João Filho

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Coronavírus: como Samy Dana promoveu um estudo desastrado usado para defender o fim do isolamento

Até matemático que participa da pesquisa criticou o uso indevido dos resultados. Ainda assim, Amazonas e Paraná seguiram recomendação do economista.

Coronavírus: como Samy Dana promoveu um estudo desastrado usado para defender o fim do isolamento

A crise do coronavírus

Parte 111


Coronavírus: como Samy Dana promoveu um estudo desastrado usado para defender o fim do isolamento

Ilustração: The Intercept Brasil

No momento em que o país bate recorde de mortos por dia, os ricos parecem ter decidido dar um basta nas medidas de isolamento social. Em todo o país, eles estão se mobilizando para pressionar as autoridades a afrouxar o isolamento social para o bem da economia. Carreatas com carros de luxo protestando contra a quarentena e depoimentos angustiados de empresários se intensificaram nas últimas semanas. Em Belém, no auge do pico de infecção na cidade, o prefeito anunciou que o serviço das empregadas domésticas será considerado essencial durante a pandemia. A casa grande não aguenta ficar tanto tempo sem uma boa faxina.

Mesmo havendo um consenso científico indicando que o afrouxamento das medidas de isolamento resultará em mais mortes, os ricos estão dispostos a pagar pra ver. Afinal de contas, como afirmou o presidente da XP nesta semana, o país está indo bem no controle do coronavírus e o pico da doença nas classes altas já foi atingido. Apesar da ciência continuar fazendo previsões catastróficas para o Brasil, o mercado financeiro já não vê mais motivo para alarmismo.

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Quinta-feira em Brasília, um dia após o país ter batido o recorde de mortes por dia, Bolsonaro assinou um decreto que amplia o rol de atividades essenciais. O presidente juntou uma penca de empresários sedentos pela volta das atividades econômicas e foi até o STF sem avisar ninguém. Como se fosse o chefe do tribunal, passou a transmitir a reunião ao vivo na internet sem o aval do presidente da casa.

Apesar do gesto autoritário, o ministro Dias Toffoli recebeu a todos com cordialidade e afirmou que o governo Bolsonaro e as instituições estão trabalhando muito bem no combate à pandemia, “apesar do que sai na imprensa”. Até porque o pior para as elites já passou, não é mesmo, Toffoli?

Sem o respaldo da ciência para justificar o afrouxamento do isolamento social, as elites decidiram contratar o seu próprio estudo científico. De repente, um estudo encomendado pela corretora de investimentos Easynvest passou a circular nas redes sociais e na mídia com grande credibilidade. Quem está a frente desse estudo é o economista Samy Dana, que ficou famoso dando dicas de investimento em jornais da Rede Globo e hoje é mais conhecido por ser um dos comentaristas do Pânico da Jovem Pan. Apesar de ser um contratado da Easynvest, empresa que encomendou o estudo, Samy garante que sua equipe não recebeu nenhum centavo pelo trabalho.

Além do economista, participam do estudo um matemático e outros quatro médicos. Eles defendem que o modelo de análise criado para prever o número de mortes é muito mais robusto que todos os que já foram apresentados. Segundo eles, vai morrer muito menos gente do que prevê o consenso científico atual. Os estudos da Imperial College of London, por exemplo, que têm sido a principal referência para praticamente todos os governantes do mundo, estariam redondamente errados em suas previsões alarmistas. “Fiquem leves!”, diria Samy para os cientistas do Imperial College, parafraseando Regina Duarte.

O problema é que os fatos apontam exatamente na direção contrária do que diz o economista do Pânico. A universidade londrina previu que o sistema de saúde brasileiro iria começar a colapsar a partir do dia 21 de abril. No dia 23, cinco capitais brasileiras já estavam com seus sistemas à beira do colapso. Na semana passada, a mesma universidade previu que o Brasil atingiria 10 mil mortos até o dia de hoje. Na quinta-feira, o país já havia atingido o número de 9.146 mortos. Já o estudo de Samy previu que Manaus atingiria o pico de mortes entre os dias 21 e 30 de abril. Mas, em 4 de maio, a cidade continuava batendo novos recordes de mortos diários. A título de curiosidade: Samy também criou um modelo para prever resultados dos paredões do BBB que se mostrou bastante falível.

Ou seja, agora temos na praça um estudo capitaneado por um contratado da Easyinvest que refuta os epidemiologistas de uma das melhores universidades do mundo. Não precisa ser alguém familiarizado com os meandros da ciência para confirmar que o modelo de Samy ainda não tem valor científico. Basta ser familiarizado com a lógica básica.

O estudo sequer foi analisado por seus pares, até porque até agora não foi publicado por nenhuma revista científica — um requisito básico para atestar a validade de um estudo científico. Nenhum dos pesquisadores envolvidos tem qualquer trabalho publicado na área de epidemiologia, o que seria fundamental para quem tem a pretensão de refutar o consenso científico elaborado pelos grandes epidemiologistas do mundo. Qualquer pessoa séria e razoável entende que um estudo revisado por outros cientistas e publicado em revistas científicas tem muito mais credibilidade que um encomendado à toque de caixa por uma corretora de investimentos e feito por não especialistas em epidemiologia.

