“O governador acha que manda na polícia. Mas se a polícia cisma de botar fogo nessa cidade, não há quem impeça. Ninguém controla o guarda da esquina”. Ouvi essa frase de um delegado das antigas, “da época em que policial era tira”, como ele dizia.
Apesar do diagnóstico ser sobre o Rio de Janeiro, há pontos comuns com a situação vivida no Ceará, que está em chamas e não é de agora. E o modo como são tratadas – ou melhor, não são tratadas – as greves e motins de policiais faz com que o bolo cresça. Agora, com novos ingredientes: bolsonarismo e WhatsApp. O ministro da Justiça Sergio Moro se manifestou de forma protocolar, avisando que a situação está sendo monitorada. Jair Bolsonaro disse apenas uma frase: “A democracia nunca esteve tão forte”.
A última grande greve no Ceará aconteceu em 2011, exatamente quando Cid Gomes, hoje senador, governava o estado. A greve começou na virada do ano, quando o Ceará estava apinhado de turistas para o réveillon. Cid estava com a faca no pescoço: negociar em um momento em que o policiamento é vital é uma enorme desvantagem. A Força Nacional foi enviada como reforço pela então presidente Dilma Rousseff.
Policiais mascarados, viaturas destruídas, lojas fechadas, caos. Como em 2020, a polícia esteve rachada em 1997: parte concordava com a greve; parte, não. E esse embate rendeu. Durante uma marcha, militares grevistas e o Grupo de Ações Táticas Especiais, o Gate, que não aderiu ao movimento, trocaram tiros. Resultado: o comandante da PM, coronel Mauro Benevides, foi baleado nas costas.
Escada política
Isso tudo aconteceu muito próximo das manifestações de junho de 2013, que lotaram as ruas de movimentos, cada um com sua bandeira. O recém-eleito vereador Capitão Wagner (então do PR, hoje no Pros) convocava a população para manifestação dos PMs – ato que foi denunciado na Assembleia Legislativa por “tentativa de insuflar a insegurança na cidade e financiando isso” e que, posteriormente, lhe custou um processo.
Capitão Wagner surfou na onda do caos e se aproveitou da justa luta por direitos dos PMs como palanque político. Um dos cabeças do movimento, ele liderou um motim – não uma greve – de seis dias. A diferença aqui é importante: greve, a interrupção coletiva do trabalho para forçar o empregador a aceitar reivindicações, é vedada a policiais pela Constituição. Motim se trata de uma insurreição: parar de trabalhar é um ato de desobediência, de não cumprimento de deveres. É considerado por alguns um “aberto e violento desafio ao Estado Democrático de Direito” e, por causa disso, está previsto como crime no Código Penal Militar. Em resumo: aos policiais não cabe direito de lutar por direitos pelas mesmas vias usadas por civis.
Virada de mesa
Capitão Wagner se aproveitou da projeção que ganhou nas ruas. Elegeu-se vereador em 2012, deputado estadual em 2014 e federal em 2018. Neste intervalo, em 2016, foi ao segundo turno na eleição à prefeitura de Fortaleza. Este ano já desponta como favorito para o cargo.
Então, a política e o jogo viraram. Cid estava de um lado da mesa e, hoje, está do outro, menos favorecido. Wagner é o principal opositor da família Gomes, oligarquia que há décadas domina o poder local, e do PT de Camilo Santana, atual governador e aliado de Cid.
Ao enfrentar os policiais amotinados, com uma retroescavadeira, Cid levou dois tiros, mas não corre risco de morte. Capitão Wagner, do lado dos amotinados, considera legítima defesa os tiros desferidos pelos policiais em motim. Ele e dois deputados registraram um B.O. contra Cid.
Nesta semana, ouvi policiais, inclusive de estados diferentes, para entender a situação. E eles foram unânimes: o movimento não é milícia, uma suspeita que volta à baila quando há insurgência no setor. É polícia contra o estado: no caso, uma polícia bolsonarista, que tem se sentido legitimada com os discursos da família Bolsonaro.
“Estão inflamados”, me disseram. E fizeram um alerta: “No caso do Ceará, o silêncio dele [Jair Bolsonaro] pode motivar outros estados a terem problemas parecidos”. “Quando teve o movimento na Bahia ano passado, vários amigos PMs de outros estados, vários mesmo, falavam comigo [por WhatsApp]. Isso alimenta e muito [a insatisfação]. Tanto o aumento salarial quanto a greve em si”, me disse um policial da Bahia.
No meio de todos os embates políticos está a população. O uso que parlamentares fazem das polícias – especialmente em anos eleitorais – é, claro, político e perigoso. A ontem “polícia de Cid”, é hoje a “polícia de Camilo” e, amanhã, pode ser a “polícia de Wagner”. Enquanto isso, a luta por direitos da polícia em si fica em segundo plano.
A Bahia, como no Ceará, também tinha seu Capitão Wagner. No caso baiano, é Prisco. Soldado, Prisco foi demitido da PM em 2002 por liderar um movimento grevista. Mesmo assim, encabeçou novas greves em 2012 e 2014. O STF determinou sua reintegração em 2017. Foi eleito vereador em 2012, deputado estadual em 2014 e reeleito em 2018. Prisco iniciou a carreira política no PCdoB, passou pelo Partido Social Cristão, e hoje está no PSDB de João Doria.
As discussões sobre melhores condições salariais e de carreira para os policiais civis e militares volta e meia voltam à tona – e são empurradas para debaixo do tapete. Policiais seguem matando, morrendo, se suicidando em números muito além do aceitável. Não se fala em ciclo completo, em direitos – inclusive à greve–, em saúde. Essa bomba está armada há tempos. E agora, nesta nova era de intolerância e ódio, ela ameaça explodir na mão não só do governo do Ceará, mas de vários estados.
Quem controla o vigia? Quem preza pelo vigia?
O ano, lembrem-se, é eleitoral.
Correção, 20/2, 18h53: Numa primeira versão deste texto, o nome do governador do Ceará, Camilo Santana, estava incorretamente grafado. A informação foi corrigida.
Correção, 20/2, 19h54: Numa primeira versão deste texto, não havia a data em que ocorreu a greve que rachou a polícia cearense, quando o comandante da PM foi baleado. Incluímos a data para não ocorrer a confusão com a greve posterior, de 2011.
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