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Eu cresci em uma favela da zona norte do Rio de Janeiro frequentemente invadida por operações da PM. Sempre convivi com pesadelos e flashbacks de situações de trauma. A minha visão de mundo se baseou na ideia que o perigo está por todos os lados e as pessoas são más – e, por isso, me acostumei a ficar sempre em um estado hipervigilante e evitar situações que me lembrassem os momentos de maior medo.
Foi só agora, pesquisando sobre saúde mental nas favelas, que eu descobri que isso tudo tem um nome: transtorno de estresse pós-traumático, o Tept, principal doença psiquiátrica associada à violência no mundo. O Tept é grave e incapacitante, em até 80% dos casos ele está associado a algum outro problema psiquiátrico, como depressão ou abuso de álcool e drogas e tem taxa de suicídio de 15% a 20%.
Existe uma ideia de que a exposição frequente à violência cria uma casca em você e isso não é verdade.
Uma pesquisa feita em 2017 pelo instituto de psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Ipub, mostrou que eu não estou sozinho. Cerca 550 mil pessoas no estado sofrem de transtorno de estresse pós-traumático. Os dados são de 2017, mas a sensação de adoecimento da população em 2020 é bem maior.
Não poderia ser diferente. No ano de 2019 a polícia fluminense matou 1.810 pessoas, maior número de mortes cometidas pela polícia no estado desde que esse dado passou a ser contabilizado. Isso é quase metade das mortes violentas em todo o Rio em 2019!
Em todos os momentos da história em que uma população se viu em guerra, foi o Tept que apareceu com mais força, como por exemplo na Guerra Civil Americana, quando foi chamado de síndrome do coração irritável, e na Primeira Guerra Mundial, em que ganhou o apelido de choque da granada.
É inegável que o Rio vive um estado de guerra e o quanto isso afeta a população, principalmente o lado mais fraco da corda – pretos, pobres e favelados –, que convivem diariamente com operações policiais em que são usados helicópteros, carros blindados como o famoso Caveirão, armamento de guerra e táticas de intimidação que não perdem em nada para conflitos escancarados ao redor do mundo. Conversando com o psiquiatra William Berger, professor do IPUB e responsável pelo estudo, aprendi a chamar de Tept os sintomas que senti na pele ao conviver, desde pequeno, com violência policial. Há uma sensação constante de medo e paranoia.
“A pessoa, por exemplo, se mudou para a casa de um parente distante em que não há tiroteios nem operações policiais mas continua hiper vigilante, fica preocupada o tempo todo de alguma coisa parecida pode acontecer”, explica Berger.
Existe uma ideia de que a exposição frequente à violência cria uma casca em você e isso não é verdade. Cada corte de luz, cada tiroteio, cada corpo pelo chão te marca. É como um copo que vai enchendo até transbordar. Esse preconceito, segundo Berger, está presente nos próprios moradores de favelas, que ainda enxergam o adoecimento psicológico como uma fraqueza e a saúde mental como um tabu.
Para a população das favelas a guerra está do outro lado da porta da sala.
Agora imaginem o efeito da convivência com essa violência nas crianças que moram nas favelas do Rio. Em sua rotina, elas são expostas desde cedo a armas de fogo, tanto nas mãos do tráfico quanto da polícia, e em alguns casos até a torturas e execuções. Quem consegue estudar quando precisa correr para se esconder de um tiroteio? Mesmo ir à escola é uma dificuldade: no ano passado escolas da rede municipal no Rio foram fechadas 700 vezes devido à violência. Isso levou a Defensoria Pública a mover uma Ação Civil Pública pedindo que a justiça proíba a polícia fluminense de fazer operações no entorno de creches e escolas públicas estaduais e municipais. O relato de uma mãe que abre o texto da ação exemplifica o que acontece com crianças que convivem com esse tipo de violência:
“Estamos passando cenas de terror aqui. As crianças estão psicologicamente abaladas. A minha filha ela tirava nota máxima desde quando entrou pra escola, agora ela só tira B, a nota dela está caindo. Eu sei que ela é uma aluna inteligente e aplicada, isso me preocupa muito. A minha filha acorda de noite gritando, a minha filha mais nova se esconde de madrugada debaixo da cama. Estamos passando um terror psicológico terríveis e as nossas crianças são as que estão mais sofrendo porque nós adultos a gente finge e se segura, mas eles não. Eles [crianças] ficam doentes, eles não querem vir pra escola.”
A cidade do Rio tem 36 escolas municipais localizadas em áreas com conflitos constantes e só quatro delas (11%), segundo dados do jornal O Globo, bateram a meta de qualidade estipulada pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o Ideb, que leva em conta o nível de aprendizado, a quantidade de alunos aprovados e reprovados e a evasão das salas de aula. No restante da cidade, esse percentual foi de 23%.
Há ainda a “sensação de aprisionamento” que só quem não conseguiu chegar ao trabalho ou a um compromisso porque havia um tiroteio rolando na porta de casa sabe descrever. Situações como essa, diz o pesquisador da Fiocruz Leonardo Bueno, que focou sua pesquisa em uma área conhecida como “Faixa de Gaza” devido à violência, levam os moradores das favelas cariocas com frequência ao adoecimento, tornando nomes como depressão e síndrome do pânico comuns. E se não há vagas no estado para receber quem sofreu um acidente, quiçá alguém com uma doença psíquica. A rede pública de saúde mental, incluindo a assistência psicossocial, é minúscula e não comporta as necessidades das vítimas diretas e indiretas da (para)militarização.
O Tept não é exclusividade de violências armadas. Assaltos, estupros, desastres ambientais, assassinatos, guerras e até um aborto espontâneo podem desencadear o transtorno. A população de Brumadinho por exemplo está sofrendo do trauma como mostraram reportagens recentes.
Discutir os efeitos do estresse pós traumático nas favelas é fundamental. Berger, que trabalhou em um hospital psiquiátrico de veteranos de guerra nos EUA, afirma que o transtorno é mais nocivo à população das favelas cariocas do que a soldados no front. Soldados tem preparo físico e psicológico, além de serem retirados do local de, em algum momento, terem a oportunidade de deixar o conflito para trás e retornar para suas casas. Já para a população das favelas a guerra está do outro lado da porta da sala.
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