Num dos capítulos mais surpreendentes da série Vaza Jato, mostramos que o procurador Deltan Dallagnol considerou – e ainda considera – colocar seu nome e seu rosto de bom moço na urna eletrônica. Segundo o plano, não deveria ser um movimento isolado, mas coordenado, para “o MPF lançar um candidato por Estado”. Seria a instituição, de fato, do PLJ: o Partido da Lava Jato.
Oficialmente, o PLJ ainda é um projeto do procurador. Na prática, ele disputa com a tosquice ideológica do olavismo e o vale-tudo contra a educação e o meio ambiente o protagonismo do governo de extrema direita que ajudou a eleger.
Com Sergio Moro no comando, o Ministério Público Federal no papel de polícia política e a adesão incondicional de dois – ou talvez três – ministros do Supremo, esta semana o lavajatismo mostrou a extensão de sua força. Na terça-feira, o jornalista Glenn Greenwald foi acusado de crime sem sequer ter sido investigado.
Ontem, o ministro Luiz [In] Fux [We Trust] – um dos correligionários da Lava Jato na suprema corte – decidiu suspender a implementação do juiz de garantias, aprovado como resposta do poder Legislativo aos abusos em série cometidos por Moro, Dallagnol e companhia e revelados desde junho passado pelo Intercept e os parceiros Folha de S.Paulo, El País, Bandnews FM, Veja, BuzzFeed News, Agência Pública e UOL.
O recado é claro: se procuradores e juízes não gostam de uma lei, ela não irá vigir
.
Fux fez muxoxo para a independência entre os poderes e agora vai empurrar com a barriga algo que o parlamento votou e o presidente sancionou. Uma decisão de poder quase real, ao sabor da vontade de Moro e Dallagnol, que eram contra a figura de alguém que pudesse frear seus abusos. O recado é claro: se procuradores e juízes não gostam de uma lei, ela não irá vigir. Não importa que o Congresso e o poder Executivo a tenham aprovado.
A criação do juiz de garantias divide entre dois magistrados a responsabilidade de coordenar e julgar um processo criminal. Num exemplo prático, ou Moro coordenaria ou julgaria os casos da Lava Jato – mas não faria as duas coisas, como ocorreu. O juiz de garantias é discutido no Brasil há décadas e foi um dos impactos mais visíveis da Vaza Jato. Mas não quero discutir a intenção do parlamento ao criar a figura do juiz de garantias, nem o mérito ou a aplicabilidade da proposta.
O caso é que a decisão de Fux – tomada horas antes do pacote anticrime de Moro entrar em vigor – é teratológica, como adoram dizer os lavajatistas sempre que discordam de uma sentença que não lhes agrada. O ministro nem fez questão de esconder o que o motivou a suspender uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República: “A existência de estudos empíricos que afirmam que seres humanos desenvolvem vieses em seus processos decisórios não autoriza a presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do país tem tendências comportamentais típicas de favorecimento à acusação”, argumentou em sua decisão.
Não é a primeira machadada de Fux na independência dos poderes e em defesa da Lava Jato, lembrou Bruno Boghossian na Folha. Em 2016, ele mandou cancelar uma votação da Câmara que havia alterado as autoritárias e delirantes dez medidas contra a corrupção de Dallagnol. Para o ministro, legisladores usurparam competências ao… legislarem!
Juízes ganham bem e poderiam trabalhar mais, abrindo mão dos 60 dias de férias anuais
.
Desde que a figura do juiz de garantias foi aprovada, o lavajatismo tem lutado com força para derrubá-lo. Argumenta que ele vai aumentar os custos para o estado, vai demandar a contratação de novos juízes, vai alongar processos judiciais. Eu poderia dizer que juízes ganham bem para fazer o que fazem e certamente poderiam trabalhar mais – abrindo mão dos 60 dias de férias anuais, privilégio pornográfico num país em que a maior parte de quem tem algum trabalho não tem carteira assinada.
Mas nem é esse o ponto. O caso é que há outras previsões do pacote anticrime que também irão onerar os cofres públicos – por exemplo, a extensão de 30 para 40 anos da pena máxima de prisão e o fim da progressão de regime para presos ligados a facções (qualquer um familiarizado com o sistema carcerário brasileiro sabe que submeter-se a PCC ou CV é questão de sobrevivência antes de escolha).
