As ruas do meu bairro, na zona norte do Rio, amanheceram diferentes ontem, dia seguinte ao do pronunciamento de Jair Bolsonaro. Aparentemente, o presidente conseguiu o que queria: com desinformação, manipulação e meia dúzia de clichês, ele colocou a população da periferia contra as medidas de contenção que são necessárias para frear a propagação do novo coronavírus.
Meus vizinhos são, em grande parte, trabalhadores informais. Está todo mundo muito preocupado com a falta de trabalho, de dinheiro e vendo o estoque de comida na despensa e na geladeira sumindo rapidamente.
Ontem eu saí de casa para comprar umas coisas de que precisava. Encontrei todo o comércio aberto. Passando por bares, padarias, oficinas mecânicas, consegui ouvir as conversas. Não tinha outro assunto: todos falavam sobre o coronavírus e o discurso do presidente.
Até ontem, poucas lojas abriam por aqui. E tinha menos gente na rua que de costume. Moro numa área simples, entre a favela e o asfalto. Comércio, aqui, são lojinhas de roupas, alguns bares, lanchonetes e oficinas mecânicas e, claro, pequenas igrejas evangélicas.
Depois dos ataques de Bolsonaro à prevenção da saúde pública, encontrei calçadas mais cheias – com muitos idosos, inclusive, a maioria homens. Não tanto como antes da epidemia, mas deu para perceber que muita gente se sentiu autorizada a retomar a vida habitual pelo discurso do presidente. Afinal, se a maior autoridade do país está dizendo para geral ir para a rua, quem sou eu para dizer o contrário?
Numa das oficinas, um dos mecânicos falava, se referindo ao presidente: “Ele está certo, os grupos de risco são os velhos, mais de 60 anos. Não tem porque quem é novo ficar em casa”. “Tu não estás vendo, os patrões tão demitindo sem dar um real. Fica sem trabalhar para tu ver”, concordou um colega. Até antes da fala de Bolsonaro, a oficina estava fechada. E tinha de estar – era ordem da prefeitura do Rio.
Domingo passado, o prefeito Marcelo Crivella, do PRB, bispo da Igreja Universal, unha e carne com Bolsonaro, havia determinado que comércio não essencial – ou seja, qualquer coisa que não fosse mercado, padaria e farmácia – ficasse fechado a partir da terça, 24.
Mas o prefeito entrou na do presidente. Ontem mesmo, liberou todo o comércio a reabrir a partir de amanhã, sexta. Ele está de olho na reeleição. E a saúde pública, como fica? Estamos vendo o que aconteceu na Itália por causa da resistência em manter os moradores dentro de casa. Aqui vai ser igual, Bolsonaro? E aí, Crivella?
A irresponsabilidade do presidente mexeu com a preocupação da periferia com o bolso e panela vazios. Faz dias que tenho ouvido gente desesperada com as contas chegando. É, de fato, uma grande preocupação por aqui, onde a maioria é autônomo. Para quem levanta o sustento da casa trabalhando em troca de diária, um dia parado já é muito. Bolsonaro sabe disso, e está usando a população encurralada entre o medo de morrer de fome ou de coronavírus como arma política. É criminoso.
Governos de muitos países têm buscado proteger os trabalhadores pagando, mesmo que parcialmente, seus salários ou abrindo linhas de auxílio. Por aqui, tudo que vejo o presidente fazer é tentar se eximir de qualquer culpa do que venha a acontecer.
Enquanto isso, nos grupos de WhatsApp e Facebook dos bairros da zona norte, muitos voltados ao combate ao coronavírus, circulam mensagens como essa:
“A quarentena é certo? É! A quarentena é errado? É! Bolsonaro está certo? Está! Bolsonaro está errado? Está! É fácil defender a quarentena em uma casa confortável, com TV, PC, armário cheio, sabendo que se não trabalhar vai haver salário. É difícil defender quarentena quando o armário já está vazio e que se não trabalhar não tem salário, trabalha de manhã pra comer de noite e o filho tá pedindo iogurte.” (sic)
Não tenho como não falar das igrejas evangélicas. Por aqui, nenhuma delas fechou as portas. Pelo contrário, o discurso dos pastores incentivou os fiéis a cumprir normalmente a rotina. A dona da mercearia onde compro pão, evangélica ardorosa e eleitora do Crivella, não implantou qualquer medida de prevenção ao coronavírus. Ali não tem álcool gel, máscaras, luvas descartáveis ou orientação para manter distância na fila. Perguntei a ela se tinha medo. “Não vou fechar, não. E isso não vai pegar na gente porque o brasileiro é um povo de muita fé”.
Até terça, as vans do transporte informal circulavam com poucos passageiros. Nos ônibus, tinha lugar para todo mundo ir sentado. Mesmo diante da incerteza do dia seguinte, as pessoas acreditavam que sair da quarentena era pôr em risco a vida delas e da família. E a indignação quanto à falta de dinheiro gerava a cobrança de respostas dos governos, como deve ser.
Mas nesta quarta-feira já ouvi na rua que “quarentena é coisa de playboy” e que a “crise na economia e o desemprego vão ser maiores que o coronavírus”. Por aqui, o discurso irresponsável do Bolsonaro pegou. Ele venceu. E quem vai perder somos nós.
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