A Ambev anunciou que vai usar uma de suas fábricas de cerveja para produzir 500 mil unidades de álcool em gel. A maior cervejaria do mundo, dona de marcas como Brahma, Skol, Antarctica e Stella-Artois, disse que irá doar o produto a hospitais públicos do Rio, de São Paulo e de Brasília. A empresa ainda se comprometeu a arcar com os custos e a logística das entregas. Parece um simples e generoso ato de filantropia. Mas não é bem assim.
O que a Ambev está propagando em redes sociais como boa ação livre de interesses econômicos, contudo, embute uma estratégia de marketing para a própria empresa e para outras companhias surfarem em uma campanha de marketing embalada como filantropia.
Num grupo de WhatsApp divulgado no Linkedin pelo diretor de Inovações Felipe Cerchiari, e a cujo histórico o Intercept teve acesso, a Ambev propôs a outras empresas que financiassem a produção de novos lotes do álcool em gel em troca de publicidade nas embalagens e divulgação de mídia. A depender da quantidade de dinheiro investido, o logotipo impresso nas embalagens varia de tamanho conforme o gasto.
Todas as empresas têm direito a promover a boa ação em suas redes sociais – uma ação publicitária de baixo custo e com boas chances de chegar em milhões de pessoas.
Segundo o catálogo, as cotas de patrocínio custam de R$ 60 mil a R$ 2 milhões. Quem se dispôs a comprar a maior delas terá a logomarca exposta no rótulo das garrafinhas de álcool em gel no mesmo tamanho que a da Ambev. Além disso, recebe permissão para anunciar a iniciativa em redes sociais e na imprensa.
Já R$ 600 mil dão direito à logomarca no rótulo, só que em tamanho reduzido, junto aos outros apoiadores, e divulgação. A menor cota compra apenas a possibilidade de se anunciar como parceiro da benfeitoria em campanhas publicitárias. Com um detalhe: todas as ações de marketing precisam que ser previamente aprovadas pela Ambev.
Em 2019, a Ambev teve lucro líquido de R$ 11,78 bilhões. Cada garrafa do álcool em gel custa R$ 3 para produzir, segundo a cervejaria – o que significa que o primeiro lote, pago por ela, custará R$ 1,5 milhão ao todo. É menos do que o valor da cota principal de patrocínio, e o equivalente a 0,01% do lucro da gigantesca cervejaria no ano passado. Ainda assim, a Ambev quer que outras empresas ajudem a bancar o que venderá como uma boa ação dela.
“E o que você ganha com isso?”, diz o documento da Ambev logo após apresentar os valores. “Bom, primeiro você ganha um futuro e a chance de ajudar nosso país. Esse é o nosso maior e único intuito”, jura o texto. Mas a generosidade só resiste até a página seguinte. “Depois, você pode compartilhar a visibilidade dessa parceria de acordo com a quantidade de garrafas investidas”.
Ao entrar no grupo, representantes de empresas como iFood, Alelo e Scania recebiam uma apresentação com a proposta de parceria. A Ambev tenta, no documento, convencer as grandes corporações que a visibilidade e o retorno serão garantidos.
A Ambev jura que não terá lucro e que as contribuições serão divulgadas na internet. Pode até ser. Mas há um ganho imensurável que a corporação não comenta – a imagem de que está agindo movida puramente pelo desejo de ajudar a sociedade num momento de crise de saúde pública. O que é desmentido pela estratégia de marketing.
Também há o que, no linguajar de relações públicas, se chama de mídia positiva espontânea – quando emissoras de tevê, rádio, sites, revistas e jornais falam bem de uma empresa no espaço editorial, de graça. Isso é cuidadosamente medido por assessorias de imprensa e departamentos de marketing.
Cada espaço obtido pela boa ação é contabilizado como o custo de um anúncio no veículo e horário ou espaço em que a matéria foi veiculada. Ou seja – é dinheiro. O que conta mais: uma propaganda paga no intervalo do Jornal Nacional ou uma possível reportagem no próprio jornal sobre a boa ação da Ambev?
Diante disso, uma cota de R$ 2 milhões para estampar a marca no rótulo de um produto que sumiu das prateleiras e pode salvar vidas é o que no mercado se chama de grande oportunidade. Para efeitos de comparação, 30 segundos nos intervalos comerciais do Fantástico, programa dominical da Rede Globo, horário nobre para anunciantes na televisão brasileira, custam quase a metade – R$ 1,06 milhão, em valores de julho passado. No Jornal Nacional, ainda mais: R$ 1,3 milhão.
A publicidade gratuita já começou. O simples anúncio da fabricação do álcool gel garantiu à Ambev destaque em diversos veículos. A coisa se espalhou a tal ponto que uma fake news de que a empresa distribuiria o produto de graça foi usada para infectar telefones celulares com malware.
Não à toa, já havia patrocinadores confirmados quando a Ambev divulgou a oportunidade – “eles pedirem pra não divulgar até fecharmos tudo certinho. Mas tem 2 de varejo, uma de bens de consumo e 2 de alimentos já”, garganteou Cerchiari no grupo de WhatsApp. Mantivemos a grafia original da mensagem.
O diretor também antecipou o próximo passo da Ambev: arrecadar colaborações de pessoas físicas via crowdfunding, as vaquinhas virtuais. “Nessa primeira fase vamos buscar as empresas. Acho que uma fase seguinte poderia ser com pessoas físicas. Vamos falando”, escreveu. “A princípio A maior ajuda agora é com $ para produção. Por isso a busca pelas grandes empresas”, prosseguiu.
O grupo de WhatsApp durou poucas horas: foi criado na noite de quarta, 18, e encerrado no fim da manhã seguinte, com o anúncio de que os acordos seriam formalizados e o projeto deverá ser divulgado hoje, sexta-feira.
O entusiasmo das despedidas deixa entrever que será um bom negócio para todos. “Quero agradecer o engajamento de todos, bonito de ver a colaboração”, disse um dos participantes. “Parabéns a todos, vamos seguir com fé e esperança que tudo passa, mais enquanto isso temos que ter os cuidados necessários. Colaborativo. Engajados. Solidários. Compreensivos”, comoveu-se outro.
Questionada, a Ambev respondeu em nota apenas que “se une à intenção de centenas de outras empresas do país nos esforços conjuntos para mitigar os efeitos da Covid-19 à população”.
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