Por estar com uma infecção desconhecida que teme ser coronavírus, a soteropolitana Cíntia Silva de Deus vive isolada da própria filha em um apartamento de 25 m². Todas as noites ela observa se a criança está respirando ao dormir e só tem contato com a filha usando máscara e luvas. Ela teme que a menina de oito anos seja infectada com a doença, já que tem problemas respiratórios e está no grupo de risco. A professora e estudante de pedagogia, de 31 anos, é moradora do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo, o Crusp, que abriga cerca de 1.600 estudantes. Junto de outras onze famílias — formadas majoritariamente por mães solo —, ela vive no bloco conhecido como “bloco das mães”. Há ainda cerca de 50 mães vivendo com filhos em outros blocos da universidade.
Construído para abrigar atletas dos Jogos Pan-Americanos de 1963, a moradia estudantil da melhor universidade da América Latina, segundo a consultoria britânica Quacquarelli Symonds, parece ter parado naquela década. Os estudantes de baixa renda vindos de fora de São Paulo ou de bairros da periferia que conseguem uma vaga ali são confrontados com uma realidade cheia de rachaduras, vazamentos e riscos de incêndio.
A situação é ainda mais difícil para as alunas que vivem com os filhos, já que as mães precisam inspirar calma em suas crianças. Em meio à pandemia de covid-19, a condição ganha contornos ainda mais distópicos, uma vez que, segundo os moradores, a universidade os abandonou à própria sorte. Conversei com Cíntia, que há dois anos preside a Comissão de Mães do Crusp, no fim da semana passada. Ela detalhou a rotina angustiante da quarentena dessas estudantes. O relato foi editado para fins de clareza.
Se fosse para traduzir o que estou sentindo agora, eu diria que estamos vivendo um filme de terror. Desde que recebemos a informação do primeiro caso confirmado de coronavírus na USP, em 11 de março, o bloco das mães, onde eu vivo, entrou em isolamento total aqui no Crusp, seguindo as recomendações oficiais. Nosso bloco é formado por 12 apartamentos que ficam no térreo, mas existem cerca de outras 50 mães morando em apartamentos comuns.
As medidas de isolamento que a gente tomou começaram a ser usadas como referência para os outros blocos. Mas não recebemos nenhuma ajuda da USP, fomos completamente abandonadas. Visivelmente, é uma situação de guerra.
Dispensamos os funcionários terceirizados para evitar riscos e para que eles pudessem cumprir a quarentena em casa. Foi uma decisão acertada, porque uma semana depois descobrimos que uma das moças que limpa aqui estava com suspeita de covid-19. Passamos a nos responsabilizar pela limpeza, mas a universidade sequer nos forneceu sabão e água sanitária.
Uma das primeiras preocupações que a gente teve foi com os medicamentos. Temos crianças com asma e pneumonia aqui, mas a universidade não deu nenhuma orientação. A assistência estudantil fechou as portas e só nos responde por e-mail. Eu mesma estou com um quadro de infecção, sinto dor no corpo e de cabeça. Preciso tomar antibiótico por dez dias, porque estou com a garganta inflamada, mas não sei exatamente o que tenho. Os médicos só fazem exame em quem chega com falta de ar e em quem precisa ser internado. Tive que me afastar das aulas que dou para o ensino fundamental e médio. Os alunos gostam muito de abraçar, seria uma tragédia.
Além disso, tenho uma filha de oito anos que depende mim, não posso ficar no hospital. Estou evitando contato com ela, dentro do meu próprio apartamento. No ano passado, ela operou amígdala, adenoide e tímpano. Fizemos um exame no dia 17 de março e descobrimos que as amígdalas aumentaram o dobro do tamanho, o que dificulta a respiração. Então, minha filha não pode ficar doente. Eu vivo em pânico. Nem durmo direito vendo se ela está respirando, medindo a febre. A vida virou uma luta para manter minha filha viva no meio de uma pandemia.
