O YouTube reagiu depois que o ideólogo Olavo de Carvalho disse em um vídeo que “não há um único caso de morte por coronavírus”, fechando os olhos para as quase 15 mil pessoas que já morreram por complicações da doença no mundo. A maior plataforma de vídeos do mundo fez o mínimo: tirou o vídeo do ar. A alegação é de que ele violou as regras da plataforma. Segundo a empresa, é essencial “encontrar conteúdo de confiança neste momento. Por isso, continuaremos garantindo que o YouTube ofereça informações precisas aos usuários”.
Só que o enorme ecossistema de extrema direita na rede, que reverbera o discurso olavista, continua no site. Pior: ganhando dinheiro com isso. O Intercept analisou dez canais de extrema direita que explodiram com a ascensão do bolsonarismo. Todos eles, como de costume, produzem um enorme volume de conteúdo que ressoa as notícias do dia com um viés bolsonarista – e o coronavírus é um dos assuntos em alta. Pelo menos seis seguem ganhando dinheiro com anúncios em vídeos, mesmo depois do YouTube ter decidido reduzir exibição de anúncios em vídeos relacionados à covid-19 que não sigam regras de difusão de informações confiáveis sobre a doença.
Por causa da crise e do potencial devastador da desinformação em tempos de pandemia, o Google, dono do YouTube, decidiu limitar a monetização dos vídeos que falassem sobre coronavírus no dia 11 de março. A empresa afirmou que a limitação era uma maneira de proteger usuários e dar aos anunciantes “confiança sobre onde seus anúncios rodavam”. Dias depois, diante das reclamações, a empresa voltou atrás. Liberou, então, a monetização de alguns vídeos em canais específicos e que seguem algumas recomendações. Entre elas, a empresa diz que o conteúdo deve ser checado, usar fontes confiáveis, como a Organização Mundial de Saúde, e não se aproveitar da pandemia para vender ou fazer promoções de produtos e serviços. Quem ignora os requisitos, no entanto, não foi totalmente prejudicado.
Os canais de direita que visitamos aprenderam a burlar a regra do YouTube produzindo conteúdo tangente sobre a pandemia, evitando palavras-chave. Assim, continuaram reverberando a narrativa negacionista do presidente e de seus seguidores sem abrir mão da grana dos anunciantes.
É o caso, por exemplo, da Folha Política, um dos mais influentes canais de direita no YouTube. O canal está produzindo conteúdo intensamente sobre a pandemia. Propaga teorias conspiratórias sobre a China, como a de que a responsabilidade pela disseminação do vírus é do comunismo – uma informação bem questionável, já que, embora a epidemia tenha começado a se espalhar no país, passou a arrefecer graças às medidas de contenção do governo chinês.
A Folha Política também repercute o apelo do senador Flávio Bolsonaro para que políticas de restrição de circulação de pessoas sejam repensadas – ainda que isso contrarie recomendação da OMS, uma das fontes confiáveis citadas pelo Google. As duas publicações não poderiam, em tese, ganhar dinheiro com esse conteúdo, segundo as regras do YouTube. Quando rodamos os vídeos, apareceram propagandas das empresas MSD, uma farmacêutica, e da construtora Helbor.
Outro vídeo, postado no último domingo, com mais de 1 milhão de visualizações, exibe o título garrafal: “Itália agradece a Bolsonaro por ação emergencial”. Não é bem assim: quem agradece, na verdade, é o deputado italiano Luis Roberto Lorenzato, nascido no Brasil e bolsonarista convicto, que fez um longo vídeo agradecendo o governo brasileiro pelo envio de máscaras e equipamentos de ventilação à Itália. O ministério da Saúde não confirmou a informação. Se realmente enviou, o Brasil deixou de olhar para dentro de casa: por aqui, profissionais já denunciam a falta desse tipo de material. Mas o vídeo, é claro, não falou sobre isso. Propagandas do Banco do Brasil apareceram quando assistimos ao vídeo.
Com 1,2 milhão de seguidores, o canal Verdade Política propaga a teoria de que a crise mundial provocada pela covid-19 foi criada pelos “socialistas”. A informação é falsa: um estudo comprovou que a origem do vírus é natural. Com 27 mil views, o vídeo, publicado há pouco mais de 10 dias, exibe banners da Abbot, uma empresa de produtos de saúde, mesmo violando as regras do YouTube para a monetização de vídeos sobre a doença.
