderosa de mantê-las engajadas. “As coisas parecem muito mais organizadas”, disse James (a campanha não me concedeu acesso para entrevistar os voluntários que participam da matéria).
“Em 2016, éramos extremamente avessos a dar títulos aos voluntários ou responsabilidades de gestão sobre outros voluntários”, conta Sandberg. Exley costumava comentar que o programa de liderança para voluntários tinha que lidar com a “tirania dos chatos”, pois com frequência era a pessoa mais chata no recinto quem se interessava pelas funções de liderança. A campanha de 2016 resolveu esse problema distribuindo aos voluntários atividades específicas – organizar um mutirão telefônico, por exemplo – em vez de atribuir títulos como “capitão do mutirão telefônico”. Sandberg ainda destacou que “nós nunca dizíamos: aqui está um líder comunitário que será responsável por mobilizar os outros voluntários”.
Desta vez, a organização da campanha está mais confortável em distribuir funções de liderança. Talvez não por acaso, a necessidade de que organizadores radicais se acostumem com a hierarquia em prol da eficiência é uma das lições-chave do livro escrito por Smucker, o marido de Rast, chamado “Hegemony How-To”.
Os voluntários com cargos recebem treinamento e orientação adicionais, e já tive oportunidade de observar pessoalmente que o cargo dá a eles autoridade sobre os demais. Em dezembro, a campanha começou a expansão pelos estados da Super Terça com o lançamento do programa denominado “Capitães da Vitória”. Trata-se de uma nova posição na hierarquia, com a função de liderar voluntários nas duas primárias iniciais de março. Os Capitães da Vitória se unem aos Agregadores Comunitários, que são organizadores do eleitorado, e aos Líderes da Força Universitária, universitários que fizeram um curso de férias e que organizam seus campi de forma estruturada. A campanha tem grupos universitários ativos em mais de 700 campi, incluindo 46 faculdades e universidades historicamente negros.
Os Capitães da Vitória foram recrutados online, e cada um deles se comprometeu a dedicar à campanha pelo menos 10 horas de trabalho por semana de agora até março. Em 24 horas, 2 mil pessoas haviam se registrado para a sessão de treinamento online exigida como requisito para se tornar um Capitão da Vitória. A expectativa da campanha era que, até o fim de janeiro, mil delas já tivessem concluído o treinamento e se tornado ativas. No final de dezembro já eram 2.200. James estava entre elas. Ele contou que o compromisso de 10 horas inclui uma hora de treinamento semanal e 30 minutos de orientação com um mentor designado.
Segundo ele, a assinatura de “pseudo-contratos” e a conexão com outras pessoas fazem com que os voluntários se sintam compelidos a cumprir o que prometeram. “Eles estão agindo para cobrar mais responsabilidade dos voluntários dessa vez”, entende James.
“Em comparação com 2016, e considerando o quanto Bernie se saiu bem naquele momento, sinto muita esperança ao ver como a campanha está significativamente mais disciplinada e organizada, com foco na qualidade das interações, não na quantidade”, continua. “Você não está brigando, você só está compartilhando a sua hashtag #MyBernieStory“.
Por muitas décadas, nos EUA, “comparecimento” e “persuasão” foram as palavras-chave da campanha moderna, normalmente vistas como opostas, ou, no mínimo, como coisas distintas. Ao enfatizar a persuasão, uma campanha se dirige às pessoas que provavelmente irão votar e as persuade, por meio de propagandas de televisão, “mídia espontânea”, correspondência, etc, a votar em um candidato e não em outros. A campanha então faz o que pode para que essa pessoa efetivamente compareça à votação, mas com menos prioridade, porque a propensão passada daquela pessoa a votar permite inferir que irá fazê-lo de novo.
A ênfase no comparecimento, por outro lado, significa dar menos importância a virar os votos e mais importância a identificar e cristalizar a base de eleitores da campanha, e lembrá-los sem descanso de que precisam votar. A presunção nesse caso é que os eleitores já estariam de acordo com a mensagem do candidato, e só precisariam de um empurrãozinho para ir votar. Para a campanha de Sanders, porém, essa não é uma boa forma de pensar.
“Comparecimento é persuasão”, diz Rast. A razão para que as pessoas decidam não votar não é simplesmente estarem ocupadas (o que de fato estão) ou não saberem onde é seu local de votação (frequentemente não sabem), mas sim, acreditarem que não votar é a escolha mais racional. O sistema é o que é, os políticos são corruptos e só estão nisso por interesse próprio, e nada de significativo vai mudar. Elas podem concordar com Sanders nas questões de fundo – provavelmente concordam. Elas não concordam, porém, que faz sentido tentar colocar a pauta dele em prática. Há também uma satisfação emocional em não votar: a forma mais satisfatória de reagir a um sistema que não nos respeita pode ser não respeitá-lo em resposta. Se não é possível derrotá-lo, podemos pelo menos protestar e evitar o investimento emocional. “Muitas pessoas não consentem em ser governadas pela falta de sentido, e é por isso que não participam do nosso sistema”, disse Ocasio-Cortez no comício de Las Vegas. Assim, é preciso usar persuasão – persuadir as pessoas de que votar é importante, de que elas são importantes.
