A covid-19 chegou em São Paulo pelos mais ricos: o primeiro paciente com a doença veio da Itália e foi admitido no hospital de elite Albert Einstein. Os primeiros casos da doença também foram registrados em hospitais privados. Há algumas semanas, porém, o médico José* percebeu que esse cenário iria mudar quando atendeu os primeiros pacientes com sintomas do novo coronavírus em uma Unidade Básica de Saúde, ou UBS, na periferia na zona norte de São Paulo, onde trabalha há um ano.
Até o ano passado, José atuava na Brasilândia, o bairro onde mais se morre por covid-19 em São Paulo. O distrito contabilizou até dia 24 de abril o maior número de mortes pelo vírus na capital paulista: 67 óbitos – mais de 25 vezes proporcionalmente do que no Morumbi, bairro nobre na zona sul, que é o que tem mais casos registrados. Na Brasilândia, 51,5% das pessoas infectadas com o vírus morreram. No Tucuruvi, onde o médico atua hoje, são 25 mortes e 82 confirmados – uma taxa de mortalidade de 30%. No Morumbi, bairro nobre da cidade, esse índice fica em 2%.
Durante a pandemia, a falta de infraestrutura do sistema de saúde, fundamental para manter vivos os pacientes atingidos pela forma mais grave da doença, a dificuldade em cumprir o isolamento social em casas pequenas, a necessidade de trabalhar e a predominância da população negra no distrito – a covid-19 é mais letal para pretos e pardos – podem ser os motivos de tantas mortes.
Conversei com o médico pela primeira vez há quase um mês, quando ele estava preocupado em evitar que os profissionais que trabalhavam em sua unidade de saúde fossem infectados – eles não tinham equipamentos de proteção individual, os EPIs –, e de evitar o contágio entre a população do distrito. Junto com outros médicos e estudantes de medicina negros, José se organizou para produzir conteúdos online para prevenção ao covid-19. Ele já previa que a situação na periferia seria caótica.
“A gestão da unidade é totalmente omissa, não orienta seus profissionais e não fornece equipamentos de proteção”, me disse o médico, referindo-se ao Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde, o Iabas, organização social de saúde terceirizada que administra a unidade onde trabalha e mais 13 UBSs na região. Na semana passada, falamos novamente. Em menos de 30 dias, suas preocupações se multiplicaram. Hoje ele teme ter que fazer escolhas diante da demanda superior à capacidade de absorção dos serviços de saúde. “Teremos que escolher a quem ofertar os serviços, desde leitos em enfermarias e leitos em UTI, e não há qualquer respaldo legal para essa escolha no Brasil”. Leia seu relato a seguir.
Foi em uma sexta-feira, 27 de março. Era o cenário normal de trabalho na UBS: consultas regulares, embora eu já pedisse à gerência o cancelamento da agenda para casos que não fossem de doença descompensada. Ou seja, doenças que não estão controladas. Por exemplo, uma pessoa hipertensa cuja pressão não se mantém dentro dos parâmetros de normalidade. Os profissionais de saúde da unidade não estavam levando a sério a pandemia. Até que chegou o primeiro caso grave – de lá pra cá, a atitude mudou e o clima também.
Uma senhora de 54 anos deu entrada com indicação de entubação e ventilação mecânica, de acordo com os protocolos de manejo internacionais e nacionais. Só tinha eu de médico na unidade.
Acontece que na UBS onde trabalho não tem como fazer esses procedimentos e ainda não havia um cômodo isolado para atender casos suspeitos de coronavírus. Para se ter uma ideia, a sala de medicação, que é onde ficam as saídas de oxigênio, foi potencialmente contaminada. Se chegasse outro caso que precisasse ser atendido naquela sala, não teria como garantir a segurança do novo paciente por risco de contágio pela covid-19.
Só podemos ir ao banheiro, comer ou beber água uma vez a cada 12h para não ter que descartar itens do EPI.
Naquele dia, aguardamos o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o Samu, por quatro horas, concorrendo com o resto da cidade, inclusive com os trotes, por não haver linha direta das UBSs com o serviço. Acabou que a paciente foi removida estável, mas ainda com indicação de entubação e ventilação mecânica. Foi internada no Hospital do Mandaqui, o de referência da região, e teve alta após uma semana.
A partir de então as coisas começaram a mudar na UBS, do ponto de vista da preparação para atender os pacientes suspeitos de infecção por covid-19 – mas ainda está aquém do necessário. Não tivemos treinamento, há profissionais de saúde usando máscaras inadequadamente e não respeitando as orientações de distanciamento, potencializando o contágio entre os profissionais e os próprios pacientes.
