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O coronavírus importa. A bolsa de valores, não.

Há décadas, sempre que nos deparamos com uma escolha entre a realidade dos seres humanos e os números do mercado de ações, escolhemos os números.

Operadores atuam na Bolsa de Nova York em 2 de março de 2020, na cidade de Nova York. As ações haviam tido discreta alta na negociação aquela manhã, na sequência de uma semana de vendas intensas em razão do receio pelo novo coronavírus.

A crise do coronavírus

Parte 1


Se você tem passado qualquer tempo online ou na frente da TV, já recebeu o recado de que a humanidade atualmente enfrenta duas graves ameaças de importância praticamente equivalente: um novo coronavírus e o colapso do mercado de ações.

Na última quinta-feira (5), Rick Santelli, editor da rede de notícias CNBC, foi ainda mais longe, e afirmou que, na verdade, a perda de valor das ações é mais assustadora que milhões de mortes. “Talvez fosse melhor simplesmente espalhar [a doença] para todo mundo”, Santelli explicou, com seriedade. Dessa forma, muitas pessoas pereceriam rapidamente, removendo assim a incerteza que vem atormentando os investidores.

É fácil criticar Santelli, mas ele estava apenas indo um pouco além do normal na lógica da obsessão americana pelo mercado de ações. Já há algumas décadas, sempre que nos deparamos com uma escolha entre a realidade dos seres humanos e os numerozinhos em uma tela, escolhemos os numerozinhos.

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É um dado profundo sobre o nosso estado mental. Grande parte da energia mental dos EUA, bem como, sem dúvida, da atenção do governo Trump, é consumida pelas oscilações do mercado acionário. Isso, por si só, já é debilitante para nós, independentemente da direção da oscilação.

Agora o coronavírus parece prestes a ensinar uma dura lição sobre o que essa fixação nos causou. O brilho da riqueza imaginária do mercado de ações nos deixou cegos para o que constitui a efetiva riqueza.

Para entender isso, é preciso examinar alguns fatos básicos sobre o que o mercado de ações é ou deixa de ser.

Muito barulho sobre ações

Depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, Courtney Love, vocalista da banda Hole e viúva de Kurt Cobain, anunciou a compra de 200 mil dólares em ações para apoiar os Estados Unidos. Embora ela tivesse boas intenções, seu ato foi completamente inútil.

Mas é possível compreender o equívoco. Viver nos EUA significa estar constantemente submetidos a um infinito blá-blá-blá em volume máximo sobre a importância fundamental do mercado de ações. Existem canais de TV inteiros dedicados a ele, as altas são sempre comemoradas nas redes de notícias, ele está nas manchetes dos jornais, em um aplicativo que já vem pré-instalado no iPhone, e o presidente dos EUA grita o tempo todo sobre o assunto.

O mercado de ações, no entanto, tem muito pouca relevância direta para as pessoas comuns. De acordo com algumas estimativas, as famílias que representam os 10% mais ricos dos EUA são proprietárias de mais de 80% das ações do país. A faixa dos 1% mais ricos, sozinha, já detém metade disso, 40% do total de ações. Metade dos americanos não possui nenhuma ação.

Uma vez entendendo isso, a loucura midiática pelo mercado de ações fica ainda mais insanamente hilária. É como se metade do noticiário nacional seguisse tagarelando sobre o clima de Greenwich, em Connecticut. (“Nossa manchete da noite nas Notícias do Mundo da ABC: esta tarde Greenwich esteve excessivamente quente.”) E ninguém percebe o quanto isso é bizarro.

Para fins de contraste, pense nos fatos econômicos que têm relevância concreta para as vidas das pessoas comuns: taxa de desemprego, aumento salarial da classe média, variação do salário mínimo, assistência de saúde, segurança do trabalho. Não há barra de notícias na TV sobre esses temas.

O mercado de ações contra você

Isso não quer dizer que as boas notícias para o mercado de ações nunca importem para a média dos americanos. Mas, quando importam, normalmente são ruins para a maior parte de nós. Doug Henwood, jornalista da área econômica, explica isso de forma clara: “o principal motivo para que o mercado de ações venha se saindo tão bem ao longo de tantos anos é exatamente que a classe trabalhadora venha se saindo tão mal.”

Vamos levar em conta alguns números básicos:

Nos 36 anos entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a posse de Ronald Reagan em janeiro de 1981, a média da remuneração dos trabalhadores nos EUA praticamente dobrou, aumentando quase 100%. Enquanto isso, o retorno do índice S&P 500 nesse mesmo período (com reinvestimento dos dividendos) foi de 700%.

Nos 39 anos que se passaram desde então, a média da remuneração dos trabalhadores lentamente avançou cerca de 30%. Porém, nesse mesmo intervalo, o índice S&P retornou mais de 2.100% – aproximadamente três vezes o percentual nas décadas logo depois da Segunda Guerra Mundial.

