Bolsonaro segue cometendo atentados em série contra a saúde pública. Pela segunda semana consecutiva, usou o pronunciamento oficial em rádio e TV para impulsionar as mentiras fabricadas pelo “gabinete do ódio” — comandado pelo seu filho Carlos Bolsonaro — e fornecer munição para suas milícias virtuais atacarem adversários políticos e os setores do governo que ousam combater a pandemia se fiando em pesquisas científicas.
No pronunciamento da semana passada, o presidente distorceu uma fala de um diretor da OMS, insinuando que ele aprovaria o afrouxamento do distanciamento social em alguns países. Era mentira, claro. A OMS, com base num consenso científico, continua recomendando fortemente o isolamento total. Antes do pronunciamento, o vídeo descontextualizado da fala do diretor da OMS já havia sido devidamente legendado e disseminado pelo Gabinete do Ódio. A fake news que o presidente contou à noite o meu pai já tinha me encaminhado no WhatsApp pela manhã. Assim como ele, muitos dos que viram o vídeo acreditaram que a OMS estava oficialmente defendendo o relaxamento das medidas de isolamento social.
Nesse mesmo pronunciamento, Bolsonaro voltou a defender o uso da cloroquina, o remédio que virou a boia de salvação do Titanic bolsonarista. As dúvidas da ciência quanto ao uso da cloroquina contrastam com as certezas fabricadas pelo gabinete do ódio que norteiam as ações do presidente. Ainda em fase de testes, o remédio tem efeitos colaterais fortes e pode matar. A sua eficácia é ainda apenas uma possibilidade em estudo e até aqui não há nenhuma evidência científica robusta de que o remédio ajudou a salvar pacientes com a covid-19.
Pesquisas preliminares feitas pela Fiocruz, por exemplo, apontam que o número de mortes com pacientes que usaram cloroquina é o mesmo dos que não usaram. Outros estudos internacionais apontam na mesma direção. Portanto, a especulação do presidente sobre a eficácia de um medicamento cujos efeitos colaterais podem até levar a morte configura um crime contra a saúde pública.
Nos EUA, um homem de 68 anos decidiu tomar cloroquina após propaganda de Trump sobre a eficácia do remédio. Comprou uma versão não medicamentosa da cloroquina e morreu. O alarde de Trump fez com que a procura do medicamento aumentasse, elevando os preços e prejudicando pacientes com artrite, malária e lúpus, que realmente precisam da cloroquina. É essa loucura que Bolsonaro quer importar.
No início da semana, após o presidente dar sinais de que demitiria Mandetta, os militares decidiram agir nos bastidores. Ao ver o único fio de sensatez do governo sendo ameaçado em plena pandemia, os militares decidiram tomar as rédeas e impedir a demissão do ministro. Um acordo costurado pelos militares fez com que Bolsonaro o mantivesse no cargo em troca do relaxamento das diretrizes para o distanciamento social no país. Para se manter no cargo, Mandetta teve que afrouxar medidas recomendadas pela OMS em algumas cidades e, assim, atender a narrativa de Bolsonaro. O ministério então divulgou as novas diretrizes, que propõem três níveis de isolamento e permitem que pessoas que estão fora dos grupos de risco possam circular normalmente. Ou seja, o acordo contraria as recomendações da OMS e, na prática, fará com que morram mais brasileiros do que se o isolamento total fosse mantido em todas as cidades.
Se Bolsonaro demitisse Mandetta, um novo ministro olavista anticiência que prega o fim do isolamento total seria escolhido, o que provavelmente seria pior. De qualquer maneira, é preciso que fique registrado qual é o custo: milhares de vidas perdidas. Não se trata de um palpite, mas de matemática. Basta olhar para o mundo e ver como os países que não tomaram as medidas de isolamento total se arrependeram ao ver o número de mortos disparar. É assim que agem os adeptos da necropolítica: negociando em cima do número de cadáveres para sustentar uma narrativa política fabricada ao arrepio da ciência.
O coordenador do comitê de controle do coronavírus do governo de São Paulo, David Uip, passou a ser vítima de ataques dos bolsonaristas nas redes sociais. Segundo eles, Uip, que é médico infectologista, estaria escondendo que se curou de covid-19 após o uso de cloroquina. O próprio presidente da República passou a constrangê-lo publicamente, perguntando se ele havia usado o remédio. Até uma receita dele prescrevendo o medicamento foi criminosamente vazada e impulsionada pelas milícias virtuais bolsonaristas. David Uip admitiu a autenticidade da receita, mas preferiu não dizer se fez o uso do medicamento.
É provável que Uip tenha tomado a cloroquina de forma controlada, avaliando a dose correta e os efeitos colaterais, o que não significa que isso tenha sido responsável pela cura. É claro que um médico responsável jamais sairia alardeando aos quatro cantos que usou um remédio sem eficácia comprovada e com fortes efeitos colaterais que podem levar à morte. Mimetizando Trump, Bolsonaro se apresenta como o salvador da pátria que tem lutado pela cura da doença contra tudo e contra todos. Um mito que briga contra o “sistema” pela saúde do povo, apesar da ação dos seus inimigos, que por algum motivo oculto a boicotam.
Outros efeitos do acordo costurado pelos militares ficaram claros na coletiva seguinte de Mandetta. Ele passou a exaltar a liderança de Bolsonaro e a contribuir para a guerra de narrativas promovida pelo gabinete do ódio, ainda que de maneira tímida. Durante a coletiva de quarta-feira, 8 de março, o ministro criticou David Uip e o governador Doria por politizarem o uso da cloroquina. Pouco antes, Doria havia declarado que David Uip orientou o Ministério da Saúde a distribuir de cloroquina na rede pública.
Apesar de ter ajustado o tom, Mandetta segue afirmando não haver embasamento científico para o uso amplo da medicação, como defende Bolsonaro. A verdade é que essa é mais uma falsa polêmica alimentada pelo bolsonarismo para disfarçar a flagrante incompetência do presidente em liderar o país no enfrentamento da epidemia. O protocolo do Ministério da Saúde já prevê que a cloroquina seja testada em casos considerados graves e críticos. Segundo o próprio ministro, esse entendimento se deu após a reunião com especialistas, entre eles David Uip. Os dois médicos sempre estiverem de acordo quanto ao uso controlado do medicamento. A intriga foi instalada apenas para fortalecer a narrativa bolsonarista de salvador da pátria.
As intenções de Bolsonaro por trás dessa obsessão pela cloroquina e pelo afrouxamento do distanciamento social estão claras. O presidente é previsível. Qualquer que seja o resultado ao fim da pandemia, Bolsonaro já terá as narrativas preparadas para justificá-lo. Se o resultado for trágico, com muitas mortes, o presidente vai culpar as forças ocultas que promoveram o boicote à cloroquina e dirá que o isolamento total não funcionou. Se houver menos mortes do que se espera, vai dizer que o isolamento total era desnecessário e que a economia foi prejudicada por causa dele. Dirá ainda que tinha as soluções, mas foi impedido pelo “sistema”. Como não tem compromisso com a realidade dos fatos nem vergonha na cara, Bolsonaro sairá de peito estufado qualquer que seja o resultado dessa tragédia.
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