Eu recebi de doação uma proteção facial tipo faceshield, pois a Iabas e a prefeitura não forneceram. As máscaras cirúrgicas e as do tipo N95 estão sendo racionadas e até agora não houve qualquer treinamento para uso dos poucos EPIs que temos.
Todos os dias tem gente usando errado. No dia 21 de abril, por exemplo, cheguei no trabalho e geral estava usando máscara invertida. Orientei sobre a maneira correta e arrumaram. Teve gente que discutiu comigo, mas arrumou. Mandei o guia da Organização Mundial da Saúde para confirmar o que eu dizia. No dia seguinte, 22, cheguei a UBS e máscaras invertidas mais uma vez. Falei que tava errado (de novo), e me disseram que o farmacêutico da UBS criticou a maneira que ensinei a eles, que ele viu na caixa das máscaras a maneira correta de utilizar. Fui até a farmácia falar com o farmacêutico, pedi a caixa e ele disse que viu pela figura. Na caixa está escrito que era do jeito que eu tinha orientado. Esse exemplo é sobre contar com colegas de trabalho desinformados, racistas e não ser levado a sério por ser médico negro.
Minha jornada de trabalho foi mantida: oito horas diárias com uma hora de almoço que pode ser interrompida a qualquer instante, porque sou o único médico da UBS.
Tenho dormido menos, acordado muito cedo, por volta das 3h ou 4h da manhã, o que se deve a ansiedade causada pelo momento que estamos vivendo. Mesmo assim, na semana passada, iniciei um bico de plantonista no Pronto-Socorro do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo, o Iamsp, na zona Sul de São Paulo, a 19 quilômetros de distância da UBS da zona norte. Dou esse plantão uma vez por semana, trabalhando por 12 horas. Está muito corrido por lá, tem muitos casos suspeitos de covid-19 e racionamento de EPI. Só podemos ir ao banheiro, comer ou beber água uma vez a cada 12h para não ter que descartar itens do EPI.
Minha maior angústia, no entanto, está direcionada a ter que fazer escolhas que normalmente não faria. Diante da demanda superior à capacidade de absorção dos serviços de saúde, teremos que escolher a quem ofertar os serviços, desde leitos em enfermarias e leitos em UTI, respiradores etc… E não há qualquer respaldo legal para essa escolha no Brasil.
Não somos preparados na graduação para escolher quem vai viver ou morrer. Mas diante da pandemia teremos que fazer essa escolha rotineiramente. Há o receio de adoecer e não ter leito para ser tratado ou mesmo ficar sem receber no período de afastamento, e também pela minha integridade física ser comprometida ou ameaçada por familiares de pacientes.
A crise sanitária escancara as contradições raciais na saúde.
Existe o temor de preterimento de pessoas negras ou de baixo status social em favor de não negros ou de alto status social. Porque me parece que a crise sanitária escancara as contradições raciais na saúde, no que tange acesso a serviços, racismo interpessoal entre profissionais de saúde e pacientes – já documentado diversas vezes –, e também à maior prevalência de doenças crônicas em pessoas negras, o que nos torna mais vulneráveis ao contágio e também à morte.
Normalmente, a população negra encontra barreira de acesso aos serviços de saúde que vão desde a distância, condução e preço do transporte até o desconhecimento da existência deles. Além disso, normalmente lidamos com o racismo interpessoal dos profissionais médicos (que são quem define a conduta médica) que tendem a ser de maioria branca, o que acaba sendo um entrave para a construção de uma relação médico-paciente que seja benéfica (há na literatura médica, mas também na do direito, que médicos e juízes tendem a ter mais empatia com pessoas percebidas como do mesmo grupo racial, acarretando desigualdades na qualidade do cuidado ofertado e também na intensidade das penas). E há todas as determinações sociais que predispõem a população negra a maior prevalência de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, que no caso da covid-19 são fator de risco para gravidade e óbito.
Atendi na UBS, pessoas jovens com quadro sindrômico compatível com covid-19: febre, tosse e dificuldade para respirar. Eles desempenhavam, no entanto, papel de cuidadores de familiares idosos em casa, como pais e tios. Como esses pacientes vão cumprir a quarentena de 14 dias? Acho que o governo do estado tinha que agir para ajudar essas pessoas.
Estou isolado da minha família, que está no interior de São Paulo. Converso com minha mãe algumas vezes por semana, por telefone, e há bastante preocupação: com ela por ser parte do grupo de risco e comigo por estar me expondo em função do trabalho. Pretendo continuar assim até dezembro e então reavaliar.
*O nome foi trocado para preservar a identidade do médico.
Correção: 5 de maio de 2020, 16h
Ao contrário do que estava publicado no título e no texto, José* não atende mais em uma UBS na Brasilândia, mas no Tucuruvi, bairro também da zona norte de São Paulo. Ele trabalhou na Brasilândia até 2019. A informação foi corrigida.
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