Na competição global por um tratamento para o novo coronavírus, uma empresa saiu na frente: a multinacional americana Gilead Sciences. Em 1º de maio, seu medicamento Remdesivir, ainda em fase de testes, foi aprovado para uso contra a covid-19 nos Estados Unidos (apenas em casos emergenciais) e no Japão (para pacientes com sintomas graves).
Após conseguir a primeira autorização do tipo no mundo, a farmacêutica rapidamente concedeu licenças para que empresas na Índia e no Paquistão possam produzir versões genéricas do remédio e vendê-las a 127 países. O Brasil não está entre eles. Nem seus vizinhos de América do Sul, à exceção da Guiana e do Suriname.
Um tratamento com o Remdesivir custa cerca de US$ 4,5 mil, me disse Jorge Bermudez, pesquisador da Fiocruz e ex-membro do Painel de Alto do Secretário-Geral da ONU sobre Acesso a Medicamentos. Ou seja, na cotação atual, as dez injeções usadas em pacientes graves de covid-19 sairiam a mais de R$ 26 mil.
Com mais de 206 mil casos confirmados da doença, um sistema de saúde à beira do colapso e um quarto da população vivendo com menos de R$ 420 por mês, a consequência do alto valor do medicamento no Brasil é óbvia. Ainda que o Remdesivir sobreviva à fase de testes e se estabeleça como o tratamento tão esperado para a covid-19, que matou mais de 14 mil brasileiros, quase nenhum de nós terá acesso a ele.
A exclusão do Brasil do rol de 127 países escolhidos pela Gilead para receber os genéricos, explicou Bermudez, se deve ao fato de que os produtos gerados por essas licenças são normalmente voltados para países de renda baixa e média-baixa. O Brasil, que está a poucos passos de voltar para o Mapa da Fome, é um país de renda média, segundo o Banco Mundial. Ou rico, como já considerou Jair Bolsonaro.
A renda dos Estados Unidos não foi levada em consideração pela Gilead, no entanto, quando o CEO da farmacêutica, Daniel O’Day, anunciou que daria gratuitamente 1,5 milhão de doses do remédio ao país mais rico do mundo – uma doação equivalente a mais de US$ 675 milhões.
“Claro que isso tem a ver com o marketing da Gilead nos EUA, por terem aprovado o uso emergencial, mas é injusto você fazer doações a um país enquanto outros estão excluídos”, criticou Bermudez. “Com o sistema em colapso e o subfinanciamento do SUS, seria uma tragédia para o Brasil ter que pagar esse valor [de US$ 4,5 mil por paciente]”.
O mais preocupante, no entanto, não é a impossibilidade de comprar o Remdesivir. Afinal, vale lembrar, o remédio pode não vir a ser o tratamento oficial para a covid-19. O problema é que esse mesmo cenário pode se repetir com qualquer outro medicamento ou vacina que venha a ser aprovado no enfrentamento ao novo coronavírus. Isso se as farmacêuticas brasileiras e multinacionais saírem vitoriosas da luta que travam para manter seus monopólios, mesmo em face das milhares de vidas que serão perdidas.
No momento, a maior ameaça aos monopólios – e a maior esperança de acesso igualitário a medicamentos – é um projeto de lei apresentado em 2 de abril na Comissão Externa de Covid-19 da Câmara dos Deputados. Ele pretende garantir a emissão de licenças obrigatórias e automáticas a qualquer tecnologia relacionada ao coronavírus – como vacinas, testes diagnósticos e medicações para tratamento.
A justificativa é simples: em momentos de emergência, é preciso agir com o máximo de rapidez. “Não estamos vivendo na normalidade, quando é possível parar para discutir e avaliar cada possibilidade [de quebra de patente]”, resumiu Bermudez. “Qualquer produto com eficácia comprovada deve ter automaticamente acesso reconhecido para todos durante a pandemia”.
O projeto é assinado por 11 parlamentares de todo o espectro político – há nomes de partidos tão distintos quanto PT, PSL, PCdoB, DEM e PSDB. Porém, os mais de 40 dias após sua apresentação na comissão especial não foram suficientes para que o PL chegasse ao plenário. Sequer as requisições entregues ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM fluminense, para que ele fosse tratado com caráter de urgência foram avaliadas.
