João Filho

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Coronavírus: existe uma lógica genocida por trás do falso dilema entre a economia e vidas

Na ânsia de proteger os negócios, o empresariado brasileiro ignora a experiência internacional, a ciência e coloca a vida humana em uma célula de Excel.

A man walks past a graffiti of Brazilian President Jair Bolsonaro wearing a face mask in downtown Rio de Janeiro, Brazil, on March 24, 2020 during the coronavirus COVID-19 pandemic. - The Rio de Janeiro state government is requesting people not to go to the beach or any other public areas as a measure to contain the coronavirus pandemic. (Photo by Mauro PIMENTEL / AFP) (Photo by MAURO PIMENTEL/AFP via Getty Images)

A crise do coronavírus

Parte 48


Coronavírus: existe uma lógica genocida por trás do falso dilema entre a economia e vidas

Foto: Mauro Pimentel/AFP via Getty Images

“A vida em primeiro lugar, mas, sem emprego, a sociedade enfrentará um problema tão grave quanto a doença: a miséria”, regurgitou Bolsonaro. É mais uma ideia estúpida, sem nenhum sentido lógico, que condiz plenamente com o que se espera do nosso futuro ex-presidente.

Ele fala como se a miséria já não fosse um problema brasileiro. A sua existência não é só uma obviedade como vem se intensificando com as políticas anti-pobre comandadas pelo seu governo, principalmente as medidas ultraliberais de Paulo Guedes na economia. Todas as políticas de enfrentamento da miséria, como Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, o BPC, por exemplo, vêm sendo desidratadas. Para salvar o caixa dos empresários durante a pandemia, o governo chegou a criar uma medida provisória autorizando a suspensão de salários por quatro meses. Apesar da revogação desse ponto, o texto continua ferrando o trabalhador: permite corte de 25% do salário, sem redução de carga horária e sem seguro-desemprego.

Essa preocupação repentina com a miséria expressa na fala do presidente, claro, é estratégia demagógica para esconder a real intenção do governo: proteger os interesses das elites que patrocinaram a eleição da extrema direita.

Seguindo uma estratégia anunciada por Donald Trump, que desistiu dela no dia seguinte, Bolsonaro contrariou as recomendações do seu ministro da Saúde e defendeu o chamado isolamento vertical — apenas idosos e pessoas do grupo de risco seriam isolados, e o resto da população poderia circular normalmente. A tese que move essa ideia é a de que os impactos econômicos decorrentes do isolamento total causarão mais mortes que o próprio coronavírus e, por isso, seria necessário encontrar um equilíbrio. A experiência de outros países mostra como essa ideia é estapafúrdia. Desde o início da epidemia na China, o governo brasileiro teve dois meses para analisar quais medidas deram certo no mundo. A medida mais óbvia, que virou um consenso entre os epidemiologistas do mundo, é justamente o isolamento horizontal (total).

Todos os países que adiaram o isolamento total da população demoraram mais para conter o avanço da contaminação. A Itália inicialmente testou o isolamento vertical, mas desistiu quando viu o vírus se espalhando com muito mais rapidez do que nos países que adotaram o isolamento horizontal. O prefeito de Milão, na Itália, reconheceu que errou ao apoiar a campanha “Milão não para”, que incentivava os moradores da cidade a viverem normalmente, mesmo com a pandemia. Segundo ele, há um mês “ninguém ainda havia entendido a virulência do vírus”.

Nas redes sociais, os bolsonaristas encamparam campanha de nome parecido: #OBrasilNãoVaiParar. A hashtag é o lema de uma campanha publicitária na qual o governo federal está investindo R$ 4,8 milhões. Supostamente preocupado em combater a miséria, Bolsonaro irá incentivar os brasileiros a voltar à vida normal, o que, na prática, levará muitos deles à morte.

