Entre uma crise de tosse e outra, uma funcionária do Supermercados Mundial, no Rio de Janeiro, me contou, por telefone, como é trabalhar com medo de ficar doente, sendo mãe solteira e a única renda da sua casa. Devido à pandemia do coronavírus, ela tem enfrentado uma sobrecarga de trabalho no mercado. Além da aglomeração de clientes que não necessariamente respeitam as orientações do Ministério da Saúde, ela também se preocupa com a convivência com colegas que, assim como ela, têm sintomas de resfriado que se confundem com os da covid-19.
“Tem muito cliente e funcionário tossindo. Tem gente que tosse em cima da gente, principalmente os idosos”, conta a caixa que preferiu não se identificar por medo de perder o emprego. “Alguns clientes parecem estar preocupados e perguntam como estamos, mas tem outros que parecem sair de casa só para causar confusão”.
O depoimento da funcionária é corroborado por outros clientes que relatam pelas redes sociais cenas apocalípticas nos corredores do mercado. “Não adianta fazer quarentena e ir no Mundial”, diz um comentário no Facebook do supermercado. Superlotação, funcionários sem luvas ou máscaras, pessoas tossindo sem qualquer preocupação e clientes que não respeitam as marcações de distância de segurança em filas estão entre as principais questões reclamações.
Assim como em muitos outros mercados, tampouco existe controle do número de pessoas que entram por vez nas lojas da empresa, um das críticas da funcionária. Os corredores são tomados por pessoas, muitas delas idosas, aglomeradas em busca de ofertas. “Tem gente que vai todo dia no mercado para comprar coisas desnecessárias se expondo e expondo a gente”, diz.
Essa não é a primeira vez que falamos aqui de atuações questionáveis da rede. Em 2017, contei que funcionários entraram em greve porque deixaram de receber por horas extras trabalhadas em domingos e feriados. Também mostramos que os empregados cruzaram os braços novamente um ano depois devido a um novo corte no pagamento.
Confira abaixo os principais trechos da conversa que tive com a funcionária do supermercado. O depoimento foi editado para melhor compreensão.
Sinto medo. Você vê a reportagem de outros países e vê que as coisas estão sérias. A gente sai de casa para trabalhar para ajudar a população e acho que não merecemos passar por nenhum tipo de pânico ou humilhação. Mas não é isso que acontece.
As medidas que a empresa tomou para a nossa proteção foram espalhar cartazes [pelo supermercado] orientando que lavássemos as mãos com regularidade e disponibilizar álcool em gel para as caixas e para os clientes passarem nas mãos. Também colocou uma faixa amarela delimitando a distância que os clientes devem ficar na fila dos caixas e instalou em algumas lojas uma placa de acrílico separando o cliente do caixa. Só que as pessoas não respeitam. Os clientes vão para os lados para falar com as funcionárias. Eu vi no Face (Facebook) que eles tinham que fornecer luva e máscara para a gente, mas na minha loja não vi nada.
Tem muito cliente e funcionário tossindo. Tem gente que tosse em cima da gente – principalmente os idosos. Alguns clientes parecem estar preocupados e perguntam como estamos. Mas tem outros que parecem sair de casa só para causar confusão. Tem gente que vai todo dia no mercado para comprar coisas desnecessárias se expondo e expondo a gente. Não passa pela cabeça dessas pessoas que podemos ficar doentes e que nós também temos família que dependem de nós. Poxa, esta aí toda hora na televisão falando que é para ficar em casa. Tem outros que parecem estar com nojo de usar a máquina de cartão e de entregar o dinheiro na nossa mão. É uma situação horrível. Outro dia, jogaram o dinheiro em mim na hora de pagar a conta porque estavam com nojo de encostar.
Nós estamos muito sobrecarregados. As pessoas estão comprando muito mais e sem respeito algum com os outros e conosco. Estamos com ausência de muitos funcionários. Na minha loja, são no mínimo dez pessoas que não estão trabalhando. Tem os que estão afastados por conta da idade e outros que estão pelo INSS por sintomas como os que eu estou sentindo. Tem eu e mais três meninas com dor no corpo, na cabeça, no peito, nas costas, tosse e uma febre que parece que está queimando por dentro que eu não desejo a ninguém. Eles até sabem eu que estou com esses sintomas e tossindo. Todo mundo está assim e ninguém me falou para ficar em casa. Não sabemos se é a doença ou não, mas tem gente que está com suspeita [de coronavírus] sim.
Depois de seis dias trabalhando doente, hoje [quinta-feira, dia 9] fui a um clínico geral porque a febre não passou. A empresa não me mandou procurar um médico, fui por conta própria. O médico não pediu exames, porém não falou ser coronavírus. Ganhei uns dias em casa para que eu pudesse descansar. O doutor recomendou que eu bebesse muito líquido, tomasse vitamina C, me alimentasse bem, prestasse atenção nos sintomas e também pediu para que eu ficasse isolada. Se eu piorar, é para procurar a emergência. Fiquei com medo de ficar sem trabalhar em ser descontada de alguma forma. E eu não posso ficar sem trabalhar. Mas tenho os meus filhos e preciso me cuidar. Eu sou sozinha.
As pessoas estão muito cansadas. Principalmente quem faz o fechamento de loja. Mesmo fechando mais cedo [20h por determinação da prefeitura, normalmente o mercado funciona até 22h], as pessoas estão demorando mais para chegar em casa porque diminuiu muito o transporte público. Quem mora na Baixada Fluminense ou em locais mais distantes acaba ficando refém dos trens porque não tem ônibus circulando [ decreto de Wilson Witzel restringe circulação de ônibus intermunicipal e isola a região metropolitana para conter avanço do coronavírus] . E quem mora na Baixada ainda precisa apresentar a comprovação de que está indo trabalhar para conseguir entrar no trem. Também estou pegando o trem, mas como moro no Rio não preciso mostrar nada. Eu levava uns 40 minutos até o trabalho, mas estou levando cerca de uma hora no trajeto agora. Na hora que eu vou para o trabalho o trem não está tão cheio, mas quem pega mais cedo está enfrentando trens superlotados. Até estão usando luva e máscara no trem, mas esse caminho é perigoso também.
Fico me perguntando se o mercado não poderia limitar o número de clientes que entram na loja. A empresa podia controlar na entrada. E teria que ter um guarda ou uma viatura da polícia na porta para ajudar porque só os funcionários não dariam conta. Do jeito que as pessoas estão poderiam até jogar pedra na loja querendo entrar. A gente está com número reduzido de funcionários. Não dá para atender todo mundo. As pessoas não pensam na gente. É muito idoso. É muita gente aglomerada. Com certeza tem gente infectada no mercado. Eu peço a Deus que eu não esteja.
Entramos em contato com a assessoria de comunicação dos Supermercados Mundial e fomos informados de que a rede já fornece aos colaboradores e clientes das 20 unidades álcool gel 70%, a higienização das unidades, a sinalização de faixas no chão respeitando o espaço de 1 metro e meio entre os clientes nas filas; a instalação de placas de acrílico nos caixas para manter distância entre funcionários e clientes; além da liberação dos colaboradores do grupo de risco desde o dia 18 de março, sem perda salarial. A empresa disse que iniciou o controle de acesso de clientes em algumas lojas na semana da Páscoa.
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