Enquanto todos os líderes do mundo enfrentam a pandemia do coronavírus tomando medidas com base em evidências científicas, o presidente brasileiro enfrenta com base em misticismo e politicagem barata.
Não nego a possibilidade, mas para mim é difícil enxergar em Bolsonaro um genocida frio e calculista. Não vejo frieza nem cálculo ali, apenas ignorância, medo e covardia. É um tiozão de churrasco profundamente ignorante, empoderado pelas convicções forjadas nas teorias da conspiração do WhatsApp que passaram pela curadoria de Olavo de Carvalho. Como a história recente da democracia brasileira nos conta, o país tem sido movido mais pelas convicções das suas autoridades do que pelos fatos.
Bolsonaro está convicto que o isolamento total é frescura e tem incentivado o povo a sair às ruas, mesmo com a ciência apontando que isso custará muitas vidas. No fim das contas, essa lógica transformará Bolsonaro em um legítimo genocida, ainda que involuntário, ainda que não seja frio nem calculista.
Os governadores e prefeitos, inclusive aqueles até outro dia estavam alinhados ao bolsonarismo, decidiram ignorar o presidente e estão seguindo rigorosamente as recomendações de isolamento total da OMS e do ministro da Saúde, que também ignora o seu chefe. Mas seguir as recomendações de todos os epidemiologistas do mundo deixou Bolsonaro revoltado com governadores e prefeitos. Então, em meio a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra segundo a ONU, Bolsonaro aposta pesado na guerra política interna. Enquanto todos os líderes mundiais pregam a união para o enfrentamento da pandemia, o líder brasileiro aposta na divisão e no radicalismo, visando minar seus principais adversários políticos e projetando ganhos eleitorais.
Essa semana, o ex-presidente Lula disse que “a gente tem que reconhecer que quem está fazendo o trabalho mais sério nessa crise são os governadores e prefeitos”. Citou ainda uma ação do governador paulista Doria, que mandou a Polícia Militar invadir uma fábrica da 3M para tomar máscaras de proteção, com base na lei que permite a apropriação de bem privado pelo poder público em casos de emergência. Doria talvez tenha sido o maior detrator de Lula nos últimos anos, maior talvez até do que Bolsonaro. “Bandido”, “safado”, “corrupto”, “sem vergonha”, “preguiçoso” e “covarde” foram alguns dos gracejos que o tucano direcionou para Lula nos últimos anos.
Em tempos de guerra contra uma pandemia, a guerra política-partidária deveria ser deixada de lado. Quando o sistema de saúde de um país inteiro está à beira do colapso, o tom conciliador deveria ser o único possível nas declarações de políticos e autoridades. Essa é uma obviedade elementar, mas vivemos tempos em que o óbvio é ignorado.
Temos muitas diferenças. Mas agora não é hora de expor discordâncias. O vírus não escolhe ideologia nem partidos. O momento é de foco, serenidade e trabalho para ajudar a salvar o Brasil e os brasileiros. pic.twitter.com/Iri65Dhqfr
— João Doria (@jdoriajr) April 2, 2020
No Twitter, Doria publicou a declaração de Lula e comentou “Temos muitas diferenças, mas agora não é hora de expor discordâncias”. Doria e Lula fizeram apenas o arroz e feijão do republicanismo, mas muitos jornalistas criticaram o governador. A jornalista Vera Magalhães considerou esse o “maior erro” de Doria durante a crise. Segundo ela, o governador deu “uma ótima oportunidade de associar o PSDB ao PT”.
O que a jornalista sugere? Que Doria não adote um tom conciliatório e moderado para não prejudicar suas pretensões político-partidárias? É esse tipo de cálculo político que um governador deve fazer em meio a uma guerra? “Associar PSDB ao PT” é algo que os memes das milícias virtuais pró-governo fazem todos os dias nas redes sociais. Não é um gesto republicano de dois políticos importantes que vai reforçar essa alucinação bolsonarista.
Carlos Andreazza, colunista d’O Globo, da BandNews e dono da editora Record, também considerou o gesto de Doria um erro político. Para ele, essa aproximação “servirá de escada” para o bolsonarismo acusar os governadores de oportunistas e impulsionar o “radicalismo do presidente contra as medidas restritivas corretas”. Como se o bolsonarismo precisasse de motivos para investir no radicalismo. Como se o radicalismo e a mentira não fossem os principais métodos de governo desde o primeiro dia de mandato. Deprime imaginar que jornalistas importantes estejam desprezando um gesto republicano nesses tempos em que a barbárie está instalada em Brasília e empurrando milhares de brasileiros para a cova.
Quem vive reclamando da polarização na política não tem o direito de chamar de “erro” um ex-presidente petista reconhecer o trabalho de um governador tucano. Ainda mais quando o chefe da nação encara a guerra contra um vírus mortal lançando mão de mentiras, radicalismos e politicagem rasteira. Jornalistas que cegamente alimentaram o lavajatismo, que por sua vez ajudou a colocar o bolsonarismo no poder, deveriam ser mais cuidadosos ao criticar gestos republicanos de políticos que se fiam na ciência.
O governador paulista continua sendo um político reacionário e oportunista que surfou até pouco tempo a onda bolsonarista, mas não é um alucinado que contesta verdades científicas nem pretende colocar em risco a vida da população em nome da suposta salvação da economia. Numa época em que o obscurantismo move o maior líder da nação no enfrentamento de uma pandemia, ter governadores que fazem o básico é um luxo, e não um “erro político”.
O gesto de reconhecimento mútuo de Doria e Lula não representa um aceno para uma aliança política, longe disso, mas aponta um caminho para o enfrentamento do bolsonarismo. É o que os governadores fizeram ao se unirem para rejeitar as ações do presidente. É hora de construir pontes republicanas entre todos os que se opõe ao obscurantismo bolsonarista – mesmo aqueles que entraram tardiamente em contradição com ele. Essa não é uma ideia romântica. Não é um ninguém-solta-a-mão-de-ninguém, muito menos uma aliança baseada em afinidade ideológica. É pragmatismo em um momento em que a República está sob ataque permanente do Planalto. É a necessidade de unir a nação em defesa da verdade, da ciência e da democracia.
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