“É um desafio enorme de persuasão convencer um não eleitor de que votar é importante, de que os políticos não são todos iguais, e muitos deles odeiam igualmente os democratas e os republicanos”, conta Sandberg. “Eu quero acabar com a ideia de que convencer as pessoas a votar é só questão de comparecimento.”
Em um trajeto de carro com membros de sua equipe no começo de 2019, Sanders desabafou sobre o fato do Partido Democrata considerar os ativistas do partido e os eleitores como entidades completamente distintas, “e nunca as duas se encontrarão”.
Desde o começo de sua campanha, como Ruby Cramer documentou recentemente em um perfil no BuzzFeed, Sanders tem entregado o microfone para pessoas comuns em seus eventos, não só para dar a elas a oportunidade de fazer perguntas, mas para pedir que contem histórias sobre suas dificuldades na economia contemporânea. Ele tirou o foco da câmera de si e passou para elas, na esperança de que as pessoas se sintam importantes o suficiente – e sintam que a campanha é importante o suficiente – para que elas apareçam e se envolvam. “É uma aposta para ver se conseguimos trazer essas pessoas para dentro do processo político”, ele contou a Cramer. “Uma forma de fazer isso é dizer: ‘está vendo aquele cara? Ele é VOCÊ. Você está trabalhando para ganhar 12 dólares por hora, você não consegue pagar o seguro-saúde – como ele. Escute o que ele tem a dizer. Não é Bernie Sanders quem está falando, sabe? É aquele cara. Junte-se a nós’.”
Em um trajeto de carro com membros de sua equipe no começo de 2019, Sanders desabafou sobre uma de suas frustrações com os líderes do Partido Democrata, lamentando que eles considerem os ativistas do partido e os eleitores como entidades completamente distintas, “e nunca as duas se encontrarão”. Os ativistas podem ficar indignados, os eleitores, nunca. Eles só têm uma função: entrar na cabine, puxar a alavanca, e voltar para casa.
“O partido tem uma mentalidade limitada”, diz Rast. “Ele acredita que os eleitores não querem participar da democracia, o que não é bem verdade no momento político atual. As pessoas querem participar – agora! Temos que convidá-las a isso.”
Esse ângulo de visão, que coloca fé nas pessoas, é fundamental para a estratégia de organização. “Estamos agindo colaborativamente na construção de um movimento para Bernie que esteja adequadamente integrado desde a Claire até os organizadores de campo em Iowa, o que não tem precedente em campanhas presidenciais”, diz Rast.
É aí que entra a hashtag #MyBernieStory. Foi uma ideia que surgiu de um voluntário no Slack [aplicativo de comunicação para equipes de trabalho] da campanha: os apoiadores deveriam ter uma forma de compartilhar suas histórias. Por meio do aplicativo de campanha Bern app, eles são encorajados a gravar vídeos contando por que decidiram apoiar Sanders, e a compartilhá-los com amigos e potenciais eleitores. Seja uma emergência médica que levou a família à insolvência, uma dívida impagável de empréstimo estudantil, ou simplesmente o medo de um mundo com mudanças climáticas descontroladas, o objetivo é personalizar o político, e talvez tirar um pouco da aspereza dos militantes virtuais mais agressivos, que muitas vezes acreditam que estão ajudando a campanha quando atacam incessantemente os adversários, seus apoiadores, ou jornalistas considerados hostis a Sanders.
O propósito, no entanto, não é simplesmente o vídeo. O objetivo é direcionar a energia dos voluntários a essas histórias positivas, que eles podem contar na vida real diversas vezes. “Não acho que seja regra o estereótipo dos apoiadores de Bernie que gritam e discutem. Acho que os voluntários em geral, e às vezes a própria campanha, não sabem o que é eficaz e precisam receber treinamento. E nós queremos treiná-los para a persuasão eficaz. Esse era o objetivo do ‘Minha História com Bernie'”, explicou Sandberg.
Uma vez que uma campanha tenha uma visão mais ampla de seus apoiadores do que simples doadores de pequenas quantias, é possível fazer mais. “Era importante para nós não apenas envolver os eleitores como números no cadastro, mas como pessoas que existem umas em relação às outras e também existem em comunidades com preocupações específicas e diversas”, acrescentou.