E aí tem a questão emocional também, já que estamos evitando nos tocar. Ela chora, reclama, fica brava, porque quer carinho, quer dormir junto, mas não dá. Passamos a nos cumprimentar com um gesto. Do ponto de vista psicológico, é bem triste. Também porque, apesar de termos o corredor e uma área comum, as crianças estão isoladas umas das outras. Elas ficam dentro dos apartamentos de 25 m². É um processo de sofrimento complicado. Isso porque já tiveram dois casos de covid-19 na creche da USP, onde nossos filhos estudam. Algumas deles tossem, mas não temos como saber qual é a real situação, uma vez que a universidade não disponibiliza nem um agente de saúde.
O abandono ficou mais evidente agora, mas ele não é de hoje. Teve uma vez que uma das crianças fez uma operação séria na coluna. A mãe, que tem mais duas crianças em casa, além do filho operado, precisava entregar a dissertação de mestrado, mas não tinha como terminar porque não temos wi-fi liberado. Eu supliquei à superintendência para olhar por essa mãe, que está sozinha, implorei para começarem a fazer o cabeamento da internet no nosso bloco. Mas eles disseram que a gente devia usar o computador na sala de estudos. Agora, como uma mãe vai deixar três filhos sozinhos para ir ao laboratório à noite? Isso prova que a universidade não tem a mínima noção do que é ser mãe dentro de uma instituição como essa. Não deixamos nossas crianças sozinhas, consequentemente nossa dificuldade de estudar acaba sendo maior do que a dos outros estudantes que já passam por situações terríveis.
Mesmo agora, durante a pandemia, alguns professores estão dando avaliações e trabalhos com prazo. E nós continuamos sem wi-fi. A Superintendência de Assistência Social diz que as paredes dos prédios são muito grossas, e que exigem um projeto de internet diferente que está “em desenvolvimento”, mas não deu nenhum prazo. Enquanto isso, falam para a gente continuar usando a sala de estudos. Mas como ir até lá diante de um surto pandêmico? Não é uma medida de segurança. É uma situação cada vez mais degradante.
O mínimo de dignidade
Até para comer é um problema. A USP fechou dois dos quatro bandejões — inclusive o central, que fica mais próximo. Se quisermos comer, temos que ir até a Química, que é longe. De qualquer forma, não podemos sair, porque não queremos nos expor ao risco. Outro dia, num quadro de desespero, uma mãe foi até lá e negaram comida para a filha dela. Ela me ligou chorando, mas eu não pude ajudar. É uma situação bem precária.
Temos tentado protocolar cartas, à medida em que as demandas vão surgindo. Prometeram que colocariam dispensers de álcool em gel nos prédios, mas depois disseram que o fornecedor não tinha o produto [após a conversa, Cíntia informou que os dispenser foram instalados no começo desta semana, mas que o produto acabou e não foi reposto].
No dia 24 de março, eu mandei um documento para a superintendência informando mais uma vez sobre a gravidade da situação, expondo o abandono. No dia seguinte, depois que saíram algumas reportagens falando da situação geral do Crusp, me chamaram dizendo que iam ceder a algumas exigências, como o fornecimento de alimentação. Os seguranças da USP vieram trazer as marmitas aqui. Eu fiquei responsável pela distribuição, mas não enviaram nada para a gente usar. Sorte que eu tinha touca e luva em casa. Já no segundo dia de entrega, percebemos que eles estavam enviando comida apenas para as crianças, como se as mães não precisassem se alimentar. Para piorar, as marmitas estão vindo reduzidas, ou seja, ainda assim, está faltando.
Falaram que nos dariam produtos de limpeza, mas dispensaram os funcionários da zeladoria e forneceram só três sacos de lixo, um sabão neutro de 500 ml e um litro de água sanitária. Isso para todo o período de pandemia. Chega a ser criminoso.
É um despreparo geral. Uma situação mais caótica do que a outra. Nunca vivenciei uma situação em que os servidores estejam tão perdidos. A gente espera que a universidade apresente sugestões, mas ela cruza os braços e pergunta o que tem que fazer. Ora, quem deve conduzir a coisa pública? Eles não têm a mínima ideia do que fazer, ficam esperando para ver como o aluno vai reagir. Por isso, precisamos pressionar para podermos nos alimentar e ter um mínimo de dignidade.
