Uma imagem sinistra, capaz de representar o nível de divergência na sociedade dos Estados Unidos durante a pandemia do coronavírus, pode ser vista quando acompanhamos a cobertura da mídia na última semana. A imprensa focou sua atenção nas centenas de brancos reacionários, em alguns estados americanos, protestando contra medidas de distanciamento social – impulsionados, é claro, por tweets do presidente Donald Trump. Enquanto isso, alguns dos atos de resistência em massa mais radicais e justos que os EUA viram em décadas – da onda de greves trabalhistas à criação de redes de ajuda mútua – têm recebido só uma fração da atenção que a mídia oferece aos manifestantes extremistas.
Com base apenas na cobertura das principais redes de notícias, por exemplo, ninguém saberia que organizadores e inquilinos em Nova York estão coordenando a maior greve de pagamentos de aluguéis em quase um século, a partir de 1º de maio.
“A greve de aluguéis é um apelo por dignidade: todos nós merecemos uma casa, seja qual for a cor da nossa pele, o status financeiro ou a cultura.”
Pelo menos 40 mil famílias, que moram em prédios com mais de 1.500 unidades de aluguel, organizam as greves em todo o edifício, de acordo com Cea Weaver, coordenadora de campanha da Housing Justice For All – Moradia Justa para Todos –, uma coalizão de inquilinos e ativistas por moradia de Nova York. Além disso, mais de 5 mil pessoas se comprometeram, assinando uma promessa on-line, a não pagar o aluguel em maio.
Será impossível definir com precisão o nível de adesão à greve, mas o número de pessoas comprometidas em fazer parte do movimento indica um renascimento histórico dessa tática de resistência de inquilinos. Greves coordenadas contra o pagamento de aluguel desse tamanho na cidade de Nova York não são vistas desde a década de 1930, quando milhares de inquilinos no Harlem e no Bronx lutaram com sucesso contra o abuso de preços e a negligência dos proprietários ao se recusarem em massa a pagar o aluguel.
O número de pessoas comprometidas com a greve pode ser insignificante comparado aos milhões que não consideram a inadimplência como uma forma de greve, mas simplesmente não vão conseguir pagar o aluguel no próximo mês. Na primeira semana de abril, um terço dos locatários em todo o país – aproximadamente 13,4 milhões de pessoas – não havia pago o aluguel. E, desde então, mais 26 milhões de trabalhadores se juntaram ao número total de desempregados.
Enquanto isso, o envio de cheques de estímulo de US$ 1.200 pelo governo está desorganizado, em muitos casos atrasado, ou não é suficiente. O aluguel mensal médio de um apartamento de um quarto na cidade de Nova York, por exemplo, era de US$ 2.980 no ano passado. A oferta do governo federal, além de insuficiente, também está, é claro, inacessível para muitos imigrantes. Como já podemos esperar que o não pagamento do aluguel de maio atinja uma escala sem precedentes, a ideia de organizar uma greve de aluguéis pode parecer, à primeira vista, irrelevante.
Os organizadores da greve, no entanto, esclarecem a importância da ação. O slogan da campanha diz tudo: “Não pode pagar? Não pague!”. A transformação do não pagamento em greve – um ato de resistência coletiva – serve como forma de rejeição à ética capitalista que atribui falha moral à incapacidade de um indivíduo em pagar um proprietário de imóvel.
“Não precisamos organizar uma greve de aluguéis para poder dizer que milhões de nova-iorquinos não pagarão o aluguel em 1º de maio”, disse Weaver. A chamada para a greve, portanto, coloca uma questão crucial para os inquilinos que não podem pagar aluguel, Weaver explica: “Você quer fazer isso sozinho? Ou você quer fazer isso conectado a um movimento de pessoas que também estão na sua situação e pedem uma solução política mais profunda e transformadora. É melhor se pudermos fazer isso juntos”.