A campanha começou a olhar o cadastro de eleitores de forma diferente. Para isso, contaram com a ajuda de Emily Isaac, que coordenou um dos programas de campo mais originais no ciclo eleitoral de 2018, o de Sri Kulkarni, no Texas (é possível afirmar que as quatro campanhas mais inovadoras daquele ciclo foram a de Kulkarni, a de Jess King na Pensilvânia, a de Ocasio-Cortez em Nova York, e a de Beto O’Rourke na disputa pelo Senado. Três dessas quatro perderam mesmo assim, mas a campanha de Sanders absorveu organizadores e estratégias de todas elas).
Acontece que as pessoas sabiam bastante sobre seus vizinhos e suas respectivas preferências políticias, e a campanha conseguiu coletar informações de inteligência em uma escala que seria impossível de outras formas.
Da campanha de Kulkarni eles aproveitaram o que Sandberg considera uma possível peça-chave para vencer em Iowa. Isaac foi organizadora de campo na Califórnia durante a campanha de 2016, antes de entrar na campanha pela improvável disputa por um assento na Câmara num distrito de classe média de Houston. Ela empregou a chamada organização relacional em uma escala nunca vista numa disputa pela Câmara, e virou de cabeça para baixo a ideia de como fazer campanha (David Dayen, do Intercept, fez uma matéria à época sobre essa inovadora iniciativa).
Em regra, um recrutador recebe uma lista de nomes e endereços e é orientado a bater nessas portas, perguntar às pessoas como irão votar, deixar material de campanha e talvez tentar usar alguma persuasão. O objetivo é identificar os apoiadores para que possam ser convencidos no dia da eleição. É um trabalho exaustivo: a maior parte das pessoas não está em casa ou não se interessa em conversar.
Na campanha de Kulkarni, Isaac deu aos voluntários listas de pessoas que viviam nos seus arredores e pediu que eles analisassem e completassem com as informações de que dispunham sobre seus vizinhos. Acontece que as pessoas sabiam bastante sobre seus vizinhos e suas respectivas preferências políticias, e a campanha conseguiu coletar informações de inteligência em uma escala que seria impossível de outras formas. Os voluntários mapearam aproximadamente 14 mil vizinhos com esse método, e a campanha então se apoiou nas relações entre amigos para levar essas pessoas a votar (segundo a campanha de Sanders, o Instituto Analyst, que faz pesquisas privadas para as campanhas democratas, descobriu que conhecidos são duas vezes mais eficazes em persuadir alguém a votar do que estranhos no telefone ou na porta de casa). Em 2016, os democratas tinham perdido a disputa dessa cadeira por 19 pontos percentuais; faltaram apenas 5 para Kulkarni (que está concorrendo de novo, depois que o republicano em exercício, Pete Olson, considerou que o prognóstico no Texas era ruim e se aposentou).
Isaac, diretora de organização relacional da campanha, agora está empregando a mesma estratégia em Iowa, onde há comunidades muito unidas das quais se pode extrair bastante informação. “Uma mãe olhou a lista e disse ‘Ah, eu conheço essas pessoas todas, são pais dos amigos do meu filho'”, contou Rast. “As pessoas olham a lista e conseguem imaginar quem poderiam efetivamente persuadir.”
Restava, porém, a dúvida: essas suposições são precisas? A campanha investiu então em um estudo para comparar a precisão dos dados obtidos pela organização relacional – pessoas fazendo suposições sobre amigos e familiares – em comparação com os dados de recrutadores e operadores telefônicos. O resultado, segundo Sandberg, foi que os dados relacionais eram mais precisos – 93% de precisão – provavelmente porque as pessoas são propensas a dizer a um recrutador em sua porta o que acham que ele quer ouvir. “É muito poderoso não só porque conseguimos identificar eleitores tão rapidamente, mas também porque esses dados são muito mais precisos que os tradicionais, e, por fim, porque há uma chance muito maior de que esses eleitores sejam persuadidos ou convencidos por um amigo”, disse Sandberg.
A estratégia da lista de eleitores de Iowa, que até então não tinha sido relatada, é chamada mapeamento de arredores, e faz par com um aplicativo que recebeu muitas críticas quando foi divulgado no começo de 2019. O Bern app era a primeira e mais alta prioridade de Sandberg e foi inicialmente desenvolvido por um voluntário, que a campanha depois contratou.