Por mais bizarro que isso possa parecer, a Imperial College chegou a apontar os erros do modelo da Easynvest em seu último relatório sobre o Brasil. Segundo a análise da universidade londrina,  as evidências são consistentes em apontar a necessidade de um lockdown no país. A conclusão é a de que, se não houver endurecimento nas medidas de isolamento, as infecções continuarão a se espalhar exponencialmente.

Mesmo com todas suas limitações, o estudo da Easynvest tem sido exaustivamente explorado por quem deseja o fim do isolamento social. Samy tem feito um marketing agressivo em torno dessa pesquisa, algo típico da turma do mercado financeiro. Ele conseguiu emplacar na mídia a ideia de que o seu modelo é o mais robusto de todos que já apareceram no mundo. Na CNN, o debatedor bolsonarista Caio Coppolla apresenta quase que diariamente o estudo de Samy como sendo verdade absoluta. O governador do Amazonas, que é bolsonarista e quer o fim do isolamento, tem se baseado no estudo para tomar decisões. Com base no modelo de Samy Dana, o governador anunciou um plano para flexibilizar o isolamento a partir do dia 14 de maio. Uma curiosidade: Samy Dana já teve negócios com o atual secretário da Fazenda do Amazonas. Eles foram sócios de uma empresa que presta consultoria em gestão empresarial.

O governador do Paraná, o bolsonarista Ratinho Jr., também quis ouvir Samy para tomar as decisões no enfrentamento à pandemia no estado. A Câmara dos Deputados o convidou para apresentar o estudo numa comissão especial sobre a covid-19. De repente, um comentarista do Pânico virou a grande referência brasileira sobre estudos epidemiológicos. Esqueçam o virologista Átila Iamarino. Um “PhD em Business” — é assim que Samy gosta de se apresentar — virou para os defensores do fim da quarentena o grande especialista em covid-19 do país.

Apesar de não possuir valor científico, o estudo de Samy Dana não é de todo ruim. Há pessoas sérias envolvidas nele, comprometidas com a ciência. A questão é que ele é ainda um estudo prévio, feito às pressas por não especialistas em epidemiologia, e que jamais poderia ter ganhado a importância que ganhou no debate público sobre a pandemia. O modelo de Samy virou o queridinho entre os que querem a reabertura da economia, porque os picos de infecção aparecem nele muito antes do que prevê o consenso científico. Isso justificaria antecipação do fim da quarentena.

Como de costume, os ricos não estão dispostos a pagar pela crise econômica e preferem empurrar os pobres para o sacrifício.

Alexandre Simas, um respeitado matemático que participou do estudo, criticou publicamente aqueles que estão recomendando o fim do isolamento social com base na pesquisa da Easynvest: “Soube que existem pessoas utilizando o nosso modelo para justificar o fim da quarentena. Isso não faz nenhum sentido. Até o momento nosso modelo assume a quarentena sob TODO o período do estudo. Estamos estudando o efeito de sair da quarentena, mas, sob qualquer simulação que tenho feito, as consequências são feias. Não temos nenhuma evidência que forneça o mínimo de segurança para uma eventual saída da quarentena.”

Apesar do estudo não recomendar o fim da quarentena, o marketing feito em torno dele o transformou no principal argumento dos que o desejam. Enquanto a ciência de verdade recomenda que os governantes brasileiros cogitem o lockdown, a ciência do mercado financeiro forneceu um alívio de consciência para os ricos que defendem o fim do isolamento social em nome da salvação da economia. Agora, graças a uma empresa do mercado financeiro, aqueles que negavam o consenso científico já tem uma pesquisa científica para chamar de sua.

Diferentemente do colega matemático que reconhece as limitações do estudo, Samy Dana tem tratado as críticas com uma empáfia que não combina com um pesquisador. Depois que passou a ser questionado no Twitter por tudo o que já foi exposto aqui, o economista bloqueou os críticos, mesmo aqueles que propuseram um debate respeitoso. Também acusou jornalistas e cientistas de boicotar a sua pesquisa e chamou de “militante” quem defende o consenso científico.

Esse tweet revela que a preocupação central de Samy está em descredibilizar o consenso científico. O seu objetivo não é a busca pela verdade, mas estabelecer uma falsa disputa de narrativas entre pesquisas. Se irritar com perguntas e críticas sobre o estudo não me parece ser uma postura adequada de um pesquisador. Parece mais adequada a um militante do mercado financeiro sedento para que atividade econômica volte ao normal. Agora, Samy e a Easynvest viraram referência e estão na vitrine do mercado de consultorias e palestras. Eles podem ser ruins de ciência, mas são gênios do marketing!

Mês passado, o Papa Francisco apontou para o risco da humanidade ser golpeada “por um vírus ainda pior: o do egoísmo e o da indiferença”. Quanta inocência. A fala do presidente da XP Investimentos e a exploração marqueteira em cima de um estudo encomendado pelo mercado financeiro mostram que as elites estão mais preocupadas com os lucros do que com os cadáveres das classes mais vulneráveis à contaminação.

Como de costume, os ricos não estão dispostos a pagar pela crise econômica e preferem empurrar os pobres para o sacrifício. Eles decidiram que está na hora de colocar a massa trabalhadora para se aglomerar no transporte público e fazer a máquina da economia voltar a girar. O número de mortes diárias segue batendo recordes, mas para as elites “o pior já passou”. Isso é o que eu chamo de consciência de classe.

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