Os militares que trabalham na força-tarefa humanitária de amparo a refugiados venezuelanos, em Roraima, estão se expondo deliberadamente ao novo coronavírus como forma de se imunizarem contra a doença. Fazem isso por ordem do general Antônio Manoel de Barros, comandante militar da operação Acolhida. O oficial ignora os riscos de um surto da doença na tropa se disseminar desenfreadamente entre os 6.096 migrantes abrigados na região.
A ideia é buscar o que na literatura médica se chama de imunidade de rebanho ou de grupo. Ela é atingida quando a maioria de uma determinada população já criou defesas contra uma doença infecciosa. Isso acaba por extinguir localmente o vírus ou bactéria causador dela por falta de organismos suscetíveis para infectar e se reproduzir.
O Reino Unido tentou adotá-la. Porém, após um surto de infecções que que atingiu inclusive o primeiro-ministro Boris Johnson, ela foi trocada pelo isolamento social em 23 de março. Além disso, a Organização Mundial da Saúde e cientistas que pesquisam a doença ainda têm dúvidas se pessoas que tiveram a covid-19 e se curaram estão de fatos imunes a novas infecções pelo vírus.
Sem dar bola a nada disso, Barros, de 57 anos, defendeu que seus comandados buscassem se contaminar numa gravação de pouco mais de três minutos distribuída aos integrantes militares e civis da operação Acolhida em 18 de abril.
O general, que aparece com o rosto coberto por uma máscara camuflada, afirma estar com covid-19. E comemora: “É como eu digo, vale para mim, vale para vocês. Nós não estamos infectados, nós estamos sendo imunizados para ações futuras. Essa é a visão que nós temos que ter”.
No vídeo, o general relata que, além dele, 55 militares dos 567 envolvidos na operação estão com covid-19. Ele diz ainda que “três militares foram evacuados porque tinham algum tipo de risco inerente à sua condição física e de uma maneira preventiva”, sem esclarecer, no entanto, qual o estado de saúde deles.
Em seguida, o oficial diz que quatro refugiados tiveram diagnóstico positivo para coronavírus. Mas, ao se referir aos migrantes, Barros usa a expressão “contaminados”, e não “imunizados”: “Essa semana foi muito intensa, com muito trabalho. O covid (sic) chegou sim aos abrigos, nós temos aí quatro pessoas contaminadas, sendo duas crianças”.
Na segunda, 4 de maio, os militares infectados já eram 98 e a de “imunizados”, ou seja, que já tiveram a covid-19 e se recuperaram, 94, mostrando como a fala do general incentivou o crescimento do número de subordinados com a doença na tropa. Ao todo, Roraima tinha 740 casos confirmados da doença até o começo da semana. Os militares são 26% deles – ou seja, respondem por mais de um quarto dos casos confirmados no estado.
General de divisão do Exército, Antônio Barros assumiu a coordenação operacional da Acolhida em janeiro, substituindo o general Eduardo Pazuello, que foi indicado secretário-executivo – o segundo cargo na hierarquia – do Ministério da Saúde após a demissão de Luiz Henrique Mandeta. Em fevereiro do ano passado, Barros foi o responsável pela Operação Muquiço, que resultou nas mortes do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo em abril de 2019, no Rio de Janeiro.
‘Imunização’ aumenta riscos para refugiados
A “autoimunização” já seria preocupante se o risco de um surto da doença envolvesse apenas a tropa. O sistema de saúde de Roraima já era precário antes mesmo do início da pandemia. Ao todo, o estado tem 15 leitos de UTI prontos para atender pacientes de covid-19, número que planeja ampliar para 24.
Mas, ao encorajar a exposição ao vírus, Barros coloca em risco os refugiados venezuelanos, como frisam integrantes de ONGs que atuam nos abrigos da operação Acolhida em Boa Vista e em Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela.
Uma médica e outros três outros profissionais da área de saúde com quem conversei disseram, sob a condição de anonimato, que militares infectados mas assintomáticos circulam entre civis e refugiados sem máscaras. E ainda debocham dos integrantes de ONGs. “Há um tenente que se acha o Rambo. Ele ignora as medidas preventivas e afirma ser imuno-recuperado (sic)”, me disse um deles. “A maior parte dos migrantes chega aos abrigos da força-tarefa humanitária subnutrida, com imunidade baixa, exaustas e já doentes após caminharem por dias”, lembrou outro profissional de saúde.
Segunda uma médica que atende os migrantes, testes para covid-19 só são realizados quando os refugiados apresentam sintomas compatíveis com a doença. Assim, é muito provável que os dados apresentados pela Acolhida – 12 casos da covid-19 entre mais de 6 mil refugiados – estejam subdimensionados.
“Os testes são muito caros, custam em média R$ 400 em alguns poucos laboratórios privados. Na rede pública de Roraima, eles são aplicados apenas em um número restrito de pacientes civis. O mesmo acontece com os refugiados abrigados. Já os militares têm mais acesso aos testes”, afirmou a médica.
Ela me contou que Barros defende abertamente a adoção de imunidade de rebanho. No entanto, projeções matemáticas mostraram que mesmo no Reino Unido ela causaria a altas taxas de hospitalização e necessidade de cuidados intensivos, sobrecarregando a capacidade dos serviços de saúde e levando-os ao colapso.
‘Figura de linguagem’
Apesar da operação Acolhida afirmar que todos os pacientes suspeitos são submetidos a testes com base nos protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, os dados que ela apresentou reforçam a tese dos integrantes de ONGs que atuam na força-tarefa. Um exemplo é a quantidade de militares submetidos à testagem.
De acordo com a assessoria da operação, 567 militares participam da força-tarefa humanitária. Desses, 114 foram submetidos a testes – , aproximadamente 20% do contingente. Já entre os 6.096 refugiados, apenas 22 foram testados, o que equivale a menos de 0,2% do grupo.
Quase a metade dos mais de seis mil refugiados atendidos nos abrigos da força-tarefa humanitária são crianças e adolescentes. Outras 131 pessoas têm mais de 65 anos e fazem parte dos grupos de risco.
Antes do fechamento da fronteira com a Venezuela, na metade de março, cerca de 500 imigrantes entravam no Brasil diariamente via Pacaraima, no norte de Roraima. No ano passado, quando estive no estado para mostrar a rotina de violência imposta aos refugiados, os migrantes ocupavam barracas montadas sob coberturas metálicas. O distanciamento entre as estruturas era pequeno e os venezuelanos se aglomeravam em filas para comer e fazer a higiene pessoal.
Segundo os militares, o distanciamento entre as barracas foi aumentado e uma área foi criada para garantir o isolamento dos migrantes que apresentam sintomas da doença ou tiveram infecção por coronavírus confirmada. No início de abril, um relatório epidemiológico estimou que até 15% dos 650 mil moradores de Roraima serão contaminados. O documento é assinado por duas médicas – uma delas oficial do Exército.
Questionada sobre o vídeo, a assessoria de imprensa da Acolhida informou que “não há exposição deliberada de pessoal ao coronavírus”. “Todos os protocolos estabelecidos no plano emergencial de contingenciamento para a covid-19, para medidas de controle em diversas situações e locais, estão sendo seguidos, tais como uso de máscaras, EPI e álcool 70%”, diz a nota, que minimiza a fala de Barros, descrita como “uso de figura de linguagem para emulação do moral e espírito dos integrantes da Operação” e “ mensagem de estímulo”.
Uma definição ambígua para uma instituição baseada em hierarquia em que “missão dada é missão cumprida” como o Exército.
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