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A negligência dos italianos levou o sistema de saúde do país entrar em colapso e tornar o país líder no ranking de mortos pela doença. Bolsonaro tem plena ciência do fracasso dessas medidas e, mesmo assim, pretende adotá-las. As vidas que poderiam ser perdidas com o isolamento vertical entrariam na conta como mero efeito colateral de uma nobre ação para salvar a economia. Isso tem nome: necropolítica.

“A vida vem em primeiro lugar, mas” é uma frase de quem não considera a vida humana um valor absoluto. Claro, nós estamos falando do político que faz arminha com a mão, que revela publicamente seu desejo de metralhar adversários políticos e que disse que a ditadura militar deveria ter matado uns 30 mil. A frase soa como se a economia não fosse uma atividade humana, mas um deus a ser louvado e protegido, assim como seus apóstolos – os grandes empresários. A vida em primeiro lugar, mas o deus mercado acima de todos. Esse deus não se importa em sacrificar vidas para se proteger. Ainda mais se forem das pessoas mais vulneráveis às complicações do vírus, como as idosas, que participam menos da atividade econômica, ou de pobres, cuja mão de obra pode ser facilmente substituída pela de milhões de outros pobres desempregados. Existe uma lógica genocida por trás da fabricação desse falso dilema.

Há também uma lógica anticiência. Acaba de ser divulgado um estudo de economistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e do FED (o banco central americano) sobre a pandemia da gripe espanhola em 1918. A conclusão é a de que as cidades que tomaram medidas drásticas mais cedo, como o isolamento total, além de reduzirem o número de mortos, tiveram suas economias menos prejudicadas em comparação com as que não tomaram. Não sejamos ingênuos imaginando que uma pesquisa patrocinada pelo governo americano convencerá Bolsonaro. Em tempos de terraplanismo no poder, uma pesquisa científica tem praticamente o mesmo valor que um vídeo circulando no WhatsApp de um médico picareta chamando o coronavírus de “gripezinha”.

Preocupados em conter maiores perdas das suas fortunas, vários grandes empresários e pastores aproveitaram a quarentena para gravarem vídeos demonstrando seu desapego à vida (alheia) humana. Roberto Justus, por exemplo, se colocou radicalmente contra o isolamento total, apelando para o falso dilema. Junior Durski, da rede de restaurantes Madero, também disse que “não podemos parar por conta de cinco ou sete mil pessoas que vão morrer”. Na ânsia de proteger seus negócios, o empresariado brasileiro ignora a experiência internacional, a ciência e coloca a vida humana em uma célula de Excel. As mortes de cinco ou sete mil idosos ou pessoas já acometidas por outras doenças não causarão nenhum impacto no mercado de trabalho. É esse o tipo cálculo que é feito por mentes perturbadas que acreditam possível que uma sociedade doente seja produtora de uma economia pujante.

Desde o início da pandemia, está claro que Bolsonaro age norteado pela missão de proteger suas bases eleitorais. Isso ficou ainda mais evidente quando, em reunião online com o governador João Doria para tratar da pandemia, o presidente decidiu lavar a roupa suja da última eleição com seu ex-aliado. Tanto a MP que ajuda os empresários quanto o decreto que liberou os cultos religiosos mostram que a prioridade do governo durante a pandemia é a contenção dos danos nos lucros de empresários e pastores. Enquanto as principais ações tomadas pelos governos no mundo — inclusive nos EUA de Trump — para conter o aprofundamento da crise foram no sentido de ajudar os mais pobres, aqui foram para ajudar os bancos e o alto empresariado.

Depois do presidente defender o isolamento vertical, o vice-presidente, Hamilton Mourão, correu para desmenti-lo e disse que a posição do governo é uma só: isolamento social e confinamento em massa. Bolsonaro, claro, não deixou por menos e declarou “o presidente sou eu. Os ministros seguem minhas recomendações”. Disse ainda que o ministro da Saúde já está convencido de que o isolamento vertical é a melhor estratégia. Esse bate-cabeça é uma síntese de como o presidente trata a epidemia: na base do improviso, negando a ciência, relativizando vidas humanas, mas sempre protegendo os interesses dos mais ricos.

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