O governo Bolsonaro jogou para maio de 2021 a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD, que estabelece regras mínimas para uso e tratamento das nossas informações pessoais. A lei, aprovada em 2018, começaria a valer em agosto deste ano, e obrigaria empresas e o próprio governo a só usarem dados seguindo alguns princípios, como o de informar seus titulares e só utilizá-los só para o fim para o qual foram coletados. Sem ela, segue a vigorar o vale-tudo. Você não é dono da sua vida digital.
A decisão, tomada de forma arbitrária e sem debate com a sociedade, foi embutida na medida provisória 959, publicada hoje, e assinada por Paulo Guedes e por Bolsonaro. A MP a princípio nada tem a ver com proteção de dados: ela estabelece a operacionalização do pagamento da renda básica emergencial. Por alguma razão, Bolsonaro e Guedes resolveram aproveitá-la para tirar da frente a LGPD.
O adiamento é especialmente sensível porque, com a pandemia do novo coronavírus, governos e prefeituras estão fazendo parcerias com empresas de telefonia e tecnologia para monitorar a localização das pessoas. A justificativa é controlar o isolamento social, principal medida para reduzir a incidência da doença. Uma lei de proteção de dados aprovada garantiria que essas informações só fossem coletadas com autorização, e só pudessem ser usadas para o combate ao coronavírus. Sem isso, não há garantia legal de que os dados, extremamente sensíveis, não possam ser usados para outros fins, ou mesmo repassados a outras instâncias do governo, ou empresas.
Ainda que sejam anônimos, como determina a Lei Geral de Telecomunicações, dados de localização são extremamente sensíveis. É muito fácil identificar uma pessoa com base em seu padrão de movimentação. Por isso, é importante garantir que eles serão coletados com segurança e terão seu uso limitado. Esse seria justamente o papel da LGPD, que passou dez anos sendo discutida entre a sociedade civil e o congresso, antes de ser aprovada em 2018. Mas Bolsonaro aproveitou a pandemia para asfixiá-la.
O adiamento da vigência da lei já vinha sendo discutido no Congresso. Há um projeto no Senado, proposto por Antonio Anastasia, do PSD mineiro, que propunha o adiamento para janeiro de 2021. Na Câmara, um semelhante, do deputado mato-grossense Carlos Bezerra, do MDB, queria adiar a vigência para agosto de 2022.
Ambos argumentam que o adiamento é necessário para dar mais tempo para as empresas se adaptarem. O projeto de Anastasia foi proposto por causa da pandemia. Bolsonaro não apenas ignorou um e outro como não apresentou justificativa para o jabuti – termo que se usa em política para se referir a uma medida enxertada em outra – que colocou na MP 959.
Chama a atenção que, dias atrás, o governo de extrema direita argumentou o direito à privacidade para barrar um acordo de cooperação com operadoras que vinha sendo costurado pelo ministro Marcos Pontes, da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.
À época, a ação foi útil para emplacar uma narrativa favorável para que o bolsonarismo lançasse campanha intensa contra governadores adversários – especialmente o tucano João Doria, em São Paulo – por causa das parcerias com operadoras de telefonia para monitorar a covid-19. Para o Bolsonaro de então, a privacidade era santa. Para o Bolsonaro de hoje, não.
Bolsonaro se aproveita da maior facilidade na aprovação de medidas provisórias por causa da pandemia para governar de forma autocrática.
Se estivesse realmente preocupado, o presidente teria tirado a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a ANPD, do papel. A lei que cria o órgão responsável por supervisionar, orientar e aplicar sanções por violações de privacidade foi sancionada em julho do ano passado, mas até agora o governo não indicou a composição do conselho. Na prática, isso faz com que ela não exista. Pressionado pelo núcleo liberaloide do Ministério da Economia, Bolsonaro ainda vetou as sanções mais rígidas que poderiam ser aplicadas pela ANPD. O impedimento ao uso de dados de usuários por seis meses por empresas que violassem a privacidade dos usuários, por exemplo, caiu.
Na canetada desta quarta-feira, Bolsonaro voltou a ignorar a autoridade fiscalizadora.
Também há poucos dias, o governo liberou a base de dados das telefônicas para o IBGE – medida tão abusiva que foi derrubada pela ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal. É o mesmo governo que, também com uma canetada, criou uma megabase de vigilância que reúne mais de 50 tipos de bases de dados diferentes do cidadão.
Agora, Bolsonaro se aproveita da maior facilidade na aprovação de medidas provisórias – o processo de tramitação delas no Congresso foi simplificado por causa da pandemia – para governar de forma autocrática, sem debate e escrutínio público. Há duas semanas, ao comunicar a suspensão da parceria com as telecoms, Marcos Pontes postou no Instagram: “estamos lutando por vocês e pela sua saúde, preservando sua privacidade”. Era mentira.
Correção: 30 de abril de 2020, 17h
O projeto proposto por Antonio Anastasia propunha o adiamento para janeiro de 2021, e não fevereiro. O texto foi corrigido.
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