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Coronavírus: casos suspeitos em mineradora acendem alerta sobre comunidades da Amazônia

Comunidades de região afetada no norte do Pará precisam viajar até 18 horas de barco para receber atendimento em UTI.

Comunidades de região afetada no norte do Pará precisam viajar até 18 horas de barco para receber atendimento em UTI.

A crise do coronavírus

Parte 14


Não são apenas as populações dos centros urbanos que estão preocupadas com o coronavírus. Ao norte do rio Amazonas, no estado do Pará, um caso suspeito da doença acendeu o alerta vermelho entre as comunidades tradicionais da floresta amazônica. Dois funcionários da Mineração Rio do Norte, a MRN, estão em isolamento domiciliar em Porto Trombetas, vila administrada pela maior produtora de bauxita do Brasil, que é subsidiária da Vale.

O polo industrial pertence ao município de Oriximiná e fica no meio de um mosaico de onze terras quilombolas localizadas às margens rio Trombetas, cercadas de mata virgem. Somando com os territórios do município vizinho, Óbidos, são 19 mil quilombolas vivendo na região – uma das populações mais expressivas do Brasil. A área é de difícil acesso: fica a pelo menos dois dias de viagem de Belém e a até 12 horas do hospital mais próximo, dependendo da localização da comunidade.

“O que mais me preocupa é que a nossa comunidade é vizinha de Porto Trombetas, e ali é uma cidade de um pessoal que não é daqui. É tudo gente de fora que fica viajando direto, vai e vem, vai e vem”, relata Amarildo Santos de Jesus. Ele é morador da Terra Quilombola Boa Vista, a mais próxima da mineradora e onde vivem 155 famílias.

Cerca de 80% dos habitantes de Boa Vista trabalham em Porto Trombetas, principalmente para empresas terceirizadas que prestam serviços de limpeza, manutenção e transporte à MRN, segundo a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná. “A gente depende do hospital da própria mineradora e do hospital municipal. A situação de saúde é precária, então a gente pensa em catástrofe mesmo”, lamenta Claudinete Colé, diretora da associação.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a MRN informou que um dos seus funcionários está isolado desde sábado, junto com três familiares. O teste dele deve ficar pronto na sexta-feira. O segundo suspeito entrou em isolamento nesta segunda e vai coletar o exame nesta quarta.

A empresa divulgou um comunicado informando que, até o final de março, ninguém entra em Porto Trombetas. O acesso por meio fluvial, terrestre e aéreo ficará fechado. Funcionários que estão de férias ou a trabalho em outras regiões do país só poderão voltar daqui a duas semanas. Mas, segundo a assessoria de imprensa, os quilombolas seguem com trânsito livre entre a vila e as suas comunidades. As equipes administrativas estão trabalhando de casa, mas as áreas operacionais mantêm sua rotina. As aulas e eventos que pudessem gerar aglomerações foram suspensos.

Megaprojeto leva risco às comunidades tradicionais ao colocá-las em contato com pessoas de outros estados.

Cerca de 6.500 pessoas moram em Porto Trombetas, todas empregadas diretas ou indiretas da mineradora. A vila tem um aeroporto particular da MRN, onde só operam vôos fretados. Para os quilombolas, a “estrada” é o rio Trombetas e seus afluentes, onde suas canoas eventualmente se misturam às embarcações dos moradores de três terras indígenas que ficam rio acima: Kaxuyana-Tunayana, Nhamundá-Mapuera
e Trombetas-Mapuera.

“A frente de Porto Trombetas é ponto de passagem de quilombolas e indígenas que sobem e descem o rio, principalmente no final e início do mês. É quando eles vão até a cidade de Oriximiná para sacar benefícios como aposentadoria ou licença maternidade”, explica Douglas Sena, quilombola e agente da Pastoral Social da Diocese de Óbidos, entidade da Igreja Católica que atua junto a 58 comunidades quilombolas da região. Quilombolas e indígenas também costumam ir até a cidade para tratar problemas de saúde, visitar parentes ou vender produtos na feira. Uma circulação constante, que aumenta o risco de contaminação destas comunidades.