Mas não é preciso acreditar na opinião de Henwood de que essas coisas estão relacionadas. O economista do século XVIII Adam Smith é tão querido pela direita americana que os funcionários da Casa Branca no governo Reagan usavam gravatas com sua efígie estampada. Eis o que Smith escreveu em seu livro mais famoso, “A Riqueza das Nações“: “entretanto, a taxa de lucro não aumenta com a prosperidade da sociedade e não diminui com o seu declínio — como acontece com a renda da terra e com os salários. Ao contrário, essa taxa de lucro é naturalmente baixa em países ricos e alta em países pobres, sendo a mais alta, invariavelmente, nos países que caminham mais rapidamente para a ruína.”

A relevância disso para o mercado de ações é que o valor de uma ação é, em teoria, o valor do seu fluxo de caixa presente e futuro – essencialmente o valor do lucro da empresa. Porém, como escreveu Smith, os altos lucros corporativos não são um bom sinal para o resto de nós. E isso é verdade por motivos ao mesmo tempo simples e complicados.
O motivo simples é que os lucros são, em parte, uma medida do poder de barganha entre os trabalhadores e os acionistas. Em países pobres, os trabalhadores também são pobres e têm menos força, por isso não conseguem se apropriar de sua parcela do dinheiro, e sobra mais para seus empregadores.

Depois de décadas de ataques aos sindicatos e às associações, os EUA começaram a experimentar essa dinâmica. A América corporativa se tornou impiedosamente bem-sucedida em deter o avanço da remuneração de seus empregados e direcionar o dinheiro que economiza assim para seus voluptuosos lucros.

Da Segunda Guerra Mundial até o ano 2000, o lucro empresarial, descontados os tributos, em regra respondia por 5 a 7% do PIB dos EUA. Desde então, chegou a atingir 10,6%, e ainda hoje está em quase 9%.

Do outro lado da contabilidade, a proporção da remuneração dos empregados corporativos em relação ao PIB aumentou consistentemente entre a Segunda Guerra Mundial e o ano 2000. De lá para cá, essa relação entrou em colapso, com uma discreta recuperação recente. Como aponta Henwood, isso faz a situação parecer melhor do que realmente é, pois os enormes pacotes de benefícios dos executivos são contabilizados como remuneração dos empregados.

As empresas também conseguem extrair lucro dos países de formas mais complexas. Todo empreendimento de negócios gera custo e valor. As empresas são especialistas em capturar o valor para si e obrigar as sociedades a pagarem o custo. A indústria dos combustíveis fósseis é o principal exemplo no mundo: o valor que ela gera é distribuído para acionistas e executivos, mas ela descarrega o custo da destruição da civilização humana sobre os outros sete bilhões de pessoas do planeta.

Bolhas financeiras são ótimas até estourar

Os EUA viveram duas gigantescas bolhas financeiras nos últimos 20 anos: a bolha da internet e a bolha imobiliária. Ambas pareciam fantásticas enquanto cresciam, e convenceram muitas pessoas de que haviam subitamente ficado ricas. Mas as bolhas estouraram e causaram um dano extraordinário às pessoas comuns. Quando a poeira baixou, ficou claro que as únicas pessoas que haviam enriquecido eram os vários charlatões bem vestidos.

De acordo com as métricas das recentes altas no mercado de ações, ele estava – e ainda está – em uma situação semelhante de bolha. Uma forma padrão de medir o custo de uma ação é seu índice P/L, ou preço-lucro: a relação entre o custo de uma ação e o lucro da empresa por ação. De acordo com uma das versões do índice P/L, nos últimos 150 anos a média das ações no S&P 500 tem sido 15.

Antes do seu recente tombo, as ações do S&P vinham sendo negociadas em um P/L de aproximadamente 33, mais do dobro da média histórica. Até o fim do pregão na quinta-feira (5), ainda estava acima de 28. Assim, as ações permanecem excessivamente caras, e podem cair muito mais.

Uma outra forma de olhar para o valor das ações é a relação entre o total da capitalização de mercado das companhias de capital aberto e o PIB dos EUA. Até o final dos anos 1990, essa relação raramente chegava a 100%. Antes da atual tendência de queda, o mercado acionário vinha relatando que o valor das companhias americanas de capital aberto chegara a 200% do PIB dos EUA, o nível mais alto de todos os tempos.

A boa notícia é que, mais uma vez, o mercado de ações tem pouca relação direta com a economia subjacente. Ele pode continuar em queda com poucas consequências, exceto o aumento dos tuítes ansiosos de Donald Trump.

Eis as péssimas notícias

Tudo isso deveria tranquilizar qualquer pessoa com um nível padrão de ansiedade em relação ao mercado de ações. Mas todos nesse momento deveriam estar sentindo uma ansiedade profunda e fora do padrão a esse respeito, um tipo de ansiedade que não aparece na TV.

O problema com o mercado de ações não é que ele esteja em alta, em queda ou andando de lado. É o que a obsessão por ele tem feito conosco. Prestar atenção ao capitalismo nos tem feito pensar como capitalistas. Ele exerce uma atração gravitacional sobre nossa psique, o que nos empurra psicologicamente para a direita e dilacera nossos instintos de solidariedade social.

