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'Me reconheci homem trans aos 45 anos'

Levei mais de quadro décadas sem me enquadrar nos padrões de gênero impostos na infância. Hoje questiono o que define a masculinidade.

Manequins de uma loja no bairro do Brás, região central de São Paulo. Foto: Rubens Chaves/Folhapress

‘Me reconheci homem trans aos 45 anos’

Manequins de uma loja no bairro do Brás, região central de São Paulo.

Foto: Rubens Chaves/Folhapress

Quando uma criança nasce, quem fez o parto normalmente olha para o genital. Logo se atribui ao recém-nascido um gênero binário: se tem pênis, é homem; se tem vagina, é mulher. E toda uma expectativa de comportamento vem junto com essa ‘atribuição’. É esperado que a criança se encaixe nesse binarismo.

Mas existem pessoas como eu, que crescem e percebem que essa construção normativa que nos é imposta não condiz com quem somos. Alguns de nós percebem isso na infância e expõem essa contradição desde cedo. Outros se descobrem fora desse padrão binário mais velhos.

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Eu me reconheci homem trans aos 45 anos. Um autorreconhecimento que se pautou na minha total inadequação com o ‘ser mulher’ ao longo da vida. Haviam me atribuído um gênero ao nascer e me ensinado a agir conforme uma mulher deveria se comportar, mas eu não me enquadrava.

Foi como se tivesse passado a vida tentando encaixar num brinquedo uma peça circular em um orifício quadrado. Quando me reconheci um homem trans, senti que a peça redonda foi posta no lugar certo e que o quebra-cabeças que era minha vida, de repente, começava a fazer sentido. Eu não era mulher: me designaram assim, me educaram assim, mas eu não era isso.

‘Eu nem sabia que existiam pessoas trans’

Desde criança, sempre me identifiquei com várias coisas que são atribuídas a ‘meninos’, de brinquedos a roupas até brincadeiras e modo de falar. E sempre me foi dito que isso não era como eu deveria ser. Eu não entendia porque não poderia, então perguntava. A resposta: porque é ‘coisa de menino’ e ‘menina não faz isso’.

Nasci em 1970, no final da ditadura. Na época, morei na periferia da zona sul de São Paulo e venho de uma criação muito conservadora, de família descendente de japoneses e sírio-libaneses. Por um tempo, sequer tínhamos televisão. Da minha adolescência até a vida adulta, nunca tive contato com pessoas trans.

Teve um período em que tudo parecia estar bem. No final da infância e início da adolescência, meu comportamento de ‘menina moleca’ era aceito por causa da idade, mas já me cobravam que mudasse meus jeitos e maneiras se não ‘homem nenhum ia querer namorar comigo’.

Eu tinha um desconforto em ‘ser mulher’, mas isso não define uma pessoa trans.

Falhei miseravelmente em cumprir várias coisas do ‘papel feminino’. Eu tinha um desconforto em ‘ser mulher’, mas isso não define uma pessoa trans. É uma coisa muito interna. Esses sinais foram apenas me ajudando a me reconhecer. E esses sentimentos não são um padrão. Afinal, eu sei brincar de coisas de menina e gostar de coisas ditas ‘femininas’ – não é isso que define a transexualidade.

Passei a me ver como um fracasso, sem capacidade de ser quem esperavam que eu deveria ser. Ainda assim, lutei muito para ser do jeito que esperavam que eu fosse. Mas aí dizem ‘ah, ninguém tem que ser o que esperam’. Isso é a teoria mais deslavada que existe! Cobram de nós o tempo todo, em toda parte. Vivemos em sociedade em que ai de quem não tá dentro do que estipulam.

E só entendi minha total inadequação com essas construções ao conhecer outros homens trans que me relataram suas próprias inadequações. Isso foi perto do meu aniversário de 45 anos, quando conheci um homem trans no Facebook. Por meio da história dele, me identifiquei.

‘Se tivesse me reconhecido adolescente, teria sofrido muito’

Participávamos de um grupo de pessoas LGBTQI+ no Facebook e, quando ele contou sua história e se abriu, me reconheci na hora. Comecei eu mesmo a fazer uma análise, procurar, ver livros, na busca de mais entendimento sobre o tema. A verdade era clara pra mim. Minha vida inteira eu não era mulher, era um homem, e não tinha como saber disso antes justamente porque eu não sabia que pessoas trans existiam.

E a transexualidade é algo que, se você tem dúvida sobre seu gênero, pesquisa. Quem tem certeza do próprio gênero nem cogita que pode ser diferente.

Ao me descobrir já maduro, consegui desconstruir certas coisas. Já não morava na casa da minha mãe e do meu pai, então já tinha minha independência. Ao ‘sair do armário’, não precisei me preocupar com o impacto em outras pessoas. E acredito que se tivesse me reconhecido adolescente, ainda na casa dos meus pais, teria sofrido muito.

Quem tem certeza do próprio gênero nem cogita que pode ser diferente.