Em Óbidos, município vizinho a Oriximiná, outro megaprojeto leva risco às comunidades tradicionais ao colocá-las em contato com pessoas de outros estados. Em meados do ano passado, a empresa de engenharia Elecnor montou um escritório no município para fazer os estudos prévios à implementação da linha de transmissão que vai distribuir a energia da hidrelétrica de Tucuruí. Segundo Sebastião Pinheiro Cordovil da Silva, gerente de meio ambiente da empresa, o escritório chegou a ter 50 pessoas. Agora ele calcula que tenha em torno de 30. As equipes são formadas por profissionais vindos do Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Mato Grosso do Sul.

Coronavírus: casos suspeitos em mineradora acendem alerta sobre comunidades da Amazônia

Mapa: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil

Até a sexta-feira, dia 13, os funcionários estavam em contato com os moradores da área que será impactada pelo linhão, o que inclui as comunidades quilombolas de Muratubinha e Arapucu, além de nove assentamentos do Incra. Agora, estão sendo feitos apenas trabalhos administrativos. “Todas as atividades nestas comunidades estão bloqueadas pelos próximos 15 dias, até que a gente possa reavaliar o cenário. A tendência é que este prazo se estenda mais”, diz Cordovil da Silva.

Catarina Soares Franco é técnica de enfermagem e a única funcionária do posto de saúde da terra quilombola Arapucu. Médico, só em Óbidos, a 20 minutos de barco (o trajeto pode ser mais longo em tempos de seca). Quando estourou a crise do coronavírus, ela ficou preocupada com a circulação de funcionários da Elecnor pela comunidade. “Nós estamos preocupados porque a nossa região é muito distante, a estrutura de saúde é precária, e nós não estamos livres de pegar o vírus. Já tem um caso de coronavírus confirmado em Manaus, que é a capital mais próxima da gente, mais próxima que Belém”. Franco lembra que toda semana passam pela cidade de Óbidos dezenas de barcos de linha levando passageiros de toda a região Norte.

A dificuldade de acesso à saúde também é o que mais preocupa Lúcia Andrade, Coordenadora Executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo, que atua junto às comunidades quilombolas da região. Para ela, os quilombolas estão mais vulneráveis ao coronavírus do que o restante da população. “Algumas comunidades estão localizadas a uma grande distância dos centros urbanos, e as pessoas podem ter que fazer viagens de até 12 horas de barco para chegar a um local de atendimento médico”, afirma.

Segundo a Sociedade Brasileira de Infectologia, a estimativa é de que, a cada 100 pessoas infectadas pelo coronavírus, cerca de cinco precisem de internação em tratamento intensivo. Conforme apurou a Agência Pública, as regiões Norte e Nordeste têm o menor número de leitos por habitante. No Pará, apenas a região de Belém está dentro da média recomendada pela Organização Mundial de Saúde, de 1 a 3 leitos para cada 10 mil habitantes.

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No caso dos quilombolas de Óbidos e Oriximiná, a UTI mais próxima fica no Hospital Regional do Baixo Amazonas, em Santarém, que tem 49 leitos de tratamento intensivo (entre adulto, pediátrico e neonatal) para atender cerca de 20 municípios da região. Um morador da terra quilombola Alto Trombetas, por exemplo, teria que navegar cerca de 10 horas até um hospital em Oriximiná e mais 8 horas em uma embarcação de linha para chegar a Santarém. Ou seja, 18 horas para chegar a uma UTI.

Além da distância dos centros de saúde, Andrade destaca como fator de risco a falta de saneamento básico. Na grande maioria das comunidades, há apenas uma fossa a céu aberto, que pode inundar na época da cheia. Muitas vezes, a água para beber vem diretamente do rio, sem nenhum tratamento. Na melhor das hipóteses, a família tira água de um poço. Outro fator de risco é a falta de informação sobre a pandemia em uma região onde internet ainda é artigo de luxo, e a energia elétrica depende de geradores a diesel, acionados por umas poucas horas durante a noite.

