“No auge do desespero, pensei em arrancar o DIU sozinha”. Desde 2016, Lorena* usa o Dispositivo Intrauterino como principal método contraceptivo. Mas, em março deste ano, soube que ele havia se deslocado e precisava ser retirado. Marcou então uma consulta com a única médica de seu plano de saúde que faz o procedimento em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O atendimento, porém, acabou desmarcado devido à pandemia do novo coronavírus.
Desde 8 de abril, todas as grávidas e mulheres no puerpério, período de 42 dias após o parto, são consideradas pelo Ministério da Saúde como um grupo de risco para a covid-19. Mas, embora evitar uma gestação tenha se tornado sinônimo de proteger a saúde das mulheres durante a pandemia, elas vêm enfrentando um obstáculo: a dificuldade de acesso a métodos e procedimentos contraceptivos no SUS durante a crise.
Repórteres da Gênero e Número e da Revista AzMina, em colaboração com o Intercept, entraram em contato com a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, cidade com mais infectados e mortos por coronavírus, para saber como anda o abastecimento de contraceptivos. Fomos informadas que “desde o último dia 23 de março foram suspensos temporariamente os procedimentos considerados não urgentes”.
Em todo o município, laqueaduras e vasectomias estão sendo canceladas. E os demais serviços contraceptivos, hoje mais necessários do que em tempos comuns, entraram nessa leva nos hospitais Fernando Mauro P. Rocha e Dr. Mario Degni – contrariando a OMS, Organização Mundial da Saúde, que recomenda que o direito à contracepção deve ser respeitado “independentemente da epidemia da covid-19”. Já no Amparo Maternal e no BP Hospital Filantrópico, nunca foram oferecidos. Oito maternidades do município afirmaram seguir com os atendimentos. As quatro restantes não retornaram nossos contatos.
No Rio de Janeiro, capital do segundo estado mais afetado pelo coronavírus, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou também ter cancelado as laqueaduras e vasectomias, mas negou a falta de DIU, pílula e camisinhas na rede, e garante que a inserção do dispositivo continua disponível. Porém, ao entrar em contato com as 12 maternidades municipais da cidade, descobrimos que a colocação do DIU já foi suspensa por tempo indeterminado em ao menos quatro. As outras oito maternidades não nos responderam. No Hospital Lourenço Jorge, localizado no bairro com mais casos de covid-19, a Barra da Tijuca, sequer é possível encontrar camisinhas ou pílulas anticoncepcionais.
Procurar uma emergência do SUS passou pela mente de Lorena após sua consulta ser desmarcada no final de março, mas o medo a impediu. Com asma, obesidade e diabetes, ela já faz parte de grupos de risco da covid-19. Desde então, sofre com a falta de informações sobre sua situação.
“Para piorar, meu convênio não tem emergência obstétrica e ginecológica em Porto Alegre. Só no município de Canoas. E ir lá durante o surto, sendo do grupo de risco, é inviável”, desabafou. “Até achar uma solução, sofro com cólicas e com a possibilidade de engravidar, já que o DIU deslocado não garante minha proteção”. No momento, ela e o marido têm que recorrer à camisinha, comprada em farmácias.
A ginecologista e obstetra Melania Amorim, pós-doutora em saúde reprodutiva pela Unicamp e pela OMS, faz coro à organização: “Exigimos que o sistema de saúde continue a ofertar os métodos contraceptivos para todas as mulheres”, declarou. A médica trabalha na maternidade do Instituto de Saúde Elpídio de Almeida, o Isea, referência no atendimento de grávidas com suspeita ou casos confirmados de covid-19 em Campina Grande, na Paraíba – estado com maior taxa de mortalidade do vírus, o que talvez se deva ao baixo número de testes.
“Tenho recebido vários relatos de mulheres que procuram as unidades básicas de saúde e [descobrem que] não estão mais distribuindo métodos hormonais e camisinha”, contou. A médica ainda criticou duramente o desabastecimento: “Não adianta dizer para as mulheres não engravidarem, transferindo toda a responsabilidade para elas, e não oferecer orientações e métodos contraceptivos”.
Amorim destaca que o acesso à contracepção é direito de todas as pessoas que podem engravidar – mas que, no momento, é preciso priorizar quem está sem anticoncepcionais. “Quem já está usando contraceptivo e está bem adaptada, deve manter seu método, sem necessidade de buscar um serviço de saúde, para não sobrecarregar o sistema”.