Como me reconheci ‘tarde’, eu até tenho certos privilégios. Sou uma pessoa nipo-brasileira, classe média, que estudou em escola particular e cursou Arquitetura. Consegui terminar o curso superior, algo que pessoas trans geralmente não têm acesso. Principalmente porque é difícil uma pessoa trans terminar alguma coisa ou até mesmo entrar na faculdade.

A gente costuma dizer que ser homem trans não é que a gente quer ser igual a um homem cis. Primeiro porque não dá: ao nascer, fomos designados de maneira diferente daquela com a qual nos identificamos. Com isso, nossa socialização foi diferente da de quem foi designado homem e assim se identificou sempre.

Ter sido socializado enquanto mulher me permitiu compreender exatamente o que mulheres passam e a opressão que vem disso. Com isso, procuro não reproduzir os comportamentos que homens cis estruturalmente aprenderam e que são opressores. Eu consigo ver a diferença com o mesmo peso que as mulheres, porque vivenciei isso na pele. Vale lembrar que algumas mulheres ainda são educadas dentro de um machismo estrutural e o reproduzem todos os dias.

‘Sou fetichizado por ser um homem trans nipo-brasileiro’

Como descendente de japoneses, preciso lidar com outro preconceito além da transfobia. Um deles é o fato de que existe o mito da pessoa asiática pacífica e passiva. Algo infantilizado, que vem até dos próprios animes. E o fato de não sermos brancos europeus é que gera essa discriminação.

As pessoas puxam o olho e imitam, falam do tamanho do pênis. Na minha infância, por exemplo, minha mãe achava isso natural, embora ela seja descendente de japoneses. Ela dizia ‘não liga pra isso, é brincadeira’. Não a culpo, ela aprendeu assim. A verdade é que isso é tão naturalizado para pessoas brancas que elas ainda tiram sarro de pessoas asiáticas. E que coincidência que escrevo essa história exatamente quando até o presidente da República faz isso.

Em maio do ano passado, Jair Bolsonaro fez questão de enfatizar que, no Japão, tudo é pequeno. O contexto preconceituoso não é óbvio para todos. Tanto que alguns descendentes preferiram dizer que é uma piada e que temos que relevar – como minha mãe dizia. Mas a grande maioria das pessoas se sentiu ofendida e sabe bem que a comparação vai muito além da habilidade dos japoneses em fazerem miniaturas. Como mencionei lá pra cima, foram anos de piadas idiotas, desmerecedoras e que colocam a gente ‘pra baixo’.

Mas quando convém, somos exaltados, colocados como ‘exemplo’. Em abril do ano passado, fomos mencionados como ‘raça que tem vergonha na cara’, em contrapartida aos quilombolas. Na hora de humilhar os negros, somos ‘raça-modelo’ que está ‘dentro do padrão’ de qualidade das pessoas brancas. É o conceito da minoria-modelo, que coloca asiáticos como perfeitos, estudiosos, os melhores, só por serem asiáticos. Inventam até que somos bons em matemática. E isso é totalmente inadequado, já que pessoas podem ter essas características independente da raça. É como definir que todos são ‘farinha do mesmo saco’, o que sabemos não ser verdade.

Então, de ‘raça que tem vergonha na cara’, somos reduzidos a ‘não sei o que está fazendo aqui no Brasil’. Para quem não sabe, Jair Bolsonaro disse isso em resposta ao livro publicado pela jornalista Thaís Oyama, que contém informações sobre os bastidores do atual governo. Ele referiu-se a ela como ‘essa japonesa, que nem sei o que faz no Brasil’ e disse ainda que ‘no Japão, ela morreria de fome’. Entre as revelações do livro, Oyama afirma que o político, em conversa privada com Donald Trump, lhe teria apresentado o deputado Hélio Lopes, conhecido como “Hélio Negão”, e dito ao presidente estadunidense que ‘apesar de negão, ele tem bilau de japonês’.

Nipo-brasileiros só são ‘gente boa’ se seguirem a cartilha padrão de pessoas brancas.

Nipo-brasileiros só são ‘gente boa’ se seguem a cartilha padrão de pessoas brancas. Somos bons o suficiente pra mostrar que negros não são. Mas ao levantarmos nossa voz para criticar a estrutura política ou social (que é definida por… pessoas brancas, olha só!) deixamos de ser bons, não somos ‘nem brasileiros’.

E se considerarmos a sexualidade, as coisas não melhoram muito. Essa mesticidade já te coloca num patamar que você não é branco nem negro. Somos exóticos. Dizem que pessoas mestiças são lindas e diferentes, nos fetichizam. Aí, quando você é LGBTQI+, tem cara no bar que já chega agarrando, tudo, tentando beijar, do nada e, se a pessoa asiática reclama, dizem ‘ai, é que eu achei que por você ser japonês é quietinho, né, passivo’.

