O pai de Vivian está em coma. Idoso, ele deu entrada tossindo em uma unidade de pronto atendimento em São Mateus, na zona leste de São Paulo, no dia 22 de março e, apesar de ter sido isolado da família por conta da suspeita de covid-19, não foi testado para a doença. Pouco mais de 24 horas depois, estava entubado na UTI.
A família não o vê desde então. Isolado, ele passou dias sem tratamento adequado – e isso só aconteceu depois que Vivian fez uma denúncia ao Ministério Público de São Paulo, que questionou o caso e deu 24 horas para a direção do hospital responder. Já era tarde.
“Agora é o corpo dele que não responde. Se o tratamento chegou tarde, a gente nunca vai saber”. Enquanto ela buscava por respostas, o quadro do pai deteriorou: pulmões, rins e coração pararam de funcionar.
Enquanto a dúvida se ele está contaminado ou não permanece – até o fechamento deste texto, Vivian não sabia se o pai tinha feito o teste para coronavírus –, ela sequer pôde se despedir. “Queria gravar uma mensagem de áudio dizendo que o amamos muito e que estamos torcendo por ele. Mas sem saber se está contaminado, imagino que todos estejam com medo de se aproximar dele. É justo ele morrer abandonado e sozinho?”
O relato foi editado para fins de clareza.
‘Ele está entubado. Sedado. Sinto muito’. O estado do meu pai era gravíssimo. Foi isso o que a enfermeira tentava me explicar. Mas como eu poderia entender? De um dia para o outro, ele entrou em colapso.
No domingo, 22 de março, sem avisar nem a mim nem a minha irmã, meus pais decidiram procurar atendimento médico. Meu pai, com 61 anos, queixava-se de uma tosse persistente. Ao lado de minha mãe, com quadro de gripe, decidiu ir até a UPA de São Mateus, na zona leste de São Paulo.
Um raio-X revelou pneumonia. Minha mãe me ligou desesperada. Corri até lá. Explicaram que os sintomas indicavam covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus. Meu pai precisava ser transferido para o Hospital Municipal Tide Setubal, também na zona leste. Em razão do risco, não pudemos acompanhá-lo na ambulância.
‘Oi, cheguei em São Miguel.’ Não sabemos como, mas meu pai conseguiu emprestado um celular e ligou para a minha mãe. Disse que estava bem e pediu para eu levar as planilhas do trabalho, assim ele não atrasaria as entregas. Ele é servidor público e estava em home office por ser diabético e hipertenso, ou seja, grupo de risco. Uma pessoa que fala ao telefone e se preocupa com o serviço parece estar bem, não é? Foi o que pensei.
‘Esse pessoal quer foder com a minha vida. Falei para eles não me mandarem para essa porra de covid. Sou diabético’.
Eu sabia que o horário de visita no hospital abria às 9h30, mas às 6h da segunda-feira, 23 de março, eu já estava lá. Não dava para ficar mais um dia sem ter notícia sobre se tinha ou não covid-19. Na calçada, encontrei pessoas reclamando por não ter informações sobre seus familiares – alguns, internados há mais de uma semana. Fiquei com medo. Um funcionário saiu e avisou ‘que dois pacientes tinham morrido’. Entrei no hospital e implorei para transferirem meu pai para o Hospital do Servidor Público Municipal, onde ele faz tratamento para doenças crônicas. A funcionária, prestativa, ia tentar porque naquele dia chegariam ‘mais casos com covid’. À tarde, a transferência foi autorizada.
Esperei do lado de fora do centro hospitalar na tentativa de ver meu pai. Vi a ambulância chegando. Um socorrista saiu de dentro do veículo xingando. Vou repetir o que ele disse porque você é jornalista e acho importante você saber: ‘Esse pessoal quer foder com a minha vida. Falei para eles não me mandarem para essa porra de covid. Sou diabético’. Respirei fundo e fui ao encontro dele. Queria saber do meu pai. O socorrista disse: ‘Seu pai está lá dentro morto, está todo fodido, com parada cardiorespiratória. E quer saber? Não vou levar seu pai porque não vou foder com minha vida. Depois, a empresa não vai estar nem aí para mim’. Fiquei desesperada. Entendo o que o médico estava sentindo. Ele também não deveria estar lá. Como meu pai, ele é diabético e não poderia ficar exposto aos riscos do coronavírus. O socorrista entrou na ambulância. O motorista, chorando, fechou a porta e me disse que deus ia preparar uma ambulância para o meu pai.
Um médico saiu do hospital para fumar e me viu aos prantos. Conversamos e ele pediu que uma enfermeira conseguisse informações sobre meu pai. ‘Ele está entubado’, disse ela.
Depois de falar com minha mãe e irmã, insisti pela transferência dele para uma UTI. Saí de lá tão sem forças que entrei no carro e comecei a orar. Dez minutos depois, ligaram: uma ambulância para fazer a transferência para a UTI do Hospital do Servidor Público, na zona sul, tinha chegado. E ninguém sabia como.
Na madrugada da terça, dia 24, meu pai deu entrada na UTI. Notícias, só durante o dia e por telefone. Fazia sentido. Aglomeração em hospital era um risco. Ligamos na manhã da terça, dia 24 de março. O aviso era outro: notícias só pessoalmente. Então eu fui.
‘Seu pai teve uma piora significativa de ontem para hoje. O pulmão dele parou’, me disse o médico. Soube também que, apesar dos sintomas típicos de covid-19, meu pai não tinha sido nem testado nem estava recebendo medicamentos para o vírus porque não tinha o diagnóstico comprovado.
Sabe quando você não consegue compreender tudo na velocidade que a outra pessoa fala? Eu estava assim. Lembro de perguntar o que eu devia falar para a minha mãe. O médico respondeu: ‘fala para ela se preparar para o pior’.
Os pulmões do meu pai pararam e eu tenho que me preparar para ele morrer, certo? Mas, antes dele morrer, eu queria que ele tivesse a chance de ser tratado pelo o que ele tem. Isso significa saber se tem ou não a doença causada pelo coronavírus. Porque se a gente não souber, provavelmente também não deixarão a gente se despedir dele. Não quero que ele morra sem a família por perto.
Não dormi naquela noite pensando o que fazer para ser ouvida. Fiz um post em uma rede social pedindo ajuda. As pessoas se solidarizaram. Contatei promotores da Comissão de Saúde e pedi ajuda para eles também. Não queria um tratamento diferenciado para o meu pai, mas que ele tivesse chances de viver. E se ele tivesse covid-19, que fosse medicado para tanto.
Nessas últimas 24 horas, mesmo sem ainda ter sido testado, meu pai passou a receber o tratamento para covid-19. Mas a situação dele mudou. Além dos pulmões, coração e rins estão severamente debilitados. Será que ele deveria ter sido testado para covid quando estava com tosse? [até a metade de março, o governo defendia testar apenas casos graves]. Será que a situação dele seria outra se tivesse sido medicado para covid-19 desde o começo? Será que vou conseguir me despedir? Não tenho resposta para nenhuma dessas perguntas. E nem sei se terei.
*Vivian, de São Paulo
A pedido da personagem, o nome foi mantido em sigilo.
Atualização: 2 de abril de 2020
O pai de Vivian faleceu nesta madrugada.
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