Para os organizadores nas linhas de frente da crise de moradia em Nova York, que é bem anterior à pandemia, a resposta é clara. “A greve de aluguéis é um apelo por dignidade: todos nós merecemos uma casa, seja qual for a cor da nossa pele, o status financeiro ou a cultura.”, salienta Donnette Letford, imigrante não-registrada da Jamaica e membro do grupo “Comunidades pela Mudança” de Nova York.
Até um mês atrás, Letford trabalhava como cuidadora na casa de uma idosa. Sua empregadora, de quem cuidava há mais de dez anos, faleceu vítima da covid-19. Ela agora está desempregada, em luto, e em quarentena por ter cuidado da sua empregadora até a morte. “Em qualquer circunstância, uma perda como essa é difícil de suportar, mas durante uma pandemia é devastadora”, observou Letford, que é mãe de um filho, em um e-mail pedindo a todos que participem da greve. “A crise da covid-19 está deixando claro o que muitos inquilinos já sabiam há muito tempo: estamos todos a apenas a um passo – seja ele ficar desempregado, ou sofrer uma emergência médica – de perder nossa moradia”.
Os organizadores do movimento estão pedindo a quem pode pagar o aluguel de maio que se recuse a fazê-lo, em solidariedade a todos que não podem. A medida visa pressionar os governos municipal e estadual para que respondam ao agravamento da crise de moradia da única maneira apropriada: cancelando a cobrança dos aluguéis.
“Diante do crescimento do desemprego e de uma crise nunca vista no número de despejos, estão oferecendo quase nada.”
Antes de iniciar a campanha pela interrupção em massa dos pagamentos de aluguéis, os defensores dos direitos à moradia em Nova York pediram, junto com um pequeno número de legisladores, a suspensão temporária da cobrança de aluguel. O governador de Nova York, Andrew Cuomo, chegou a implantar uma importante moratória nas ações de despejo, mas sem o cancelamento do aluguel durante o período. Desta forma, os pagamentos atrasados serão acumulados, e a ameaça de despejos no futuro atinge milhões de inquilinos que perderam todas as fontes de renda. A greve dos aluguéis é uma ação direta para exigir uma tomada de atitude pelo governo do estado.
“Ainda estamos defendendo o cancelamento do aluguel – #CancelRent – e a manutenção de nossas casas. Essa é a demanda da greve do aluguel. Até agora, nossos pedidos de ajuda foram ignorados em Albany”, explica Weaver, em referência à capital e sede do governo do estado. “Na verdade, eles fizeram o oposto de nos ignorar. O governador Cuomo forçou a aprovação de um orçamento que prejudica os inquilinos de baixa renda e os nova-iorquinos sem-teto. Diante do crescimento do desemprego e de uma crise nunca vista no número de despejos, estão oferecendo quase nada.”
Como as históricas greves dos aluguéis do século XX, que levaram à criação de algumas das primeiras leis sobre o tema em Nova York, a greve que se aproxima faz exigências específicas. De acordo com uma petição do grupo Moradia Justa para Todos, os grevistas querem o cancelamento do aluguel em todo o estado por quatro meses, “ou durante a crise da saúde pública – o que durar mais”; um congelamento dos valores de aluguel, com a garantia de que todo inquilino tenha o direito de renovar seu contrato pelo mesmo preço; e que o governo “abrigue urgente e permanentemente todos os nova-iorquinos que vivem em situação de rua, e invista em moradias públicas e sociais em todo o estado”.
“De uma forma ou outra, estamos solicitando algum tipo de intervenção do governo”, explica Weaver. “Mas precisamos garantir que essa intervenção aconteça dentro de nossos termos. Estamos apelando ao não pagamento coletivo dos aluguéis para forçar uma crise.”
As reações preocupadas com os pedidos de cancelamentos da cobrança dos aluguéis e com a greve de pagamentos são tão previsíveis quanto infundadas. A mais comum é a afirmação de que pequenos proprietários, que sobrevivem e pagam suas hipotecas com as receitas da cobrança de aluguel, estarão arruinados. No entanto, o governo tem capacidade de fornecer ajuda e apoio aos proprietários nessas situações: os pagamentos de hipotecas também podem ser cancelados.