O aplicativo foi aprimorado pela equipe de software de Sanders por um mês antes de ser lançado e despertou preocupação quando foi revelado que ele poderia localizar seus amigos (ou inimigos) em uma lista de eleitores, e então permitir que você incluísse dados sobre eles – especificamente, seu nível de apoio ou oposição a Sanders, juntamente com informações políticas e sociais úteis para virar o voto. O app foi acusado de ser uma tentativa de doxxing, mas a campanha não tem acesso às informações de contato, nem tem como disponibilizá-las: a ideia é que os próprios apoiadores entrem em contato com as pessoas, por ser uma tática mais eficaz.
“Contar nossas histórias é uma parte muito relevante da nossa estratégia, porque sabemos que os motivos para estarmos envolvidos são profundos”, disse Cho. “Isso está integrado em todo nosso material de persuasão porta a porta e nos nossos scripts telefônicos”.
Atualmente, mais de 115 mil pessoas já criaram um perfil no Bern, de acordo com a campanha, e o app já gerou mais de 300 mil identificações de eleitores. A campanha de Elizabeth Warren usa um aplicativo chamado Reach, que foi desenvolvido para a campanha de Ocasio-Cortez e fez toda a diferença. Nos programas antigos, um voluntário pegava uma lista de eleitores e saía tentando encontrá-los em suas casas ou pelo telefone. Mas é muito mais fácil entrar em contato com os eleitores pelo mundo: em feiras, eventos de rua, shows, ou simplesmente no bar com amigos. O Reach permite que um voluntário inclua com facilidade as informações que consegue coletar na rua, mas ainda está aquém do que o Bern consegue fazer.
O que o Bern app facilita é a organização relacional, também chamada “entre amigos”, que é o termo da moda entre os organizadores progressistas, algo que muitos grupos dizem fazer, mas sem rigor, nem em grande escala.
“É tudo muito novo e acho que nunca foi usado nessa escala”, disse Sandberg. “Não é suficiente simplesmente dizer ‘traga cinco amigos, e nós vamos crescer e crescer e vencer’. Só funciona se você conseguir sistematizar isso e encontrar formas de acompanhar cada voluntário e descobrir de quem eles estão falando e fazer a correspondência com o registro de eleitores. Não é possível virar votos sem saber qual é a sua zona eleitoral.”
“A única outra campanha que usa organização relacional numa escala próxima à que estamos adotando é a de Trump”, acrescentou.
“É uma das partes mais inovadoras do nosso programa, mas só funciona se você construir alguma coisa grande com ela”, acrescentou Rast. “Se você tiver um punhado de voluntários e eles fizerem [organização] relacional, tudo bem, mas isso é tão forte na nossa campanha por causa de todo o restante que fazemos, e porque está inserido numa estratégia mais ampla, tudo convergindo para um mesmo ponto.”
Dentro da campanha de Sanders, a organização relacional está ligada ao programa de eleitorado. Na maior parte das campanhas, a forma de fazer isso é enviar cabos eleitorais para fazer contato com eleitorados diversos – sindicatos, sino-americanos, veteranos de guerra, etc – e procurar pontos em comum. Para uma campanha normal, o objetivo é simplesmente obter o apoio de uma associação ligada a esse eleitorado, talvez conseguir alguma doação de campanha, promover um evento, e seguir adiante, na expectativa de que o apoio declarado resulte em votos da comunidade. Tradicionalmente, o lobby pelo apoio dos grupos de eleitorado é feito pelos diretores políticos ou suas equipes, mas a equipe de Sanders reduziu drasticamente os recursos para esse fim, ciente de que reuniões individuais não vão conquistar muitos apoios para Sanders. Para eles, a tarefa na verdade é de organização: angariar apoio entre as bases do grupo, para então forçar as lideranças a irem na mesma linha.
A campanha de Sanders trata os grupos de eleitorados como um veio rico para prospectar eleitores. Yong Jung Cho é a diretora de organização de eleitorado da campanha de Sanders, e também supervisiona a organização relacional, uma forma de integrar os dois conceitos. Ela foi criada em Sunnyside, no Queens, uma região que agora é representada por Ocasio-Cortez, e seus pais tinham um mercadinho em Williamsburg, Brooklyn. Eles raramente tinham seguro saúde, e isso pesava sobre ela. “Eu pensava, vou cuidar da minha família e das pessoas que amo se me tornar médica”, conta. Porém, na faculdade, ela se envolveu no ativismo ambiental, lutando contra a indústria local de carvão. Como outros na campanha, inclusive Rast, ela depois trabalhou para a 350.org, organizou os universitários em prol do desinvestimento nos combustíveis fósseis e foi uma das lideranças na organização da marcha pelo clima na cidade de Nova York em 2014.