Amor de mãe
Como parte da Comissão de Mães, precisamos estar preparadas para dar apoio moral e psicológico, mas é complicado, porque também estamos diante desse quadro de vulnerabilidade. Eu própria preciso me controlar para conseguir atender às demandas. Agora mesmo uma mãe está me mandando mensagem perguntando sobre a distribuição de alimentos. Não podemos nos esquecer também que temos estudantes deficientes e que eles não estão recebendo alimentos em casa. Acabam precisando ir até o bandejão mais distante. Então, até que ponto realmente estamos seguros?
Até porque, inevitavelmente, precisamos manter algum contato com as pessoas de fora. Meu namorado, por exemplo, é enfermeiro e estudante aqui da USP. Ele segue todos os protocolos de segurança para conseguir nos ajudar. Foi ele quem me salvou quando apresentei o quadro viral, com a ajuda da minha irmã, que é médica no Rio Grande do Norte. Ele filmou minha garganta e mandou para ela analisar ao mesmo tempo em que tentava me acalmar, mesmo estando em outro estado. Eles entraram imediatamente com a medicação porque a dor era muito grande, e eu nem conseguia levantar da cama. Depois, consegui ser atendida por um médico daqui, que manteve o mesmo tratamento.
Foi assim que minha irmã percebeu a gravidade da situação aqui em São Paulo e ligou o alerta por lá. Ela tentou encomendar equipamentos de segurança daqui, mas já não conseguiu achar. Enquanto isso, explodiu o surto em Salvador, onde mora meu pai, que é diabético. Insistimos para ele ir para o interior. Eu ia para o Rio Grande do Norte ficar com minha irmã, mas como ela está na linha de frente, seria um risco.
Essa rede de apoio é muito importante, já que a Guarda Universitária, por exemplo, se recusa a levar suspeitos infectados com coronavírus para o Hospital Universitário. As empresas de aplicativos também não aceitam corridas que vão para lá. Eu me pergunto: “Como faríamos se fossemos diagnosticadas?”.
Não são todas as mães que têm o amparo de companheiros. Das 12 famílias que vivem aqui no bloco, por exemplo, oito são mães solo. Mulheres que precisam de ajuda para que alguém compre um medicamento, ou coisa do tipo. Não é difícil ver uma mãe chorando pelo canto.
O filho de uma das vizinhas foi internado há 15 dias. Essa mãe está em pânico. Ela tem mais uma filha que fez uma cirurgia na coluna, ano passado, e que tem um quadro alérgico, além de dificuldade respiratória, como minha filha. Ela tem três filhos, dois estão no grupo de risco. Então, é uma situação em que a gente não pode nem morrer, porque nossas crianças dependem de nós. São mães uspianas que dão a vida pelos filhos.
Até buscamos instituições internacionais para ver se alguma passou por situação parecida com a nossa, para podermos nos apoiar, mas não encontramos experiências de estudantes isoladas com crianças.
Ninguém imagina que o sonho de estudar na maior universidade pública da América Latina se transforma nisso. É um balde de gelo — não é nem de água fria. A única coisa que queremos é que tudo isso volte ao normal o quanto antes e que possamos ser vistas como as estudantes, cientistas e mães que somos.
* Questionada sobre o relatado pelas mães, a USP informou que tem distribuído kits de limpeza a todos os moradores, contendo água sanitária, detergente e sacos de lixo. “Esta semana (30/03), o kit vai ser complementado com álcool gel (um por apartamento), limpador multiuso, desinfetante e sabão em pedra”. A USP disse ainda que foram instalados dispensers de álcool-gel em locais estratégicos. A Superintendência de Assistência Social da universidade também afirmou que, dentro das limitações impostas pela pandemia da covid-19, tem procurado atender a todas as demandas dos moradores no que tange à alimentação, limpeza, acesso à internet, segurança e serviço social e que há um enfermeiro à disposição para fornecer informações e orientações aos moradores do Crusp. Sobre os relatos de dificuldade das mães de conseguirem contato com a administração da universidade, afirma que o isolamento social aplica-se também aos funcionários da superintendência, mas que têm atendido a todas as demandas por e-mail.
Atualização – 1 de abril, 15h
Este texto foi atualizado para acrescentar o posicionamento da USP.
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