Marcela*, moradora de Florianópolis, em Santa Catarina, estava há meses na fila de espera para colocação do DIU no SUS. Mas, próximo à consulta, recebeu a notícia de que o serviço estaria suspenso por tempo indeterminado. “Ainda lamentei no telefone e me disseram que não era hora de pensar nisso”, desabafou.
Em nota, o Ministério da Saúde pontuou que, mesmo durante a pandemia, os gestores devem se organizar para entregar métodos contraceptivos. Mas que, nos casos de procedimentos considerados eletivos, como a inserção do DIU, os gestores locais têm optado por adiar atendimentos. A decisão contraria uma portaria do próprio Ministério, que define que o DIU de cobre deve ser disponibilizado pelos estados, Distrito Federal e municípios às maternidades integrantes do SUS.
Foi o que fez o Centro de Saúde Ratones, em Florianópolis, para onde ela havia sido encaminhada para a colocação do DIU. Lá, o serviço de colocação de inserção do dispositivo foi suspenso devido à epidemia, mas ainda há camisinhas e pílulas, segundo o Centro. Com medo de engravidar, Marcela tem recorrido à camisinha, mas nas farmácias. “Meu marido e eu temos empresas e ambas estão sem poder funcionar por ordem municipal. Estamos sem rendimentos. Uma gravidez agora seria uma tragédia”, disse.
O DIU, como mencionado, é considerado o método contraceptivo mais eficaz disponível no SUS – as chances de engravidar com o dispositivo são pelo menos 10 vezes menores do que com a pílula e 20 vezes do que com a camisinha. Porém, ele ainda não é oferecido em todas as capitais. Reportagem publicada na Gênero e Número revelou que apenas nove ofertam todos os métodos contraceptivos que constam na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, determinada pelo Ministério da Saúde. E nove não fornecem ou inserem DIU nos serviços de atenção básica à saúde, segundo dados do IBGE.
Mesmo o fornecimento de camisinhas pode diminuir. A ONU fez um alerta para os riscos da falta de preservativos em todo o mundo durante a pandemia. O desabastecimento pode acontecer por causa da paralisação de fábricas e de circuitos de distribuição durante a pandemia, paralela ao aumento da demanda.
Como Amorim, Carolina Sales Vieira, ginecologista e professora da Faculdade de Medicina da USP, a Universidade de São Paulo, demonstrou preocupação com o impacto da pandemia sobre os direitos reprodutivos. “Muitos médicos, políticos e pessoas que trabalham com planejamento em saúde não sabem quais são os serviços de saúde reprodutiva essenciais. E há três que não podem cessar: pré-natal, contracepção e aborto legal”, ressaltou. A médica destacou que a continuidade desses serviços é uma medida que salva vidas, sobretudo em um contexto de caos na saúde, já que a suspensão pode ter como consequência o aumento da mortalidade materna.
NÃO ENGRAVIDEM
Devido à falta de evidências sobre a transmissão entre mãe e filho e para evitar a sobrecarga do sistema de saúde, especialistas têm recomendado que, durante o período de isolamento social, as mulheres não engravidem – o que se intensificou com a inclusão das gestantes nos grupos considerados de risco para a covid-19. “Deve ser parte da orientação a todas as mulheres em idade reprodutiva que NÃO ENGRAVIDEM DURANTE A PANDEMIA”, afirma o mais recente protocolo de atendimento do Isea, publicado na quinta-feira.
Amorim, médica do Instituto, ressaltou: “Existem complicações específicas da gravidez que podem complicar o curso da covid-19. E ainda sabemos muito pouco sobre os efeitos do vírus na gestação no primeiro trimestre, porque as publicações feitas até o momento só envolveram gestante a partir de 20 semanas”.
Mas, segundo ela, há lições a serem tiradas do que já se observou em doenças semelhantes à covid, como as provocadas pelo vírus H1N1, causador da chamada gripe suína, e a síndrome aguda respiratória grave, a SARS. No caso dessas viroses, a alteração provocada pela gravidez na imunidade da mulher e em seus padrões cardiorrespiratórios aumentam o risco de complicações respiratórias. Além disso, o protocolo do Isea menciona o deterioramento súbito da saúde das mulheres com covid-19 no período de 42 dias após o parto e a existência de impactos negativos do coronavírus sobre o feto, que pode ter seu crescimento comprometido ou nascer antes do tempo se a mãe estiver infectada.