“Mike Brown foi assassinado a tiros um mês antes dessa grande marcha”, ela se recorda, “e eu fiquei muito frustrada por serem movimentos tão isolados, porque pensei que estava atuando nas questões climáticas, mas também me preocupo com a a justiça racial, e com a justiça de imigração. Por que nossos movimentos são tão separados? Então trabalhei em vários projetos para tentar agrupar esses diferentes movimentos, e acho que é algo que Bernie realmente faz.”
Em 2017, ela ajudou a formar o grupo temporário #AllOfUs, juntamente com Waleed Shahid – que depois se tornou o primeiro contratado da campanha de Alexandria Ocasio-Cortez e diretor de comunicação dos Justice Democrats – Becca Rast, Nick Martin, Yong Jung Cho, e Sandberg – como forma de tentar reunir diversos movimentos e pressionar os democratas no Congresso. Depois disso, ela foi diretora da campanha de Kaniela Ing no Havaí, que não terminou bem, mas teve grande repercussão e deu a ela uma boa compreensão do poder dos grupos de eleitorado.
No meio desse ano, a campanha promoveu barnstormsvoltados para grupos de eleitorado: 80 a 90% dos presentes, segundo a estimativa de Cho, não votaram em 2016. “São pessoas que foram trazidas por seus amigos ou familiares – e esse é o nosso programa de organização relacional, entre amigos, conectado ao Bern app”, disse ela.
Um eleitorado às vezes pode ser pensado de forma mais criativa. Voluntários na Califórnia fizeram campanha em um show da banda My Chemical Romance. Voluntários de Phoenix, Arizona, sem relação direta com a campanha, viram que Ariana Grande iria se apresentar na cidade pouco depois de ter declarado apoio a Sanders. “Nós sabíamos que nenhuma outra campanha estaria no show”, disse Eric Cardenas, um dos principais organizadores do evento.
Last night was fun.
We had a blast street canvassing for @BernieSanders at the @ArianaGrande concert! Our volunteers ranged from 16 year olds to Berners in their 70s.
We had close to 100 signups and 500+ Bernie stickers passed out, @TeamAriana was feeling the Bern! #NotMeUs pic.twitter.com/NQwYgjB5DS
— Arizona for Bernie Sanders (@azbernie2020) December 13, 2019
A gente se divertiu fazendo campanha para @BernieSanders no show da @ArianaGrande! As idades dos nossos voluntários iam dos 16 aos “Berners” acima de 70.
Foram mais de 100 registros e 500 adesivos de Bernie distribuídos, @TeamAriana estava sentindo o Bern! #NotMeUs
Boa parte do público do show não fazia ideia de que Ariana Grande tinha declarado apoio a Sanders, mas segundo ele a recepção foi calorosa. Eles incluíram 83 pessoas em sua lista de e-mails Arizona por Bernie – uma aliança entre o DSA local, os Progressive Democrats of America e outros grupos progressistas que por lei não podem se coordenar diretamente com a campanha – e que eles esperam poder passar adiante quando chegar a vez do Arizona.
A abordagem de organização de Sanders recebe muitas críticas, online e dentro de outras campanhas democratas, que afirmam que, embora cheia de truques, ela não traz nada de novo à estratégia de campo tradicional e amplamente testada. Cientistas políticos não hesitam em comentar as limitações da organização em uma campanha.
Sandberg admite que eles podem estar certos, que talvez organizar uma aliança de classe trabalhadora para eleger um socialista democrata não seja possível. Mas argumenta que a ideia de que a tecnologia e as relações interpessoais não possam ser usadas em conjunto de forma complementar é absurda. “A pergunta que sempre queremos fazer quando as pessoas dizem que a [organização] descentralizada é irreal, ou qualquer coisa assim, é: o e-commerce é irreal?”
“Algumas pessoas podem ficar incomodadas com essa metáfora capitalista, mas estamos tentando organizar mais de metade do país para fazer algo. Deveríamos ignorar completamente o quanto a nossa economia mudou nos últimos dez anos e não usar nada disso?”, questionou Sandberg. “As pessoas compram muita coisa por e-commerce. Não quer dizer que não haja mais espaço para as lojas físicas, nem que uma empresa de âmbito nacional não possa ter um e-commerce e também lojas físicas.”
Na verdade, ela entende que as grandes empresas hoje precisam ter as duas coisas, e ambas em grande escala, não apenas de forma suplementar. “Elas funcionam bem juntas porque às vezes, em uma loja, você não consegue comprar um item especial, mas ainda é possível, porque você tem uma grande cadeia de suprimento e um sistema de distribuição”, diz Sandberg. “Você tem economia de escala. Nunca conseguiremos ter um organizador em cada escritório que fale vietnamita. Porém, temos um operador de telefone vietnamita. Então, se os voluntários querem ajudar a ligar para eleitores da Califórnia que falam vietnamita, o organizador daquele escritório pode avisar a eles sobre a existência desse operador, colocá-los em contato, e então eles podem fazer as ligações em vietnamita que não teriam outra forma de fazer. Ao mesmo tempo, eles ainda podem manter um relacionamento com o organizador local daquele escritório, o que também é importante.”