Nisso, Fux nem tocou. Mas derrubou tudo que desagradava à fúria persecutória de Moro e sua turma: o veto a que juízes fossem impedidos de dar sentença caso soubessem que o processo contém prova inadmissível e a liberdade compulsória para suspeitos de crimes que não tiverem audiência de custódia até 24 horas após a prisão. As cadeias brasileiras estão lotadas de gente nessa situação. Mas quem se importa com eles?
Nas horas seguintes à decisão de Fux, o PLJ foi às redes sociais comemorar. A procuradora Monique Cheker fez pouco de “um parlamentar” que ousou dizer que o ministro lavajatista desrespeitara o poder Legislativo com sua sentença. O tal parlamentar é Rodrigo Maia, do DEM, presidente da Câmara. Mas quem é o presidente de um dos três poderes para se opor à Lava Jato e seu partido, não é mesmo, doutora?
É de causar espanto a manifestação de um parlamentar dizendo que um Ministro do STF desrespeita o Congresso ao suspender uma norma inconstitucional. Imagino que o parlamentar não saiba que talvez o Congresso tenha desrespeitado primeiro a Constituição Federal.
— Monique Cheker (@MoniqueCheker) January 23, 2020
Dallagnol e seu colega de Lava Jato Roberson Pozzobon também celebraram. “As mudanças vêm trazendo retrocessos ou criando insegurança jurídica no trabalho anticorrupção”, escreveu o coordenador da Lava Jato. “O Min. Fux tem total autoridade na decisão”, fez coro Pozzobon.
“Cumpre elogiar a decisão do Min Fux”, celebrou Moro. “Uma mudança estrutural da Justiça brasileira demanda grande estudo e reflexão. Não pode ser feita de inopino“. Horas depois, com o pacote anticrime finalmente a seu feitio, ele teve o seu “grande dia“. Nem a mulher de Moro, Rosangela, faltou à celebração pública. “WE trust em Fux”, ela escreveu, em sua conta no Instagram. É “In Fux We Trust”, doutora. Trust pra caramba!
Em nome de uma causa única e difusa como o “combate à corrupção” – e existe alguém a favor dela? –, a turma do PLJ segue em campanha, seja em acusações absurdas como a do MPF contra Glenn, seja nas redes sociais. Os alvos prediletos, no segundo caso, são “os políticos”, assim mesmo no plural, indistintamente, de forma a alvejar toda a classe.
Emenda que reduz o foro privilegiado tem um "jabuti" que dá aos políticos o melhor de 2 mundos: não poderão ter cautelares decretadas por juiz (quebras de sigilo, buscas e prisões) e ainda desfrutarão da morosidade e recursos infinitos de 4 instâncias. https://t.co/DrkSuTNYBz
— Deltan Dallagnol (@deltanmd) January 22, 2020
Pois é…
Câmara se prepara p/ votar PEC que extingue foro privilegiado, mas parlamentares querem “aproveitar” e incluir dispositivo que IMPEDIRÁ juízes de 1ª instância de decretar medidas cautelares contra políticos, como prisão, quebra de sigilos e ordem de busca e apreensão.
— Roberson Pozzobon (@RHPozzobon) January 13, 2020
A fúria persecutória do lavajatismo já nos legou Jair Bolsonaro na presidência da República. O fã de ditadores e torturadores era o candidato da Lava Jato, que expôs seu preconceito contra partidários da esquerda ao comentar a morte de parentes de Lula e o pedido de informações feito por um jornal. Mas nem o espaço que ocupa no governo de extrema direita parece satisfazer o lavajatismo.
Moro, Dallagnol e companhia gostaram de ter poder nas mãos e não querem largá-lo. Assim, não têm pudores em usar instituições da democracia como Ministério Público e poder Judiciário como armas contra adversários e palanques para insuflar seus seguidores contra políticos, genericamente, ajudando a erodir a já combalida credibilidade da atividade política – essencial para a democracia – por aqui.
Quem tem dúvidas de que Dallagnol está gestando sua candidatura para 2022? E ele não está só. Outro lavajatista, o juiz Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro, já deixou claro que pretende ir pelo mesmo caminho. E nem precisamos falar de Moro. Suas associações de classe, enquanto isso, tentam conseguir que eles possam disputar eleições no conforto dos cargos, com 60 dias de férias e salários régios.
Um exemplo do que essa turma pode fazer no poder já existe: é o governo do ex-juiz federal Wilson Witzel no Rio, cuja polícia mata mais que o crime em 11 regiões do estado. É realmente esse o tipo de gente que o Brasil acredita que irá salvá-lo? Então, mãos ao alto: vem aí o Partido da Lava Jato.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?