Primeiro, existe a luta de classes básica. Uma vez que você tenha até mesmo uma quantidade modesta de ações, vai se encontrar numa posição ambivalente em relação ao quanto as empresas podem arrancar de dinheiro dos empregados, ainda que você seja um deles. Em vez de pensar como se unir a todas as outras pessoas para evitar que as 500 maiores empresas da lista da revista Fortune destrocem os EUA, você espera conseguir sua ínfima porção dos destroços.

“Muitas pessoas de classe média e média-alta se identificam com o destino do mercado de ações”, diz Henwood. “Em vez de enxergá-lo como seu inimigo de classe, elas o veem como amigo.”

Mas um amigo de verdade não incentivaria ninguém a lucrar em cima do colapso climático. Você sabe que deveria se unir a um movimento coletivo para frear o aquecimento global, mas… Suas ações da Exxon estão indo muito bem, então você calcula que, quando o gelo da Antártida derreter, você vai poder vendê-las e comprar uma casa no Canadá.

Além disso, o mercado financeiro encoraja todos a adotarem uma certa perspectiva em relação às bolhas financeiras. Basta imaginar o que isso significa para qualquer pessoa que esteja desesperada quanto ao valor de sua previdência privada. A triste realidade é que o valor dos planos de previdência nunca foi verdade, da mesma forma que as casas baratas construídas nos subúrbios da Flórida no auge da bolha imobiliária nunca valeram 1,2 milhão de dólares cada uma. Sem perceber conscientemente, as pessoas contavam que as ações permaneceriam sobrevalorizadas até que pudessem vendê-las e se aposentar. Isto é, elas dependiam da possibilidade de levar vantagem sobre outras pessoas ao vender um ativo sobrevalorizado, como faria um especulador imobiliário na Flórida.

Essa estrutura econômica inevitavelmente faz com que passemos a olhar para os outros, não como nossos concidadãos e companheiros de infortúnio, mas como potenciais alvos. Só é possível comprar na baixa e vender na alta se você conseguir enganar alguém para vender na baixa e comprar na alta. O economista John Maynard Keynes deu há muito tempo uma descrição consagrada para esse tipo de “investimento”: “o objetivo real e secreto dos investimentos mais habilmente efetuados em nossos dias é (…) estimular a multidão e passar adiante a moeda falsa ou em depreciação”.

O mercado de ações pode literalmente matar

Até uma nova variedade de coronavírus começar a se espalhar pelo mundo, todos esses problemas do mercado de ações podiam parecer abstratos. Agora, porém, se tornaram extremamente concretos: é só pensar no que poderíamos ter feito para nos preparar para esse momento se estivéssemos menos mesmerizados pelos numerozinhos nas telas e prestássemos mais atenção à realidade bem diante de nós.

Um aspecto da realidade é que algumas doenças são extremamente contagiosas e podem matar. É por isso que todos nos EUA estariam em melhor situação agora se tivessem assistência de saúde robusta e universal, inclusive as pessoas que precisassem vender algumas ações da Apple para ajudar a pagar por isso.

Da mesma forma, há décadas os cientistas vêm alertando exatamente sobre esse tipo de doença infecciosa. Uma de suas sugestões era que o governo dos EUA ajudasse a melhorar a infraestrutura de saúde nos países mais pobres. Em breve todos talvez nos arrependamos de não ter feito isso, mesmo que fosse necessário obrigar a Amazon a pagar uma alíquota tributária superior a 1,2%, prejudicando o valor de suas ações.

Se estivéssemos menos hipnotizados pelo que as grandes empresas estavam fazendo, talvez tivéssemos percebido o que elas não podem fazer. No mundo imaginário dos livros de economia, uma grande empresa farmacêutica teria investido dezenas de bilhões de dólares na capacidade de aperfeiçoar e produzir mais rapidamente vacinas em volumes imensos, e o onisciente mercado de ações a recompensaria por sua antecipação. Aqui na Terra, o mercado de ações teria punido qualquer empresa que assumisse um risco tão grande com um retorno incerto. Ainda assim, não conseguimos perceber que a única forma de nos preparar melhor para o coronavírus teria sido com uma intervenção pública muito mais ampla.

E existem outros efeitos perniciosos ainda mais sutis do nosso caso de amor com o mercado financeiro. Quando os jovens decidem o que vão fazer de suas vidas, é com os adultos que aprendem o que valorizar, e o que os adultos vêm dizendo a eles é que o que tem valor é a riqueza corporativa. Imaginem como poderíamos estar numa situação melhor se mil dos melhores analistas financeiros dos EUA tivessem aprendido que a coisa mais importante e respeitada que podiam fazer era ser epidemiologistas.

Mas, em vez de investir em riqueza genuína, no tipo de riqueza que nos mantém vivos, preferimos perseguir a riqueza fantasma do mercado de ações. Agora, enquanto a riqueza fantasma se dissolve, talvez tenhamos que enfrentar nossa decisão de ser pobres naquilo que realmente importa.

Tradução: Deborah Leão

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