Outras campanhas com menos recursos que a de Sanders, porém, não construíram algo assim em escala nacional porque, para elas, isso sacrificaria a possibilidade de abrir novos escritórios nos estados iniciais e contratar mais organizadores de campo em Iowa e New Hampshire. Os observadores esperam um comparecimento de 250 mil pessoas nas convenções de Iowa em 3 de fevereiro, o que significa que 75 mil eleitores totalizariam 30%, suficiente para uma potencial reviravolta. Até meados de novembro, a campanha, segundo informações próprias à época, já tinha promovido 3.850 eventos em Iowa, além do tsunami de ligações e mensagens de texto que inundou o estado. Isso incluía 1.287 campanhas porta a porta, 38 barnstorms, mais de 1.048 mutirões telefônicos, 215 eventos de treinamento, e mais de 660 “mobilizações comunitárias” – em shows e feiras. Os números em New Hampshire e Nevada são igualmente robustos. Mesmo na Carolina do Sul, onde se espera que a campanha seja fraca, até meados de novembro já tinham acontecido mais de 1.572 campanhas, 16 barnstorms, mais de 1.171 mutirões telefônicos, 10 treinamentos de voluntários, e mais de 294 mobilizações comunitárias.
No final do ano, os voluntários já tinham organizado 45.302 eventos, feito mais de 11 milhões de ligações telefônicas e enviado mais de 88 milhões de mensagens de texto. Em Iowa, a campanha já tinha promovido 9.451 eventos até o fim do ano, mais do que dobrando o número no período de algumas semanas, uma onda que também se refletiu nos outros estados, de acordo com os números atualizados informados pela própria campanha. Em 1º de janeiro, a campanha anunciou que tinha atingido a marca de 5 milhões de doações individuais.
“É difícil para as campanhas tomar a decisão de investir em uma equipe nacional para dar apoio a algo dessa magnitude em toda parte, porque você poderia estar contratando outro organizador ou abrindo outro escritório”, explica Sandberg. “É preciso realmente acreditar em um programa de organização nacional para investir na construção dessa infraestrutura.”
As campanhas de Warren e Buttigieg também estão numa posição confortável em Iowa, porque ambas investiram pesado nas equipes de lá. Warren montou uma operação tradicional que é considerada pelos representantes locais do partido a mais estruturada e bem organizada, e Buttigieg investiu em organização relacional, encorajando seus apoiadores de grande competência e alto nível educacional a organizar os amigos em prol da candidatura. Sua operação, porém, tem pouca capacidade de aumentar a escala nos estados mais tardios, porque ele, ao contrário de Sanders, não investiu na construção da infraestrutura necessária em todo o país.
Biden praticamente não constituiu recursos de organização local em lugar nenhum, nem mesmo em Iowa e New Hampshire, prejudicado por sua tendência de longa data à indecisão e sua conhecida fraqueza na disciplina de trabalho. Sua campanha reconhece que ele pode perder as três primeiras disputas, mas aposta no reconhecimento de seu nome e nos anúncios de TV para levá-lo a uma vitória na Super Terça e ao longo do mês de março.
Sanders espera uma surpresa. Seu caminho para a vitória é estreito e exige que a sorte o favoreça em tudo, mas não é impossível. “A maior parte dos entrevistadores está dispensando qualquer pessoa em Iowa que diga em uma pesquisa que talvez não compareça à convenção”, disse Sandberg. “Toda a literatura sobre o assunto diz que você pode tentar convencer uma pessoa de 18 anos ou um universitário a votar se eles ainda não o fizeram, mas uma pessoa de classe trabalhadora que nunca votou em toda sua vida adulta não vai votar nunca. Então eu não culpo os entrevistadores por dizerem que essas pessoas não vão aparecer para votar.”
“É por isso que as pesquisas não previram a eleição de Trump, porque ele conseguiu fazer muitos eleitores improváveis, brancos de classe trabalhadora que não votavam, comparecerem às urnas”, explica ela.
Mesmo que Sanders não consiga a indicação, destacou Sandberg, os voluntários recém-ativados e treinados terão habilidades e conhecimentos políticos que seguirão com eles pelo resto da vida. Alguns certamente vão querer concorrer ao Legislativo, como Ocasio-Cortez, e outros irão estruturar organizações que ainda nem imaginamos. Aqueles que se sentirem inspirados a isso colocarão seu treinamento em uso para ajudar o candidato do Partido Democrata – e também futuros candidatos. Se Sanders perder por pouco, o “nós” do seu slogan – “Não eu, nós” – deixará uma marca duradoura, como já foram as que a sua campanha de 2016 ativou.
