Desde que a Organização Mundial de Saúde decretou a pandemia do novo coronavírus e vários estados brasileiros optaram pelo isolamento social, empresas e instituições de todo o Brasil passaram a adotar o home office como forma de proteger os funcionários e evitar a propagação do vírus. Com os tribunais de justiça, não foi diferente.
No entanto, uma parcela de servidores do judiciário não tem como se manter em casa: os oficiais de justiça, cerca de 36 mil em todo o Brasil somando todos os tribunais. Enquanto os juízes e desembargadores tomam decisões do conforto de suas casas, longe do risco de contaminação pelo novo coronavírus, oficiais têm saído às ruas para entregar liminares e mandados – sem qualquer equipamento de proteção. Ironicamente, boa parte dessas decisões envolvem mandados obrigando que patrões forneçam luvas, máscaras e outros equipamentos de segurança a seus funcionários, me contou a oficial de justiça, Mariana Liria, dirigente sindical da categoria.
Ela conta que eles tentam convencer tribunais estaduais e federais a fornecer os equipamentos desde 12 de março. No dia 7 de abril, quase um mês depois, o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, arquivou mais um pedido dos oficiais de justiça e deixou a cargo de cada tribunal decidir sobre a como preservar a saúde dos seus servidores. A solução foi protocolar mandados de segurança coletivos nos tribunais. A primeira decisão favorável foi para os oficiais de justiça do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, no Rio de Janeiro. No dia 9 de abril, a desembargadora Ana Maria Moraes determinou que o tribunal forneça aos servidores “máscaras, luvas, botas, óculos, vestimentas, álcool em gel, sabão e água, além de outros suprimentos de higiene e limpeza, de forma imediata e constante”.
Na base do improviso, ela e outros colegas usam lenços e máscaras que pagam do próprio bolso. Ela conta como tem sido a rotina dela e de outros colegas. O relato foi editado com fins de clareza.
O trabalho de um oficial de justiça é garantir que ordens judiciais sejam entregues para as partes envolvidas em um processo. Durante o período de quarentena, apenas casos urgentes estão sendo enviados para cumprimento. Nesses casos, temos que entregar esses mandados em mãos para o destinatário. Então, nosso trabalho naturalmente demanda um tipo de exposição e que nos deixa em situação de risco durante nesse período de pandemia do coronavírus. Mas não temos nem mesmo álcool gel nos tribunais para que os servidores possam limpar as mãos.
No dia 15 de março, eu estava de plantão na Justiça Federal. Era um domingo e já tínhamos muitos casos confirmados de covid-19 no Rio de Janeiro, onde trabalho [24 casos positivos no RJ, segundo relatório do Ministério da Saúde em 15/03]. O mandado era na sede do Inca. Mesmo com as notícias aumentando sobre os tipos de cuidados que a população deveria ter, fui cumprir o mandado com a expectativa de que seria algo tranquilo.
Quando cheguei na recepção, me encaminharam para a recepção da emergência. O caminho já foi bem tenso, um corredor largo que me lembrava um estacionamento abandonado. Esqueci meu álcool gel no carro, então já fui controlando onde havia álcool nessa área mais aberta do prédio. Encontrei dois frascos, um estava vazio.
Quando entrei na recepção da emergência, havia várias pessoas doentes e com máscaras no local. Me senti muito vulnerável naquele espaço e avisei que não ia entrar mais na emergência e que a médica responsável para receber o mandado teria que assinar o documento do lado de fora. A moça da recepção entrou na emergência e falou com a médica, que disse que estava tratando de um paciente com suspeita de covid-19 em estado grave e não poderia sair. O recado final era que eu teria que entrar.
É claro que eu não podia entrar lá e me expor ainda mais. Então ficamos quase uma hora e meia nesse impasse. Um funcionário do administrativo disse que “ia tentar me ajudar”, entrou e voltou de máscara dizendo ‘ih, a coisa está braba lá dentro, tão entubando o cara. A doutora não vai poder sair não, a senhora vai ter que entrar lá.’
