No último dia 20, às 11h30, médicos do hospital Emílio Ribas foram até a diretoria da instituição pedir respostas diante da crise provocada pela pandemia de coronavírus. Em obras há seis anos, o hospital, referência em infectologia, vive do improviso. A UTI, por exemplo, foi terceirizada sem consulta à equipe médica.
O diretor do hospital, Luiz Carlos Pereira Junior, teria se comprometido a encaminhar as reclamações dos médicos. Mas o esforço do diretor pode não ser suficiente.
Mesmo vivendo em meio a entulho da interminável obra, o Emílio Ribas está no centro do combate à pandemia do coronavírus. O prédio foi escolhido pelo governo de São Paulo como um dos dois hospitais públicos para tratar casos graves de doentes com a covid-19 na capital. “Estamos lotados de pacientes com suspeita de coronavírus e trabalhando no improviso. A China entregou mil leitos em uma semana. Nós temos 150 que há seis anos estão na espera. Quando o governo diz que está criando leitos, na verdade ele está reabrindo os que estavam fechados”, diz Eder Gatti Fernandes, diretor do Sindicato dos Médicos de São Paulo.
São Paulo é o epicentro da pandemia no Brasil. Das 34 mortes registradas no país até essa terça, 30 ocorreram no estado, que concentra o maior número de casos confirmados – até ontem, o Brasil tinha 1891 casos. E a situação vai piorar. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que o sistema de saúde deverá entrar em colapso no próximo mês.
No Emílio Ribas, a enfermaria do oitavo andar permanece fechada e há andares em obras. Se isso já não fosse grave o suficiente para o momento, o centro de saúde, referência latino-americana em infectologia e no tratamento de outras doenças, ainda enfrenta problemas como equipamentos quebrados – como é o caso da ressonância –, despejos de obra nos fundos do hospital e funcionamento parcial de algumas áreas, como o pronto-socorro do terceiro andar. “Metade do prédio principal é nova e metade é velha. E a parte nova está ficando sobrecarregada porque todo o trabalho está acontecendo em metade do espaço disponível”, diz Fernandes. Foram problemas como esse que levaram os médicos a cobrar respostas da diretoria.
‘É um escândalo. Passamos pelo sarampo e pela febre amarela com leitos fechados. E com o coronavírus acontece o mesmo.’
Nesse cenário, não causa espanto a faixa pregada em árvores do lado de fora do hospital em 20 de março: “Emílio Ribas pede socorro. Doria, não queremos um hospital pela metade”.
A obra começou em agosto de 2013, quando o então diretor do instituto e atual coordenador do Centro de Contingência de Coronavírus do Estado, David Uip, anunciou o começo de uma obra de reestruturação e ampliação do hospital “que, desde o século 19, está na vanguarda da medicina brasileira”. A reforma deveria ter sido concluída em 2016. Seis anos depois, ainda não terminou. E o coronavírus levou o problema para outro patamar.
A pandemia ainda não convenceu o governador de São Paulo, João Doria, a acelerar uma solução para o Emílio Ribas. O governador já decretou estado de calamidade pública e restringiu o comércio. Mas o hospital referência – único ao lado do Hospital das Clínicas – segue funcionando pela metade.
A covid-19 é a terceira crise humanitária que os profissionais do hospital, com mais de um século de atuação, enfrentam em condições adversas desde o início da obra, que já custou de R$ 160 milhões, segundo informação do site da Assembleia Legislativa de São Paulo.
Com o coronavírus, surgiu um novo problema: o contágio da equipe médica. Do time de Fernandes, três médicos estão afastados com sintomas de gripe. “Isso vai ser uma constante daqui para frente”.
“É um escândalo. Passamos pelo sarampo e pela febre amarela com leitos fechados. E com o coronavírus acontece o mesmo, só que em uma escala muito pior, porque se trata de uma pandemia. Não sabemos a razão, mas o governo foi deixando o Emílio Ribas, que sempre foi vanguarda, de lado. Não querem que a gente apareça. Porque se a gente aparecer, vai mostrar a dificuldade de planejamento do governo do estado”, diz Fernandes. O médico foi o único profissional que aceitou conversar comigo. Funcionários temem perseguições por parte da diretoria, que cortou diálogo sobre a reforma, e da Secretaria de Saúde.
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A situação entre equipe médica e direção-governo azedou de vez em junho do ano passado, quando a infectologista Marianna Lago entregou uma petição com 226 mil assinaturas na Assembleia Legislativa de São Paulo para salvar o Emílio Ribas. “Estamos trabalhando em condições desumanas, na sujeira, com papelão nos pisos”, ela disse ao portal da Alesp. “Leitos de internação foram fechados e o setor de patologia (essencial para diagnósticos) está em processo de fechamento por falta de funcionários. Estamos sendo ignorados pela Secretaria da Saúde do Estado e precisamos de ajuda!”, completou. Outra médica, Luciana Marques, presidente da Associação dos Médicos do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, disse que vivemos uma “crise de saúde pública no estado”.
A petição foi entregue ao deputado estadual Carlos Giannazi, do Psol, em audiência pública. Tentamos contatar Lago, Marques e Giannazi durante toda a semana, mas não teve retorno.
Em agosto do ano passado, o promotor Arthur Pinto Filho, do Ministério Público paulista, instaurou um inquérito civil para apurar a denúncia. Primeiro, Filho questionou a própria secretaria sobre a reforma. O ofício com o retorno não dá respostas concretas sobre a obra que ainda não teve fim. O documento público diz que o objetivo da obra “é dobrar a nossa capacidade, mormente quando os estudos epidemiológicos já sinalizavam pelo aumento de moléstias infecciosas”. E que o responsável pela gestão da obra é o “competente Grupo Técnico de Engenharia”, órgão técnico da Secretaria de Estado de Saúde. Quanto à finalização da obra, diz apenas que uma nova fase seria iniciada em 2019. “A resposta é bastante curiosa. Mostra que (o governo) não tem menor governabilidade sobre as obras e a menor ideia do que está acontecendo”, diz Filho.
Em fevereiro deste ano, Filho pediu dois relatórios sobre a situação do Emílio Ribas à Vigilância Sanitária Estadual e ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo. “Não é só a questão do coronavírus. O hospital é uma referência e é fundamental para São Paulo e para o país”. Procurada, a vigilância não retornou o pedido de entrevista até o fechamento desta reportagem. Em nota, o Cremesp informou “que a sindicância instaurada para investigar este caso tramita sob sigilo determinado por lei”.
“Vamos ver se a gente sobrevive ao coronavírus”, me disse Fernandes, no mesmo dia em que o governador João Doria decretou estado de calamidade pública por conta do coronavírus.
Procurada, a Secretaria de Saúde não respondeu até o fechamento desta edição.
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