Sandberg argumenta que a estratégia é urgente, porque Trump já está empregando uma versão populista dela, ativando os eleitores insatisfeitos da classe trabalhadora com um apelo às suas inseguranças e um ataque à elite fora da realidade que estaria conspirando contra eles.
“Nós pensamos o tempo todo no que será necessário para derrotar Trump, e eu honestamente perco o sono à noite pensando nisso”, disse ela. “Os democratas possivelmente subestimam o tamanho desse desafio.”
“Mas também estamos pensando no que será necessário para formar o poder político de trazer para a prática as pautas de Bernie”, ela continuou. “O que precisaremos fazer para efetivamente recuperar o Senado. É uma tarefa imensa, e as pessoas não podem desprezar como será difícil. Mas me parece que às vezes as pessoas só falam disso como processo, ‘Como você vai fazer para superar o McConnell?’ ‘Vocês estão dispostos a acabar com a obstrução parlamentar?’, e não, como nós iremos, a longo prazo, essencialmente resgatar as grandes partes do país que precisamos resgatar para implementar políticas na escala necessária? A única forma possível de fazer isso é construir um movimento gigantesco que efetivamente possa expandir o eleitorado em todos os 50 estados.”
Eu queria ver como seria uma festa de mapeamento relacional, e me inscrevi para comparecer a uma delas na Virginia, um estado da Super Terça, divulgada no site como uma “Festa de Mapeamento dos #ArabAmericans4Bernie”. Entrei em contato com a organizadora para saber se um jornalista poderia participar, ela disse que não tinha problema, desde que seu nome não aparecesse na matéria. Ela também perguntou se eu ajudaria a recrutar mais pessoas, assim poderia ver como a organização se constrói sozinha. Ela estava ali, organizando tudo e me permitindo participar. Como eu poderia não ajudar? Pensei nas pessoas da Virginia que eu sabia que talvez quisessem participar, e convidei uma delas. No dia antes do evento, recebi uma mensagem de texto automática com o endereço, pedindo para eu confirmar a participação. Quando respondi que sim, um bot me respondeu: “Ótimo, eles precisam de todas as mãos no convés e contam com você. Obrigado!” Eu me senti obrigado a comparecer.
No sábado antes do Dia de Ação de Graças, mais ou menos uma dúzia de pessoas se reuniu no apartamento da organizadora, que chamaremos de Sara, por razões relacionadas ao seu trabalho e a outras preocupações. Ela e sua coorganizadora, Yasmine Rassam, uma advogada de direitos humanos, estavam realizando o evento em prol da #Arabs4Bernie, que se desenvolveu a partir do programa de Bernie para muçulmanos em que Shaun Navarro estava envolvido há bastante tempo. As duas organizadoras apoiaram Sanders em 2016, mas não tinham sido voluntárias.
A festa de mapeamento de amigos combinava organização relacional com o programa de eleitorados. Sara pediu a todos que se apresentassem e falassem dos motivos para apoiarem Sanders. “Eu vivo de despejar pessoas de suas casas”, disse um dos homens presentes, explicando que o trabalho incomodava sua consciência e que ele estava ansioso por uma revolução política que o obrigasse a mudar de função. Foi um lembrete de que a aliança não é puramente constituída da classe trabalhadora, e que também há espaço para recrutar membros da classe profissional-gerente, os lacaios do capital. De fato, um lembrete de que, se é preciso encontrar novos eleitores para remodelar a aliança, eles serão encontrados por voluntários que em sua maioria frequentaram a universidade, muitos deles parte da famigerada classe profissional-gerente.
A busca por uma conscientização da classe trabalhadora vem sendo frustrada pelas inclinações da própria classe trabalhadora. O autor socialista Upton Sinclair lamentou esse fenômeno quando apresentou sua candidatura a governador da Califórnia, quase um século atrás. “Havia muito pouca mentalidade de classe trabalhadora”, observou. “Aqueles que pertenciam à classe não sabiam disso, e odiavam quem lhes dizia.” Ao mesmo tempo, a classe média sempre esteve à disposição para quem a buscasse. “Vi as classes médias sofrendo tanto quanto os trabalhadores braçais e rurais”, ele continuou. “Se o fascismo chegasse à Califórnia, seria pelas mãos dessas pessoas de classe média. Se a democracia fosse preservada na Califórnia, seria porque essas pessoas compreenderam a depressão e a cura.”