Expliquei novamente que eles teriam que me apresentar o substituto da médica, porque eu não iria entrar lá. Tinha em mãos uma medida judicial de internação hospitalar de outro paciente grave, que também precisava ser atendido. Então veio um médico falar comigo. Eu mostrei o mandado pelo celular, ele pegou o aparelho da minha mão e disse: ‘Peraí, deixa eu ver’.
Fiquei em pânico de ver aquela pessoa, que saiu de dentro da emergência, pegando no meu celular. Não sou infectologista, mas sei que isso não é um comportamento minimamente seguro. O médico ainda ficava falando muito próximo do meu rosto, eu tentava me afastar e ele ia se aproximando mais. Até que em um momento ele tocou meu braço e dei um pulo de medo.
Pode parecer bobagem, mas a gente não sabe onde pode ter o vírus. O carioca é assim, fala próximo e toca muito nas pessoas, então é difícil para quem está na rua e precisa falar com várias pessoas. Isso torna o nosso trabalho de oficial de Justiça ainda mais delicado.
O médico assinou o mandado e, quando tentou me devolver, eu pedi para ele deixar sobre o balcão, porque eu ia tirar uma foto e não levaria ou tocaria no documento. Ele fez uma expressão que eu estava exagerando, mas insisti e ele deixou o documento no balcão.
Voltei para o carro e acho que tomei um banho de álcool gel. Me senti aliviada porque estava com camisa de manga longa, assim ninguém tocou na minha pele, só na roupa. É uma sensação de vulnerabilidade, um medo que não quero sentir nunca mais. Nas semanas seguintes, ainda fiquei com medo de surgir algum sintoma em mim ou no meu marido, porque sabemos que, em média, o vírus demora 14 dias para aparecer.
Por mais que a nossa profissão seja arriscada e muitas vezes tenhamos de ir em locais perigosos, a experiência nesse dia foi completamente nova e estranha. Passei a insistir ainda mais no sindicato para que os tribunais entendam que não é possível cumprir mandados sem equipamentos adequados de proteção.
Chega a ser até uma trágica ironia, tenho muitos colegas que estão indo entregar mandados que obrigam empresas e órgãos públicos a fornecer máscaras e luvas para trabalhadores, mas os próprios oficiais que estão entregando essas ordens não recebem esse tipo de equipamento.
Mesmo com tribunais ainda ignorando que precisamos de equipamentos, conseguimos que cerca de 80% dos mandados nas justiças Federal e do Trabalho sejam cumpridos eletronicamente. Assim o oficial não precisa se expor, mas isso depende muitas vezes do juiz que é responsável pela decisão. Ele está em casa, seguro, mas nós estamos na rua.
Entendemos que há limitações para conseguir equipamentos, isso acontece em todos os lugares, mas não podemos mandar pessoas para trabalhar sem proteção. Recebo quase todos os dias relatos de colegas que saem para cumprir mandados em unidades de saúde e outros locais com pessoas infectadas com covid-19. Alguns improvisam máscaras ou pedem luvas emprestas de algum parente para ir trabalhar.
Muitos oficiais entram em contato pedindo alguma forma de orientação da federação, mas fico em uma encruzilhada. O certo seria dizer que nenhum trabalhador deve se expor sem que o tribunal garanta seu equipamento básico de segurança, mas se ele disser isso pode ser alvo de uma punição administrativa depois.
Quando saí do Inca, no dia 15, fui para a sede do plantão judiciário e entreguei um relatório com detalhes sobre os riscos que passei ao cumprir o mandado judicial. Outros colegas estão fazendo o mesmo, talvez assim os tribunais comecem a entender que precisamos ter condições mínimas para realizar o nosso trabalho.
No meio de tanto pânico e medo, pelo menos uma coisa boa aconteceu naquele dia. Às 22h, a paciente foi transferida para um leito no instituto, conforme previa o mandado judicial que entreguei.
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