A destruição de escavadeiras, tratores, balsas, caminhões e outros veículos de grande porte usados em crimes ambientais caiu pela metade no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. Em 2019, o Ibama destruiu 72 equipamentos desse tipo, apreendidos em flagrante com desmatadores e garimpeiros. É uma redução de 50% em relação à média anual de 144 entre 2014 e 2018, segundo dados oficiais obtidos pelo Intercept.
Autorizada por lei mas atacada por Bolsonaro, a destruição de máquinas é considerada por servidores do Ibama uma medida eficaz para conter o avanço de garimpo e desmatamento em áreas protegidas. Com ela, autoridades interrompem o dano ambiental e ao mesmo tempo causam prejuízo financeiro imediato aos criminosos.
No último dia 13, o diretor responsável pela fiscalização do Ibama desde o início do governo Bolsonaro, Olivaldi Azevedo, foi exonerado após uma operação em que foram destruídas 12 escavadeiras – avaliadas por fiscais em cerca de R$ 500 mil cada – e vários outros equipamentos. Azevedo é tenente coronel aposentado da PM de São Paulo. A ação em terras indígenas no Pará também ameaça derrubar os servidores que comandam a repressão a crimes ambientais no país.
Sob Bolsonaro, o Grupo Especializado de Fiscalização passou o primeiro semestre de 2019 sem operar na Amazônia.
Dezesseis analistas da Coordenação de Operações de Fiscalização assinaram um documento enviado no dia 21 ao presidente do Ibama, Eduardo Bim, pedindo a “imediata suspensão dos processos de exoneração” do coordenador-geral de Fiscalização Ambiental, Renê Luiz de Oliveira, e do coordenador de Operações, Hugo Loss, ambos servidores que entraram no Instituto por concurso público. Na nota, os analistas afirmam que a eventual mudança no setor “caracteriza retaliação” com o objetivo de dificultar ou obstruir investigações em curso.
O Ibama está autorizado a destruir bens apreendidos por decreto de 2008 que regulamentou a Lei de Crimes Ambientais, promulgada dez anos antes. Após a criação do Grupo Especializado de Fiscalização, o GEF, em 2014, o procedimento passou a ser usado com mais frequência.
A lei autoriza a destruição de maquinário quando não é possível retirá-lo do local em que foi apreendido – o que é usual para equipamentos de grande porte flagrados no meio da floresta. Ainda assim, trata-se de uma exceção – segundo o Ibama, a medida é aplicada em menos de 2% do total de apreensões, e sempre em áreas como unidades de conservação e terras indígenas, onde desmatamento e garimpo são proibidos.
Sob Bolsonaro, o GEF passou todo o primeiro semestre de 2019 sem operar na Amazônia. A primeira ação do grupo por lá ocorreu apenas no fim de agosto, após a explosão dos casos de desmatamento e queimadas, que resultaram em cobranças e represálias internacionais ao governo brasileiro, principalmente de países europeus.
A reação foi imediata. Dias depois, garimpeiros bloquearam a BR-163, rodovia que liga a capital mato-grossense, Cuiabá, a Santarém, no Pará, em protesto contra a destruição de equipamentos nas operações do Ibama.
Suspeitos de crime recebidos no Planalto
Em meados de setembro, lideranças de garimpeiros foram recebidas no Palácio do Planalto para uma reunião com os ministros Onyx Lorenzoni, então na Casa Civil, Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Eles se sentaram à mesa com um empresário investigado por compra de ouro ilegal e um dos primeiros invasores da terra indígena Yanomami.
A reunião foi mantida em sigilo – os nomes dos participantes só vieram à tona dois meses depois, em novembro, quando um repórter da revista Época os obteve usando a Lei de Acesso à Informação.
‘Quem é o cara do Ibama que está fazendo isso?’, perguntou Bolsonaro a garimpeiros.
Enquanto a cúpula do governo abria as portas da presidência a garimpeiros ilegais e invasores de terras indígenas, agentes do Ibama relataram que o exército se recusou a apoiar operações na Amazônia que envolviam a destruição de máquinas usadas em crimes ambientais.
Ainda em setembro, um outro ex-policial militar recém-nomeado para comandar o Ibama no Pará foi exonerado após admitir em audiência pública que recebera ordem para interromper a destruição de equipamentos apreendidos em garimpos ilegais. “Fiquem certos de que isso vai cessar. O trabalhador merece respeito, e terá o respeito do governo federal. Eu sou soldado e eu sei cumprir ordem, a ordem que recebi foi para parar com isso daí”, bravateou o então superintendente, Evandro Cunha.
