Donald Trump deu um largo sorriso na segunda-feira, durante sua 29ª coletiva diária sobre a pandemia, enquanto enganava as emissoras de TV e as fazia transmitir um vídeo financiado pelos contribuintes exaltando sua própria liderança, sob a forma de um compilado de melhores momentos das declarações presidenciais durante a crise do coronavírus, tudo ao som de uma trilha sonora empolgante.
WATCH: Here was the scene in today's #PressBriefing when President Trump aired what @CNN has labeled a propaganda video. pic.twitter.com/ZMaYDL6YVu
— Austin Kellerman (@AustinKellerman) April 13, 2020
O vídeo, repleto de erros e editado de forma enganosa, aparentemente pretendia refutar um relatório condenatório publicado na capa do New York Times de domingo, que detalhava a lentidão de Trump para levar a sério a ameaça representada pelo vírus. Embora Trump estivesse obviamente satisfeito com a produção — ele apontou para a tela com um olhar presunçoso de triunfo em vários momentos — ele parecia não perceber que o que estava se desenrolando na sala de conferências da Casa Branca continha uma falha fatal que ajudou a reforçar o argumento central do relatório publicado no New York Times.
Inside coronavirus briefing President Trump is having reporters watch campaign style montage praising his handling of coronavirus. #Covid_19 pic.twitter.com/Idq26FKYqQ
— Paula Reid (@PaulaReidCNN) April 13, 2020
A compilação de clipes, selecionados por Dan Scavino, diretor de mídia social da Casa Branca, tentou criar uma história alternativa dos primeiros meses da crise, segundo a qual a mídia americana inicialmente “minimizou o risco”, mas Trump ainda assim “tomou uma ação firme”, apenas para ser injustamente criticado por seus oponentes políticos, antes que os governadores do país se juntassem para tecer loas ao presidente.
O destaque do vídeo foi uma linha do tempo das ações de Trump e seu governo, destacando a proibição parcial de viagens vindas da China que ele ordenou em 31 de janeiro, e sua declaração de emergência nacional em 13 de março.
Mas, como a correspondente Paula Reid, da CBS, assinalou para Trump depois que o vídeo terminou, havia uma enorme lacuna na linha do tempo: ela não mencionava absolutamente nenhuma ação do presidente em fevereiro e houve, como o New York Times notou, um período de “seis longas semanas” após as restrições de viagem até que ele “finalmente tomou medidas agressivas para enfrentar o perigo que o país estava encarando”.
De fato, o único registro na linha do tempo de fevereiro — o mês em que Trump realizou massivos comícios de campanha e descreveu as críticas dos democratas à forma como lidou com o vírus como “a nova farsa deles” — foi em 6 de fevereiro: “O CDC envia seus primeiros kits de teste”. O fato de esses kits de teste estarem com defeito, uma falha enorme em um momento crítico, parece algo estranho para sair se gabando por aí.
Mesmo em março, Trump seguia subestimando o novo coronavírus como se não fosse mais ameaçador do que a gripe.
So last year 37,000 Americans died from the common Flu. It averages between 27,000 and 70,000 per year. Nothing is shut down, life & the economy go on. At this moment there are 546 confirmed cases of CoronaVirus, with 22 deaths. Think about that!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) March 9, 2020
Tendo parecido tão satisfeito consigo mesmo enquanto o vídeo era reproduzido, Trump ficou surpreso com a observação de Reid de que sua linha do tempo mostrava o mesmo período de inação que o New York Times havia descrito. “O argumento é que você ganhou algum tempo”, impondo a proibição parcial de viagens da China, apontou Reid. “O senhor não usou esse tempo para preparar hospitais, não o usou para acelerar os testes”.
.@PaulaReidCBS presses Pres. Trump about his administration's early actions on the coronavirus, after he spent the beginning of his press conference complaining about his media coverage https://t.co/ySmFq3sUis pic.twitter.com/iKuTfTqg4I
— CBS News (@CBSNews) April 13, 2020
Quando Trump a interrompeu para denunciá-la como “tão vergonhosa”, a correspondente insistiu em perguntar o que exatamente os americanos deveriam tirar de seu vídeo-tributo a si mesmo? “Neste momento, quase 20 milhões de pessoas estão desempregadas. Dezenas de milhares de americanos estão mortos. Como esse vídeo promocional ou essa falação devem fazer as pessoas se sentirem confiantes em uma crise sem precedentes?”
Trump não teve resposta além de voltar a se elogiar por restringir as viagens vindas da China em janeiro. “Mas o que você fez com o tempo que ganhou?”, Reid perguntou. “O mês de fevereiro… o vídeo tem uma lacuna em branco”.
Depois da coletiva, Eric Lipton, um dos autores da investigação que enfureceu Trump, observou no Twitter que nada no vídeo ou nos comentários do presidente “enfraquece um único fato dos textos que publicamos no fim de se semana”.
“A verdade continua sendo que os principais consultores de saúde do país concluíram, em 14 de fevereiro, que os EUA precisavam utilizar esforços direcionados de contenção para retardar a propagação do vírus”, acrescentou Lipton. “Trump esperou até 16 de março para anunciar seu apoio a essas medidas”.
A linha do tempo inadvertidamente reveladora não foi a única falha no vídeo de propaganda produzido por Scavino, o ex-carregador de tacos de golfe de Trump.