Se você é asiático, teoricamente tem de estar à disposição. Lembram das gueixas ou japonês ser quietinho. Estamos lá para servir a pessoa branca ou de outra identificação racial. Eu sempre falo, alguns reclamam, mas sim: são cis, héteros, que se identificam como brancos e se acham no direito de se apossar daquele corpo asiático por causa da ascendência, dos olhos, e que a gente tem que ficar quieto já que todo japonês que é ‘tímido e quietinho’.

E tem muita gente que às vezes, quando descobre que a pessoa é um homem trans, se aproxima porque diz que tá ‘curiosa’. Quer saber como pode ser a relação, como faz. Há quem chegue já ‘querendo’ porque acha que vai ser diferente por algum outro motivo, como se fôssemos de outro planeta ou um bicho exótico, algo diferente. Além de também ter o contrário, que é a repulsa da pessoa por causa do genital.

No caso, se sou um homem trans heterossexual, que gosta de mulher, essa mulher diz que não quer sair comigo porque eu tenho uma vagina. Então ela acha que eu sou mulher também. Diz ‘ah, não gosto disso’, ‘ah, eu prefiro homem’. A gente ouve coisas assim. É um falocentrismo absurdo. E as pessoas também confundem muito orientação sexual com a identidade de gênero. Uma coisa é como a pessoa se identifica. Outra, por quem ela se sente atraída.

A hipocrisia é assim: todo mundo fala que não importa se nasce menino ou menina. Mas, na hora das relações, todos olham para o genital. Desde padrões de comportamento, tudo nessa sociedade é de acordo com isso.

‘Masculinidade não se resume a ter pênis’

Primeiro, a sociedade é falocentrada. O machismo estrutural vem disso. Ser homem ‘significa’ ter determinadas ações, posturas e comportamentos que ‘são esperados’ para quem nasce com um pênis. Desde o nascimento já é carregado na criança o que ela vai fazer, ser, estudar, com base no gênero. E como se define o menino e a menina? Se tem pênis ou não tem pênis. Portanto, tudo começa no falo ou na ausência dele.

Tem, por exemplo, o caso do peito do homem trans. É ‘seio de mulher’ para o resto do mundo. Peito é peito! Alguns amamentam e outros não. Se eu quiser tirar, minha motivação é a mesma do homem cis. O peito está grande e me incomoda. Mas se eu sou dono do meu corpo, bastaria eu querer para poder passar por uma cirurgia estética, não é?

Se a questão é prazer, qualquer um pode usar um pênis de silicone que dá na mesma.

No Brasil, com pessoas trans, isso não acontece: o processo do SUS obriga que o transexual tenha laudo de psicólogo, psiquiatra e endocrinologista. Três pessoas para atestar que sou quem eu digo que sou, após um acompanhamento de, no mínimo, dois anos.

Mas a masculinidade não se resume a ter um pênis. Tem homem trans que não quer fazer a redesignação genital e mantém a vagina. No caso de um homem cis, se ele sofre um acidente e perde o pênis, por acaso se torna ‘menos homem’?

Outro caso recente ilustra bem isso: Thammy Miranda, homem trans e filho da artista Gretchen, postou fotos junto da esposa para comemorar o nascimento do filho. O vereador Carlos Bolsonaro decidiu repostar as imagens em sua conta no Twitter, sem legenda ou texto algum. Mas foi o suficiente para que, dentre os comentários  que elogiam e parabenizam, lermos comentários que fazem questão de lembrar que Thammy tem vagina e portanto, não é homem, numa tentativa de ‘invalidar’ a sua identidade e a paternidade.

Existem múltiplas masculinidades. Homens que trabalham em casa, trabalham fora ou estão desempregados. Homens sensíveis ou que têm dificuldade de expressar sentimentos. Altos, baixos, com barba cheia ou barba falhada. E também homens com pênis e homens que não o tem. E quando digo homens sem pênis, falo daqueles que o perdem em acidentes, pelo câncer ou outras questões de saúde.

Já para um homem trans, a primeira coisa que apontam é que não tem pênis. Como se isso fosse essencial pra tudo na vida, e não é. Generalizando bem, se a questão é ter prazer, qualquer um pode usar um pênis de silicone e vai dar na mesma.

A curiosidade sobre a genitália de pessoas trans é bizarra. Qual o interesse que uma pessoa tem no genital de alguém? Só se pensa nisso quando você vai ter alguma relação mais íntima. Achar normal perguntar isso a pessoas trans mostra o quanto somos privados de nossa privacidade. Considerados ‘menos’. Imagine: você faria esse tipo de pergunta a um homem cis? Se sim, com qual finalidade? Se alguém te perguntasse isso, como você se sentiria?

Por que ter essa curiosidade ‘pode’ se a pessoa é trans? E isso serve até para mulher. Se alguma tiver um câncer e tirar o útero, ela é menos mulher? E as mulheres trans? Nem o útero em si pode ser rotulado como feminino. Como escreveu João W. Nery, primeiro homem trans a ser operado no Brasil, ao autografar para mim um de seus livros: ‘seja sempre o que você é.’ Ninguém pode ser rotulado pelo que tem no meio das pernas.

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