“O que a gente sente no Congresso é que [os deputados] querem saber como a indústria vai ver isso”, explicou Bermudez. As respostas vieram recentemente, com posicionamentos contrários da Interfarma, que representa as farmacêuticas multinacionais, e da FarmaBrasil, representante do setor nacional.
“Afirmam que isso inibe a inovação, que não vão ter mais pesquisas ou investimentos, que vão retirar plantas do Brasil. É o que sempre se alega quando há licença compulsória”, disse o pesquisador, lembrando que o projeto não pretende mudar os trâmites de registro de patentes em geral. “Ou se discute de uma maneira tal que a gente vai valorizar a vida e o acesso, ou vai priorizar os interesses comerciais que tem atrás dos monopólios e dos preços elevados”.
Reclamaram, mas ficaram
Em toda a nossa história, só há um caso de licença compulsória de medicamentos. Em 2007, o governo Lula decidiu quebrar a patente da multinacional alemã Merck para os antirretrovirais usados no tratamento de HIV e aids. “[As farmacêuticas] alegaram as mesmas coisas na época e continuam aqui”.
Embora não haja medicamentos brasileiros para a covid-19 em fase de testes, Bermudez acredita que o posicionamento contrário da FarmaBrasil, que o surpreendeu, possa ser explicado pelo interesse das farmacêuticas brasileiras em manter boas relações com as multinacionais de que normalmente importam tecnologias.
O pesquisador lembra que o presidente da entidade foi um dos empresários a acompanhar Bolsonaro em uma ida surpresa ao Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de pedir a reabertura do comércio.
Além da resistência das farmacêuticas, do curto histórico e de o processo de quebra de patente ser lento demais para o momento em que vivemos, há outra razão para que esse caminho não seja o melhor a se tomar durante a pandemia: a conjuntura política.
A aprovação de uma quebra de patente requer “um acordo dentro do governo”, me explicou Bermudez. Em 2007, segundo ele, havia uma “composição de pessoas que entendeu a gravidade do assunto e emitiu a licença compulsória”, algo que, para ele, não vai acontecer na gestão Bolsonaro.
“Ter um consenso dos ministérios da Saúde, Agricultura e das Relações Exteriores e do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, nesse momento, acho que é impossível”, avaliou. “Os interesses são diferentes. A agricultura quer exportar frango, exportar laranja. Qualquer medida contra uma empresa – no caso, a Gilead é norte-americana – que possa acarretar em consequências em outras áreas vai ser barrada”.
Assim como acontece com os genéricos da Gilead, o que pode vir a ser outra luz no fim do túnel para diversos países pode não chegar ao Brasil. Em 23 de março, o presidente da Costa Rica escreveu à Organização Mundial da Saúde, a OMS, pedindo a criação de um conjunto de tecnologias relacionadas ao combate ao novo coronavírus, acessível a todos os países membros, independentemente de quem as inventou. Mas a decisão final de quem entra e quem fica de fora desse pool – ainda em discussão – “depende da relação que o país está tendo com a OMS a partir do governo”, me disse Bermudez.
No mesmo dia em que o presidente costa-riquenho escreveu à OMS, Bolsonaro fez um pronunciamento desdenhando da organização, em uma tentativa de justificar o descumprimento de suas recomendações. “O pessoal fala tanto em seguir a OMS, né? O diretor-presidente da OMS é médico? Não é médico”, afirmou. O etíope Tedros Adhanom, de fato não é médico, mas tem doutorado em Saúde Comunitária e mestrado em Imunologia de Doenças Infecciosas.
Um mês depois, o presidente atacou diretamente a OMS, questionando por que deveria seguir uma entidade que acusou de incentivar a masturbação e a homossexualidade infantil. Diante disso, a inclusão do Brasil está longe de garantida.
Atualização: 12 de março de 2021, 12h31
Para fins de maior clareza, o título desta reportagem foi alterado para incluir o nome do remédio a que se refere, o Remdesivir. Originalmente, o título era “Coronavírus: Gilead barra acesso do Brasil a genérico de remédio que custa R$ 2,6 mil a dose”.
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