Organizações brasileiras e internacionais também começaram a divulgar recomendações para postergar procedimentos de tentativas de concepção, como a inseminação artificial e fecundação in vitro. Em nota, a Sociedade Brasileira de Reprodução Humana recomenda que os “pacientes assintomáticos, sem suspeitas de contágio, que planejam realizar tratamento de reprodução assistida […] também devam postergar o início de qualquer tratamento para obtenção de gravidez até que a situação no país relativa à covid-19 esteja controlada”.
Funcionária da área de ginecologia do Hospital Universitário Alcides Carneiro, onde também trabalha em Campina Grande, Melania Amorim conta que, devido à pandemia, o setor teve suas atividades ambulatoriais suspensas para atender pacientes de covid-19. Preocupada com o acesso aos métodos anticoncepcionais durante a suspensão, ela criou e coordena um grupo de suporte à contracepção e inserção de DIU no município.
Amorim contou que foi necessário sensibilizar as secretarias municipal e estadual de Saúde para garantir um fornecimento mínimo de DIU de cobre para o grupo. As mulheres interessadas podem ligar para a rede de apoio para tirar suas dúvidas, entender os critérios para a inserção do DIU e marcar consultas presenciais, realizadas em um setor do Isea. O grupo recebe pedidos de DIU e pílula por meio do Instagram e, funcionando há três semanas, já tem uma lista de espera de quase 600 pessoas para colocação do dispositivo. Até quinta-feira, dia 16, as médicas haviam colocado 56 DIUs, de acordo com a Amorim.
A medicina à distância pode ser uma forma de ajudar as mulheres durante a pandemia. Segundo uma pesquisa publicada em 4 de abril pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, a Febrasgo, mais de 90% dos profissionais de ginecologia já utilizam a medicina à distância para realização de orientações médicas, principalmente via telefone e WhatsApp. Com uma amostra de 340 médicos, a pesquisa, por outro lado, destaca que 77% nunca realizaram orientação por videochamada e 85% ainda não conhecem plataformas específicas dedicadas à telemedicina.
Carolina Sales Vieira convenceu a administração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP a manter o atendimento, mas teve que aderir à telemedicina para fazer consultas virtuais e tirar dúvidas das pacientes. Somente aquelas que não conseguiram se adaptar a seu método ou que estão sem anticoncepcional têm atendimento presencial. Com isso, o número de atendimentos presenciais no ambulatório caiu de 60 para dez a cada manhã.
Como Vieira trabalha especificamente com contracepção para mulheres com doenças cardíacas, pulmonares ou de circulação, ela ressalta que é preciso ter um cuidado especial com o grupo. “A mulher que pertence ao grupo de risco do coronavírus está mais vulnerável nesse momento, porque, em muitos casos, não pode simplesmente comprar uma pílula na farmácia. Ela necessita de uma atenção especial do profissional de saúde”.
Mesmo algumas mulheres fora do grupo de risco têm evitado buscar contraceptivos por medo de se expor ao coronavírus. Por razões financeiras, Karina*, que sempre usou camisinha em suas relações, se viu obrigada pela primeira vez a buscar preservativos no SUS em vez de comprá-los. Mas de abrir mão do preservativo com medo de se contamina, mesmo sabendo que os casos de covid estão sendo tratados em hospitais de Porto Alegre, onde mora, e não nos postos de saúde.
Maria Raquel, usuária de implante anticoncepcional há seis anos, preferiu desmarcar sua consulta para a colocação do DIU do que ir a um consultório no meio da pandemia. “Prefiro não me arriscar”, comentou, apesar de se sentir insegura usando apenas a camisinha, método que combinava com o implante, já vencido. “Por enquanto ainda tenho em casa. Quando acabar, vai ser mais complicado”, refletiu. Quando isso acontecer, ela deve buscar atendimento. “Nem psicológica, nem financeiramente tenho condições de ter um filho neste momento. É um dos meus maiores medos”.
Correção: 20 de abril, 15h
Uma versão anterior desse texto afirmava que o Hospital Universitário Alcides Carneiro tornou-se um centro de atendimento a pacientes da covid-19. Na verdade, apenas os serviços ambulatoriais foram suspensos para o enfrentamento à covid-19.
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