Tudo começou com uma sequência retirada diretamente da edição de 26 de março do programa de Sean Hannity na Fox News: uma série de clipes de especialistas médicos comentando nos canais ABC, NBC e CBS, prevendo erroneamente em janeiro que os americanos não seriam gravemente atingidos pelo vírus. Esses trechos pareciam ser incluídos como uma tentativa de envergonhar os repórteres desses canais, mas as declarações deles na época eram quase idênticas aos comentários do Dr. Robert Redfield, diretor do CDC, que disse em uma coletiva da força-tarefa do coronavírus em 31 de janeiro: “quero enfatizar que esta é uma situação de saúde séria na China, mas quero enfatizar que o risco para o público americano, atualmente, é baixo”.
Essa montagem de abertura também inclui um clipe editado de forma maliciosa de Hannity perguntando ao Dr. Anthony Fauci, em janeiro, se especialistas americanos poderiam ir à China se o surto de coronavírus fosse pior do que o esperado. Em março, Hannity tentou afirmar que isso era uma prova de que ele havia “avisado” de uma pandemia. Na verdade, antes que o clipe fosse editado, ele mostrava que Hannity havia perguntado a Fauci sobre o envio de especialistas americanos à China para “ajudá-los a conter isso” por lá. Como Trump, Hannity passou todo o mês de fevereiro comparando a covid-19 à gripe sazonal e, no final de março, ele também estava recuando furiosamente.
Outro aspecto bizarro dessa sequência é que ela termina com o Dr. David Agus, correspondente médico da CBS News, afirmando que “o coronavírus não causará um grande problema nos Estados Unidos”. Agus agora é um dos principais defensores do uso experimental da droga antimalárica hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 e teria falado diretamente com Trump sobre os possíveis benefícios do medicamento com o qual o presidente ficou obcecado.
A terceira seção do vídeo — sobre o suposto tratamento injusto que Trump recebeu de seus opositores políticos — tira de contexto o áudio da correspondente Maggie Haberman, do New York Times, para distorcer seu significado. Haberman foi uma das seis repórteres que escreveu o artigo que irritou Trump. Em uma entrevista ao “The Daily” em março, Haberman realmente chamou a ordem de Trump de desacelerar as viagens vindas da China de “uma medida bastante agressiva contra a propagação do vírus”, mas a edição feita pela Casa Branca omitiu o que ela disse imediatamente depois disso. “O problema é que foi uma das últimas coisas que ele fez por várias semanas”.
Here’s the full exchange with @mikiebarb, in which I compared the president’s behavior around the a China travel limitations to the Bush “Mission Accomplished” moment. pic.twitter.com/nq8t43JnuT
— Maggie Haberman (@maggieNYT) April 13, 2020
“Ele nada fez depois disso em termos de alertar o público, ou dizer às pessoas para ficar em segurança e tomar precauções”, acrescentou Haberman, de acordo com uma transcrição da entrevista original. “E basicamente desperdiçou várias semanas nos EUA”.
Essa mesma sequência incluiu duas anotações falsas no texto na tela, referindo-se a outras declarações de Haberman sobre a proibição parcial de viagens vindas da China. Quando ela disse “ele foi acusado de xenofobia”, uma imagem de Joe Biden apareceu, no dia 12 de março. Biden, no entanto, não estava se referindo à proibição de viagens de Trump no discurso que ele deu nesse dia; ele estava criticando a referência nativista de Trump no dia anterior, quando as viagens vindas da maior parte da Europa foram interrompidas, para o que o presidente chamou de “vírus estrangeiro”.
“Subestimar, ser excessivamente desdenhoso ou espalhar informações erradas só vai nos prejudicar e aumentar ainda mais a propagação da doença, mas também não devemos entrar em pânico ou recorrer à xenofobia”, disse Biden. “Rotular a covid-19 de vírus estrangeiro não substitui a responsabilidade pelos erros de julgamento que foram cometidos até agora pelo governo Trump”.
O fato de que Trump fez questão de chamar o novo coronavírus de “vírus chinês”, incitando o ódio contra asiáticos e seus descendentes nos EUA, mesmo dentro da própria Casa Branca, torna ainda mais absurda sua alegação de ter sido falsamente acusado de xenofobia.
Momentos mais tarde no vídeo, enquanto Haberman dizia, “ele foi acusado de fazer um movimento racista”, uma imagem de Nancy Pelosi – congressista democrata e presidente da Câmara dos EUA – apareceu, com uma citação do site The Hill em 31 de janeiro. No entanto, como o texto no The Hill deixa claro, Pelosi, na verdade, estava se referindo a outra proibição de viagem emitida por Trump naquele dia — “acrescentando Mianmar, Eritreia, Quirguistão, Nigéria, Tanzânia e Sudão à proibição de viagem que o presidente instituiu três anos atrás” — quando ela o denunciou por impor “essas restrições tendenciosas e preconceituosas”.
A entrevista coletiva de segunda-feira, que elevou para mais de 40 horas o tempo do presidente na sala de conferências no último mês, foi outro exemplo de Trump sequestrando para seus próprios fins o que anteriormente era uma coletiva dedicada a transmitir informações vitais sobre uma emergência de saúde pública. O presidente, no entanto, parece considerar o tempo grátis na TV como uma oportunidade diária de autopromoção.
Isso ficou claro no momento em que Trump disse aos repórteres que, depois de assistir ao vídeo, o mais importante era que “voltaremos ao motivo pelo qual estamos aqui: isto é, o sucesso que estamos tendo”.
Tradução: Maurício Brum
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