A brasileira Marcia Castro se formou em estatística. Ao longo da carreira acadêmica, se tornou especialista em demografia – buscou entender como doenças se propagam nos trópicos. Hoje professora na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, ela usa modelos estatísticos para projetar e entender o impacto de projetos de desenvolvimento e urbanização na saúde pública. É um conhecimento fundamental para desenvolver estratégias de controle de doenças.
Eu procurei Castro para entender as projeções de mortes por coronavírus no Brasil. Segundo um modelo apresentado por pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, podemos ter quase 500 mil mortos por covid-19 no Brasil se medidas drásticas de controle e contenção não forem tomadas e obedecidas no país. A doença mata principalmente idosos, que já são 2% da população brasileira.
“Esse número projetado para o Brasil deve ser entendido como um cenário hipotético, caso as taxas observadas na China e na Itália se repitam no aqui”, ela me disse. O número projetado pelo estudo só aconteceria se não houvesse qualquer tipo de resposta para mitigar o progresso da doença, mas “serve para chamar atenção para a necessidade de tomar medidas para que esse cenário não ocorra”, a professora afirmou.
‘As manifestações lideradas pelo presidente são um exemplo de negação da ciência e de falta de responsabilidade.’
Castro avalia que, até o momento, as respostas do Ministério da Saúde estão adequadas – mas é preciso adesão da população às políticas de quarentena e isolamento. E, sem um exemplo vindo de cima, isso não acontece. “O presidente da nação deu um exemplo do que não fazer no domingo”, avaliou, referindo-se à presença de Jair Bolsonaro em manifestações que já havia incentivado. Uma postura que ela classificou de “péssima e irresponsável”.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista com Marcia Castro, feita por e-mail.
Intercept – O estudo preliminar de pesquisadores de Oxford, com base em dados demográficos, projetou que o Brasil pode ter 478 mil mortes por coronavírus. Qual é a sua avaliação desse resultado?
Marcia Castro – O estudo considera taxas de infecção e de mortes com base nas observações da China e da Itália. É um estudo importante que mostra como a estrutura etária de cada país é significativa para o número de mortes. As estimativas em si, como em qualquer modelagem, têm um nível de incerteza. Esse número projetado para o Brasil deve ser entendido como um cenário hipotético, caso as taxas observadas na China e na Itália se repitam aqui. Ele não considera qualquer tipo de resposta que possa alterar esse número. Porém, como caso hipotético, serve para chamar a atenção para a necessidade de tomar medidas para que esse cenário não ocorra.
Em quanto tempo poderemos chegar nesses números?
Isso dependerá das respostas adotadas no Brasil e de como a população irá respeitar as recomendações. O Ministério da Saúde está tomando as decisões corretas, ainda que a presidência não esteja colaborando, e, muito pior, não esteja respeitando as recomendações. Se a orientação é isolamento físico, não é para ir para bar e para praia. Violar essas recomendações é um ato egoísta e irresponsável.
‘A postura do presidente? Péssima e irresponsável.’
O Brasil pode ser a próxima Itália? Quais são as semelhanças e diferenças de contexto?
Novamente, depende das respostas e da aderência da população às recomendações. Os dados mostram que o isolamento físico ajuda a suavizar a curva de transmissão. A ideia não é apenas evitar casos e mortes, mas também evitar que haja uma sobrecarga nos serviços de saúde, que é o que está acontecendo na Itália. Sobrecarga nos serviços de saúde significa falta de leitos comuns e de UTI, de respiradores, e de equipamento básico (luvas, álcool etc). Significa ruptura total no atendimento com impacto na capacidade de resposta a outras doenças que estão acontecendo (no Brasil, o sarampo continua contaminando e a dengue está epidêmica). Significa um estresse enorme nos profissionais de saúde, que trabalham sem parar na linha de frente e que também acabam por se contaminar (e morrer), como aconteceu na China, na Itália e em outros locais. O Brasil tem uma vantagem comparado a outros países, o SUS. Mas o SUS não aguentaria essa sobrecarga. Veja a Espanha: colocou todos os hospitais privados sob controle do estado para responder à epidemia!
Ainda é possível reverter a situação? Quais são as medidas que devem ser tomadas imediatamente – pelo governo e pelos cidadãos – para evitar que esse cenário aconteça?
O Ministério da Saúde está tomando as decisões corretas (recomendar isolamento, lavar as mãos, reduzir eventos de massa etc.). Governos estaduais estão respondendo, mas a população ainda está aquém do que deveria. As manifestações de domingo, lideradas pelo presidente, são um exemplo de negação da ciência e de falta de responsabilidade. Uma pessoa sem sintomas pode estar infectada e, portanto, ser um agente transmissor. Isso coloca em risco a vida de muitos. Não são apenas idosos com comorbidades, são pessoas de qualquer idade com condições de saúde vulneráveis. Agora é hora de pensar no coletivo, não em si próprio.
Quais os bons exemplos – aplicáveis ao contexto brasileiro – que poderíamos trazer de outros países para a contenção da doença?
O Ministério [da Saúde] está tomando ações baseadas em ciência e no que já se observou em outros países. Os bons exemplos são respostas rápidas! Tempo é crucial. Claro que uma coisa é o governo responder, e outra é a população aderir. Aqui ainda há um problema. Mas o exemplo vem de cima, e o presidente da nação, no domingo, deu um exemplo do que não deve ser feito.
Como você avalia, de forma geral, a postura do governo Bolsonaro no combate à pandemia?
A postura do ministério é ótima e já está sendo criticada pelo presidente. A postura do presidente? Péssima e irresponsável.
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