O TopTube Famosos, com 972 mil seguidores, segue a mesma linha. O vídeo “Governo agiganta, coloca China no seu lugar e acaba com mimimi da oposição”, publicado em 19 de março, foi visto por 132 mil pessoas. Ele repercute as falas do deputado federal Eduardo Bolsonaro, que acusou o Partido Comunista chinês de espalhar a epidemia pelo mundo – causando uma crise diplomática com o maior parceiro comercial do Brasil. A informação é imprecisa: embora o governo chinês tenha tentado abafar a crise no seu início e demorado a agir, não há provas de que o governo chinês espalhou a epidemia de propósito, como sugeriu o deputado. Embora propague uma teoria conspiratória relacionada à pandemia, o vídeo, que usa a hashtag #VírusChinês para se promover, exibe anúncios – o hospital de elite Sírio Libanês é um dos que roda propagandas no canal. Mais um caso no qual o YouTube premia uma informação não confiável com dinheiro, contrariando suas próprias regras.
Juntos, esses canais alcançam um universo de milhões de pessoas – e o YouTube parece não estar fazendo o suficiente para impedir que mentiras se espalhem entre um público dessa dimensão. No total, dos dez canais de extrema direita que analisamos, seis ganham dinheiro com monetização. Folha Política, Seu Tube, CristalVox, Brasil Acima de Tudo, Top Tube Famosos e Verdade Política exibem anúncios de empresas como Helbor, Seara, League of Legends, Dell e até da Justiça Eleitoral.
Desmonetizaram, mas não muito
Segundo o Google, uma das razões para que vídeos estejam conseguindo burlar as regras pode ser o fato de que, durante a pandemia, a empresa está trabalhando com um número reduzido de revisores, os profissionais que fiscalizam se os conteúdos violam os termos da empresa.
O Google permite que canais com mais de mil seguidores sejam monetizados – isto é, exibam anúncios. Uma vez cadastrado no sistema, o youtuber cede espaço em seus vídeos para que a plataforma veicule as propagandas. O youtuber não escolhe quem irá anunciar: é o Google que exibe anúncios direcionados de acordo com o histórico e o perfil de quem está assistindo. Os anunciantes também não escolhem diretamente quem vai exibir suas propagandas – embora possam vetar determinados sites e assuntos.
Os lucros são divididos entre o YouTube e o produtor de conteúdo. É por isso que, para o Google, é interessante ajudar os youtubers a bombarem seus canais. O YouTube desenvolveu algoritmos eficientes para recomendar conteúdo e incentivar que as pessoas gastem o maior tempo possível na plataforma. Deu certo: em 2017, a empresa bateu a meta de 1 bilhão de horas assistidas por dia.
Nós já mostramos como, dentro dessa lógica, conteúdos apelativos e extremistas se tornaram máquinas de visualização e monetização mais eficientes – e os youtubers aprenderam direitinho como fazer vídeos que bombem. Organizados em rede, recomendando uns aos outros e produzindo conteúdo sobre os assuntos mais comentados, youtubers de direita conseguem ditar os rumos das conversas nas redes e ganhar muito dinheiro com isso.
Não por acaso há tantos canais de direita entre os que explodiram nas eleições do ano passado. Entre os 100 canais que mais cresceram no período no ranking Em Alta, que exibe o conteúdo que está bombando no momento, 15 são de direita. Oito deles estão entre os vinte principais canais, e a metade ganha dinheiro com anúncios. Em uma estimativa conservadora, feita com o SocialBlade, calculamos que esses canais monetizados faturam juntos, no mínimo, US$ 9,5 mil por mês com anúncios. Com o dólar a R$ 5, cerca de R$ 47,5 mil mensais. Nada mau.
Atualização: 25 de março de 2020, 15h50
Depois da publicação deste texto, a construtora Helbor afirmou que não comprou anúncios no Folha Política ou em outra organização política. Segundo a empresa, os anúncios poderiam ter sido vistos “em diferentes sites e endereços do Youtube que por ventura visitaram, devido exclusivamente às suas preferências pessoais registradas na internet”. O texto foi atualizado para deixar mais claro como funciona o sistema de anúncios do YouTube, em que as propagandas são exibidas de acordo com o perfil do leitor.
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