Na sala de estar, essas pessoas entenderam a depressão e a cura. As políticas sociais e domésticas de Sanders fundamentam seu apoio, mas para a maior parte do grupo, constituído de pessoas nascidas no Egito, na Síria, no Iraque, nos territórios palestinos, ou com vínculos com esses e outros lugares, é a política externa – que se opõe às guerras e às agressões imperialistas – que o separa da maioria, mais especificamente de Warren. Mereceu aplausos sua afirmação, num debate recente, de que os palestinos são pessoas que possuem direitos e dignidade inerentes. “Ele humaniza os humanos. Isso não deveria ser algo radical, mas é”, disse o homem. “Ele não trata nossa comunidade como párias.”
Algumas pessoas na sala não estavam completamente convencidas sobre Sanders, uma delas incomodada pelo que considerou um apoio insuficiente a Clinton nas eleições de 2016, outra aberta à ideia de Warren, e uma terceira procurando quem tivesse condições de derrotar Trump.
Sara e Rassam tinham um script geral fornecido pela campanha, e explicaram a teoria por trás da organização entre amigos, inclusive a necessidade de que o movimento se mantenha depois de uma possível eleição de Sanders, para que seja possível colocar em prática suas pautas. “Tudo está ligado ao Bern app”, explicou Sara, e pediu a todos para baixarem o aplicativo.
Ela assegurou às pessoas da sala que a campanha não iria obter as informações de contato de seus amigos, apenas os detalhes de seu apoio, e que posteriormente dependeria deles para virar o voto dos amigos e transmitir informações. Ela distribuiu planilhas para que as pessoas anotassem nelas os nomes de seus amigos, mas considerou que talvez fosse melhor pular essa parte e ir direto para o aplicativo.
O aplicativo foi um sucesso, e as pessoas adoraram ver seus amigos aparecerem. Um deles ficou empolgado de ver que sua sobrinha, que ele vinha incessantemente tentando convencer a se registrar para votar (“Me manda um print do seu registro, ou vou aí pessoalmente”, ele disse a ela por WhatsApp), aparentemente tinha mesmo se registrado. Ao longo dos vinte minutos seguintes, os nomes brotaram no aplicativo.
Depois de um lanche, o grupo se reuniu novamente e imaginou formas possíveis de levar a mensagem mais a fundo na comunidade árabe. Uma pessoa sugeriu um evento em Skyline, um bairro com forte presença árabe. “Estão todos conectados entre si. Se uma pessoa faz algo, todo mundo sabe”, disse uma mulher egípcia, que não preenchia os requisitos para votar, mas queria ajudar as pessoas que pudessem.
Descobriram que nenhum dos presentes frequentava a mesquita de Skyline, Dar al-Hijrah, então tentaram pensar quem eles poderiam conhecer que frequentasse. Alguém sugeriu uma mulher que ensinava árabe na mesquita para seus filhos aos fins de semana. “Ela seria uma apoiadora de Bernie?” Sara questionou.
“Ela é, sem dúvida, já conversei com ela sobre isso, mas ela não pode votar”, observou um homem. Ficou decidido que iriam conversar com ela sobre a possibilidade de organizar um evento.
Finalmente, Sara pediu a cada pessoa que se comprometesse a levar outras duas para o próximo encontro. Quando cheguei em casa, o bot perguntou se a minha experiência de organização tinha sido boa, ruim, ou se eu tinha faltado. Ele então me agradeceu por entrar em contato com amigos e voltou ao tema do #MyBernieStory, pedindo que eu “respondesse com mais detalhes sobre a minha experiência ou por que decidi agir em prol de Bernie 2020”. Em outro momento, o Bern app me cutucou para entrar em contato com uma das minhas irmãs, que eu tinha inserido no aplicativo como indecisa para fazer o teste, e perguntar se ela tinha se decidido.
Ao longo dos dias seguintes, Sara entrou em contato e procurou assegurar que seus convidados incluíssem amigos em seus telefones, uma contagem que chegou a 141 em poucos dias. Uma pessoa contou a Sara que tinha colocado mais 31 nomes na planilha, mas ainda não tinha inserido os dados. Compare isso com a campanha porta a porta: a depender da densidade populacional do bairro, um típico recrutador pode esperar contato com 4 a 8 eleitores por hora. Teriam sido necessárias duas horas com 12 pessoas batendo de porta em porta para conseguir 120 identidades, um número a que o grupo chegou com bastante facilidade, no intervalo entre uma conversa e um lanche.
Pensando depois em seu evento, Sara teve algumas ideias de coisas que faria de outra forma, como pedir que os presentes inserissem uma contagem de nomes antes de irem embora. Ela estava se tornando uma organizadora.
Tradução: Deborah Leão
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