Tentei contato com as prefeituras de Óbidos e Oriximiná, mas não obtive retorno até o fechamento desta reportagem. Até o momento, o Pará tem um caso confirmado da doença. Na região Norte também há registros no Amazonas e Tocantins.

Embarcação navega pelo rio Trombetas, em Oriximiná, cidade do Pará habitada principalmente por quilombolas.

Embarcação navega pelo rio Trombetas, em Oriximiná, cidade do Pará habitada principalmente por quilombolas.

Foto: Bernardo Gutiérrez/Folhapress

Indígenas temem que vírus cruze as fronteiras

Ainda mais distante dos centros urbanos está a terra indígena Tumucumaque. O território fica mais de 400 km ao norte das terras quilombolas, na fronteira com o Suriname, e só é acessível com uma viagem de duas horas em um avião fretado, saindo de Santarém. Mesmo ali, a preocupação com o coronavírus já chegou. Os indígenas trazem na memória os milhares de parentes dizimados pelas doenças dos brancos. “Para nós uma gripe já se torna facilmente um surto, imagina o coronavírus”, diz Aventino Nakai Kaxuyana Tiriyó, presidente da Associação dos Povos Indígenas Tiriyó, Kaxuyana e Txikuyana, a Aptikati.

O principal receio é com um caso confirmado em uma aldeia da etnia tiriyó no Suriname, que fica a três dias de viagem a pé da missão Tiriyós, maior aldeia de Tumucumaque, onde vivem 200 pessoas. “Para gente isso é perto. É comum o pessoal do lado brasileiro visitar os parentes no Suriname, e vice e versa”, explica Aventino. Da mesma forma, é comum os indígenas da missão Tiriyós visitarem parentes nas outras 56 aldeias do lado brasileiro, onde vivem mais de 3 mil pessoas.

Aventino também está preocupado com a presença de militares nas bases da Força Aérea e do Exército instaladas desde os anos 1960 no território. São militares vindos de Manaus, Macapá e Belém e que são substituídos a cada dois meses. Além disso, há cerca de 100 indígenas que estão vivendo de maneira fixa ou temporária em Macapá, entre eles o próprio Aventino.

Para a liderança, a maior dificuldade é comunicar os cuidados necessários aos parentes, sem colocá-los em risco. “Só tem internet na missão Tiriyós, nas outras aldeias não têm. A comunicação principal é via rádio, mas a informação chega sempre meio confusa. É um desafio para nós fazer isso sem arriscar a comunidade”.

Denise Fajardo é sócia-fundadora do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, o Iepé, que promove cursos de formação para população do Tumucumaque. Ela afirma que é uma ilusão achar que os indígenas estão isolados e a salvo do coronavírus. “Existe um trânsito não só entre as aldeias e cidades, mas também entre países. No Amapá e norte do Pará, os índios que vivem no Brasil têm contato frequente com parentes na Guiana Francesa, Suriname e Guiana”.

Para tentar conter a disseminação do coronavírus entre povos indígenas, a Funai publicou nesta terça-feira uma portaria restringindo a entrada de agentes do órgão e de outros civis às terras indígenas. O documento suspende a concessão de novas autorizações de entrada nestes territórios, à exceção daquelas necessárias à prestação de serviços essenciais e dos agentes de saúde. A Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, por sua vez, lançou um Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus em Povos Indígenas.

Tanto o Iepé como a Comissão Pró-Índio de São Paulo cancelaram os trabalhos de campo e as atividades com as comunidades tradicionais. Enquanto isso, entidades indígenas estão lançando notas de esclarecimento sobre o coronavírus, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. As entidades suspenderam suas viagens e outras atividades.

 

Correção: 18 de março, 22h

O nome do quilombola e agente da Pastoral Social da Diocese de Óbidos é Douglas Sena e não Douglas Fena, como grafado erroneamente em versão anterior deste texto. 

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