Quando entra no corpo humano pelas vias aéreas, o coronavírus pode se instalar na parte superior do aparelho respiratório – nariz e garganta – e ficar por lá. Mas pode também atingir as vias aéreas inferiores – traqueia e pulmões. E é aí que ele fica perigoso. Uma vez nos brônquios ou nos alvéolos pulmonares, ele compromete a capacidade do pulmão de absorver oxigênio, provocando insuficiência respiratória. É por isso que os respiradores são fundamentais nessa batalha dentro dos hospitais. É por isso também que o tabagismo é um fator de risco para a doença, aumentando em até 14 vezes as chances da covid-19 se manifestar de forma mais grave.
Isso não importou para a Philip Morris, segunda maior fabricante de cigarros do país e dona das marcas Marlboro e L&M, que decidiu incrementar sua produção bem no meio da pandemia.
Em um e-mail aos funcionários no dia 18 de março, enviado ao Intercept por uma fonte anônima, Alejandro Okroglic, diretor de operações da empresa, detalhou a estratégia da Philip Morris para a crise do coronavírus.
Com o assunto #JuntosSomosMaisFortes, a mensagem explica que os funcionários administrativos trabalhariam de casa, mas a área produtiva, que precisa de trabalhadores de forma presencial, não pararia. “Preservar a saúde do nosso público, sem comprometer o negócio, é um dos nossos objetivos”, escreveu Okroglic, para em seguida começar a falar da economia.
Ele mostra preocupação com o impacto econômico da pandemia e diz que a gigante do tabaco está “fazendo o possível” para não “comprometer o negócio”. “Tanto a minha família, quanto a sua família dependem da nossa empresa para se sustentar”, escreveu, para em seguida detalhar o objetivo da mensagem: “estamos todos unidos em busca da melhor opção para todos, por isso temos que seguir trabalhando para manter nosso produto nos pontos de venda”.
Mantendo a produção e a distribuição de cigarros, a empresa estaria “firme e forte” quando a crise passar. “E nós também. Estaremos prontos para um novo desafio, pois mais uma vez teremos mostrado que #JuntosSomosMaisFortes”.
Depois de justificar a decisão, ele explicita a estratégia para os tempos de uma pandemia que atinge especialmente as vias respiratórias: a empresa vai aumentar a produção de cigarros. Do e-mail: “Essa é a razão pela qual estamos aumentando a nossa produção e pedindo o esforço de cada um”. A seguir, o diretor apresenta uma nova escala de trabalho, que inclui três novos turnos aos sábados.
Nem decreto fez a Philip Morris parar
Perguntei à Philip Morris se a empresa confirma o aumento na produção, os novos turnos e a justificativa para as mudanças, além de sua política de enfrentamento ao novo coronavírus. A empresa não respondeu à maior parte das perguntas. Afirmou que faz triagem de temperatura, reestruturou as equipes e tem “protocolos especiais de limpeza e higienização”, além de fornecer de transportes que priorizam o distanciamento social, entre outras medidas. Também acrescentou que permite “folgas remuneradas para pessoas infectadas” e para quem precisa se colocar em quarentena ou cuidar de familiares doentes. Lembrando que, em casos de infectados, não é bondade da empresa dar “folgas remuneradas”. Com atestado médico, isso é uma obrigação.
A Philip Morris também afirmou que segue “rigorosamente as recomendações e normas das autoridades de saúde para o setor industrial” e que as atividades fabris são permitidas.
Não é bem assim: há decretos municipais e estaduais proibindo atividades industriais que não sejam de urgência ou expressamente indicadas por prefeitos e governadores. Em Santa Cruz do Sul, cidade gaúcha onde fica a fábrica da Philip Morris, o prefeito Telmo Kirst, do PSD, assinou no dia 20 de março um decreto de calamidade pública que fechou o comércio e a indústria considerados não essenciais e impôs medidas de restrição de circulação. Só estão autorizados a funcionar estabelecimentos de saúde, alimentação, postos de gasolina, bancos e transportadoras que lidam com essas categorias. Aparentemente, a fabricação de cigarros não está incluída como atividade essencial.
A cidade é um importante pólo de produção de tabaco. Lá estão sediadas pelo menos outras cinco grandes fábricas de cigarros. A maior parte da produção, no entanto, foi interrompida depois do decreto de calamidade pública. A Souza Cruz, por exemplo, suspendeu as atividades de compra e processamento de tabaco; a Associated Tobacco Company, a ATC, suspendeu as operações e manteve apenas 40 funcionários para serviços essenciais no lugar dos 300 que costumavam trabalhar no local.
A única que foi no caminho contrário, segundo uma reportagem do jornal local Gaz, foi a Philip Morris. A empresa confirmou que ampliaria a produção de cigarros “para minimizar os impactos da pandemia”. Na fábrica, segundo o jornal, trabalham cerca de 800 pessoas.
Nesta semana, a empresa também anunciou que irá retomar a compra de tabaco dos produtores locais – ainda que a cidade esteja na condição de calamidade pública – ou seja, que apenas serviços essenciais devam funcionar. Segundo a empresa disse ao jornal Gaz, o objetivo da retomada é a “preservação financeira dos produtores da região”. Perguntei à Philip Morris se a retomada das compras não viola o decreto municipal que impôs restrições de circulação. “A PMB reitera que opera seguindo todas as normas dos municípios nos quais atua”, disse a assessoria de imprensa.
Estudos científicos já mostraram que há relação entre a produção de tabaco e o consumo de cigarros. Em São Lourenço do Sul, a 300 quilômetros de Santa Cruz do Sul, a prevalência do tabagismo entre fumicultores chega a 22% – maior do que a média nacional, que é de 18%. Outro estudo mostrou que, entre jovens de Santa Cruz do Sul, é alta a incidência de consumo de cigarros – e ela está diretamente relacionada a problemas pulmonares. O Rio Grande do Sul tem um dos maiores índices de tabagismo do Brasil.
Santa Cruz do Sul já tem 81 casos suspeitos de covid-19. O primeiro foi confirmado ontem.
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