Em novembro, foi a vez do próprio Bolsonaro ameaçar fiscais que haviam destruído maquinário apreendido com criminosos. “Quem é o cara do Ibama que está fazendo isso?”, perguntou a garimpeiros que foram se queixar na porta do Palácio da Alvorada, onde o presidente costuma falar com apoiadores. “Se me derem as informações, tenho como…”, disse Bolsonaro, deixando no ar a perseguição a um servidor que havia cumprido a lei.
As queixas tiveram resultado. O Ibama voltou a paralisar as ações do GEF, e os agentes do grupo só foram a campo novamente em fevereiro de 2020, em operação na terra indígena Ituna-Itatá, no Pará, durante a qual o antropólogo bolsonarista Edward Luz foi preso como invasor.
Exonerado tentou alterar norma sobre destruição
Em abril de 2019, Bolsonaro já havia criticado ação do Ibama na Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia, que resultou na destruição de caminhões e tratores usados para roubar madeira. À época, ele e o ministro do Meio Ambiente ameaçaram instaurar processo administrativo contra os agentes que participaram da operação. “Não é para queimar nada, maquinário, trator, seja o que for”, afirmou o presidente.
Documentos analisados com exclusividade pelo Intercept mostram que o então diretor Olivaldi Azevedo, agora exonerado, cumpriu a ordem. Em ofício encaminhado à presidência do Ibama em 18 de abril de 2019, cinco dias após a fala de Bolsonaro sobre a operação em Rondônia, Azevedo apresentou proposta de alteração da Instrução Normativa que regulamenta a destruição de equipamentos. Fez isso sem consultar a área técnica do Ibama, segundo relatos de servidores.
Entre outras mudanças sugeridas para dificultar a aplicação da medida, ele incluiu artigo (até então inexistente) que previa abertura de sindicância ou processo administrativo disciplinar contra fiscais em caso de descumprimento das novas regras.
Em análise inicial, procuradores da Advocacia Geral da União, a AGU, apontaram erros na instrução processual e falta de justificativa para a mudança. Devolvida para aperfeiçoamento do texto, a proposta voltou a tramitar internamente apenas no início de outubro passado, quando a destruição de equipamentos de criminosos reapareceu no noticiário. Em março foi apresentada nova minuta, que continua em análise.
Azevedo não conseguiu implementar a medida. Em 13 de abril, a repercussão da destruição de equipamentos no sul do Pará derrubou o tenente coronel aposentado da PM de São Paulo do cargo de diretor de Proteção Ambiental do Ibama.
Na véspera, reportagem do Fantástico, da Rede Globo, havia mostrado os resultados da operação. Em depoimento aos fiscais, um dos posseiros admitiu: “Com aquela conversa do governo federal, do ministro, de redução de 5% das áreas indígenas, a gente está com essa esperança, essa expectativa, de que um dia aconteça, para realmente o governo legalizar o pessoal aqui dentro. Enquanto isso, a gente está ocupando aqui”. Uma semana depois, o programa exibiu outra reportagem sobre o esquema de grilagem nas terras indígenas revelado pela fiscalização ambiental.
Essa operação, realizada por vinte dias nas terras indígenas Apyterewa, Kayapó, Araweté e Trincheira-Bacajá, resultou, até a semana passada, na destruição de 12 escavadeiras, sete tratores, um caminhão, três balsas, nove motocicletas, uma caminhonete, 22 motores e dez motosserras, além de estruturas como acampamentos e pontes clandestinas. Os agentes do Ibama também apreenderam 23 armas.
Ordens de fiscalização caíram de 511 para 396 na comparação dos primeiros 105 dias de 2019 e 2020.
Apesar desses resultados, dados do Ibama obtidos pelo Observatório do Clima mostram que as ordens de fiscalização, documento que autoriza operações, caíram 22,5% em todo o país, de 511 para 396, na comparação dos primeiros 105 dias de 2019 e 2020.
Os autos de infração tiveram queda de 10% – foram de 2.439 (primeiros 105 dias de 2019) para 2.196 (mesmo período em 2020). Já a comparação pelo valor das multas mostra que houve redução de 42% de um ano a outro – de R$ 713,4 milhões para R$ 412 milhões.
No primeiro ano do governo Bolsonaro já havia sido registrado o menor patamar de multas ambientais das últimas duas décadas, com queda de 17% em relação a 2018. As consequências do enfraquecimento da fiscalização e do estímulo a criminosos ambientais são óbvias: após o maior aumento da devastação na Amazônia em onze anos apurado em 2019, os alertas de desmatamento subiram 51% no primeiro trimestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
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