Alguns dos melhores legisladores do país estão tentando aprovar projetos de lei que combinam o cancelamento de aluguéis e hipotecas em nível nacional. Na quarta-feira, a deputada democrata Ilhan Omar, de Minnesota, apresentou a “Lei de Cancelamento de Aluguel e Hipoteca”, que perdoaria a inadimplência e também ofereceria apoio aos proprietários prejudicados pelos pagamentos perdidos.
A aprovação dessa legislação em Washington talvez seja um objetivo inatingível, mas trata-se de algo mais viável em nível estadual. O problema é a vontade política: se Cuomo, por exemplo, fosse realmente o “herói da crise” aclamado por tantos, ele poderia aplicar a ideia rapidamente em Nova York. Enquanto isso, não é preciso dizer que grandes empresas imobiliárias e proprietários poderosos podem absorver sem maiores problemas a inadimplência dos pagamentos por alguns meses, o que é justo, após anos e décadas de acumulação e exploração de capital às custas dos inquilinos.
Antes da pandemia – e graças ao trabalho incansável dos sindicatos, ativistas e alguns Democratas progressistas eleitos em Nova York em 2018 – várias reformas legislativas a favor dos inquilinos foram aprovadas no ano passado. Essas leis, embora bem-vindas, foram apenas um pequeno passo na direção certa para desfazer décadas de cumplicidade entre os políticos de Nova York e o poderoso lobby imobiliário. Para os organizadores da greve dos aluguéis, o ideal não é, de forma alguma, o retorno à situação pré-crise. Como Weaver lembra: “Exigimos não voltar ao mundo em que vivíamos antes da covid – um mundo com 92 mil nova-iorquinos sem-teto e milhões de pessoas que, na falta de apenas um salário mensal, seriam despejadas”.
“Exigimos não voltar ao mundo em que vivíamos antes da covid.”
Phara Souffrant Forrest, enfermeira e ativista dos direitos de inquilinos, que atualmente está em campanha para se eleger à Assembleia do Estado de Nova York, pediu aos eleitores em seu distrito de Crown Heights, no Brooklyn, que assinassem uma petição pelo cancelamento dos aluguéis. “Recebemos uma grande quantidade de apoio, mas era como se estivéssemos falando sozinhos, sem nenhuma resposta”, explicou, reclamando da falta de ação dos parlamentares. Ela observou que, antes da pandemia, 44% das pessoas de seu distrito já estavam com mais de um terço da renda comprometida com custos de aluguel e serviços públicos. Quatro em cada dez dos 43 milhões de locatários de todo Estados Unidos estão na mesma situação.
Ao lado dos grevistas contra o pagamento dos aluguéis, Souffrant Forrest está lutando pelo reconhecimento explícito de que as estruturas de poder que organizam o acesso à moradia precisam ser derrubadas – agora e muito depois da crise do coronavírus. “Precisamos apoiar candidatos que acreditam que moradia é um direito humano”, disse ela. Sabendo que hoje existem poucos políticos deste tipo, a enfermeira e ativista telefonou para seus vizinhos e falou sobre a greve dos aluguéis.
“Morar é um direito humano” já é há muito tempo a bandeira de líderes de grupos de inquilinos e ativistas pela justiça social. O que significaria, porém, ter um sistema no qual a moradia fosse, de fato, tratada como um direito humano universal? Você não precisaria pagar para ter acesso a esses direitos, por exemplo. Uma greve de aluguéis não é apenas um pedido para que o direito humano à moradia seja reconhecido. Trata-se de uma reivindicação urgente e baseada na vida real. A greve tem demandas, sim, mas também possui um fim em si mesma.
Tradução: Antenor Savoldi
Correção: 2 de maio, 15h05
Ilhan Omar é uma deputada democrata (e não um deputado). A informação foi corrigida.
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