Os telespectadores da Fox News foram alertados, na segunda-feira, a não seguir o conselho médico do presidente, após o anúncio surpreendente de Donald Trump de que ele toma hidroxicloroquina, com base em sua crença de que isso poderia impedir que ele fosse infectado pela covid-19 — uma crença que não é apoiada por evidências científicas.
Momentos depois que o presidente disse aos repórteres que ele começou a tomar o remédio há cerca de uma semana e meia — quando a secretária de imprensa do vice-presidente, Katie Miller, deu positivo para o coronavírus —, o apresentador da Fox News, Neil Cavuto, fez um alerta urgente, dizendo ao público majoritariamente idoso do canal que não há evidências de que o medicamento possa impedir o contágio por covid-19, mas pode causar batimentos cardíacos irregulares e potencialmente fatais.
Fox News's Neil Cavuto is stunned by Trump's announcement that he's taking hydroxychloroquine: "If you are in a risky population here, and you are taking this as a preventative treatment … it will kill you. I cannot stress enough. This will kill you." pic.twitter.com/e6D5alfAgc
— Aaron Rupar (@atrupar) May 18, 2020
Depois de defender uma análise recente do Departamento de Administração de Veteranos sobre a falta de eficácia do medicamento, que Trump descreveu sem qualquer base como tendo sido motivada politicamente, Cavuto disse aos espectadores que fossem cuidadosos, já que pessoas com predisposição a batimentos cardíacos irregulares poderiam morrer como resultado de tomar hidroxicloroquina. Além disso, como um cardiologista disse ao Intercept no mês passado, muitas pessoas não sabem que têm o problema do coração que as predispõe a ritmos cardíacos perigosos.
“Se você está em uma população de risco e está tomando como um tratamento preventivo para evitar o vírus ou, no pior cenário, você já está lidando com o vírus e você faz parte dessa população vulnerável, isso vai te matar”, disse Cavuto. “Eu não posso enfatizar o suficiente: isso vai te matar”.
Esse alerta urgente foi repetido pelo Dr. Bob Lahita, que disse a Cavuto que médicos do Hospital da St. Joseph University, onde ele é presidente de medicina, não viram “absolutamente nenhum efeito” da hidroxicloroquina sobre a covid-19. Lahita também explicou que o medicamento deve ser usado apenas sob supervisão médica rigorosa, pois pode causar “uma arritmia fatal,o que significa um ritmo cardíaco irregular, que causará sua morte — sua morte será instantânea”.
Neil Cavuto: It sounds like what you are saying, you have a risk of losing your life if you do what the president just recommended?
Dr. Bob Lahita: That is correct. pic.twitter.com/NLySclX9tU
— John Whitehouse+ (@existentialfish) May 18, 2020
Em questão de minutos, porém, esses alertas terríveis foram sabotados pela próxima convidada de Cavuto, a Dra. Janette Nesheiwat, uma colaboradora médica da Fox News que telefonou para dizer que ela acreditava que a hidroxicloroquina havia ajudado alguns pacientes com covid-19 tratados por ela, e que achava que a decisão do presidente de experimentar o medicamento como medida preventiva foi “muito inteligente”.
@realDonaldTrump reveals that he’s taking #hydroxychloroquine for #Covid19 prevention. I discussed this with @TeamCavuto @FoxNews earlier today… pic.twitter.com/qJVAE4CUM1
— Dr Janette Nesheiwat (@DoctorJanette) May 18, 2020
Menos de 30 minutos depois que o presidente fez os comentários que provocaram o alarme de Cavuto, o serviço de sempre foi retomado no canal pró-Trump quando o comentarista Greg Gutfeld apareceu e minimizou as preocupações sobre os efeitos colaterais potencialmente fatais da hidroxicloroquina. “Se estiver disponível e você puder tomá-la, faça isso”, disse Gutfeld.
Gutfeld também insistiu que Trump estava certo ao rejeitar as pesquisas do Departamento de Veteranos, também chamado de VA, que não mostravam benefício na hidroxicloroquina, alegando que “a mídia se interessou por ele estudo” pois “eles querem que o medicamento seja um fracasso porque querem que Trump fracasse”.
No bloco de programação da hora seguinte, no entanto, o Dr. Manny Alvarez, editor sênior de notícias da Fox, pareceu rejeitar essa opinião, dizendo ao apresentador Bret Baier que a promoção do medicamento feita pelo presidente era “altamente irresponsável”.
Dr. Manny Alvarez, senior managing editor of Fox News' health news, says that it is "highly irresponsible" for Trump to claim that he's now taking hydroxychloroquine.
He also wants the White House physician to explain what's changed since studies have shown no benefits. pic.twitter.com/QAxYVTM1kG
— Justin Baragona (@justinbaragona) May 18, 2020
Em sua defesa do medicamento na segunda-feira, Trump se referiu a uma análise retrospectiva observacional dos registros de 368 pacientes com covid-19 do Departamento de Veteranos como “aquele relatório falso que foi publicado”. O estudo desagradou o presidente porque não encontrou “evidências” de que a droga que ele promoveu repetidamente, a hidroxicloroquina, impedia que os infectados com covid-19 precisassem de respiradores e sugeria que o remédio poderia aumentar a probabilidade de morte.
Ignorando um estudo maior publicado na semana passada no Journal of the American Medical Association que também considerou a droga ineficaz no tratamento da covid-19 após analisar 1.438 pacientes hospitalizados na região metropolitana de Nova York, Trump afirmou falsamente que a pesquisa com veteranos era a única que contrariava suas recomendações pelo medicamento, e deixou implícito que a pesquisa havia sido distorcida por seus inimigos políticos.
“A única resposta negativa que ouvi foi o estudo que fizeram — foi a VA? —, você sabe, feito por pessoas que não são grandes fãs de Trump”, afirmou o presidente. Ele então acusou o Departamento de Veteranos de abusar dos pacientes — “tínhamos milhares de pessoas que eram sádicas, que roubavam, que eram ladrões, que eram pessoas horríveis, que espancavam nossos veteranos…” — em um aparente esforço para sugerir que os cientistas que conduziram o estudo, na maioria funcionários do VA, haviam de alguma forma manipulado os resultados para deixar Trump mal visto. O relatório, afirmou o presidente, “era um relatório pouco científico”.
Um pouco perdido em meio à reação ao anúncio de Trump de que estava se medicando por iniciativa própria, após um médico da Casa Branca concordar com seu pedido por uma receita, foi o fato de o presidente ter levantado o assunto da hidroxicloroquina sem ser questionado sobre isso, enquanto fazia um ataque verborrágico contra delatores.
Depois de falar mal do delator da comunidade de inteligência que havia revelado sua própria tentativa corrupta de coagir o presidente da Ucrânia a difamar Joe Biden no ano passado, Trump procurou manchar o Dr. Rick Bright, o oficial de vacinação e preparação para emergências demitido que apresentou uma denúncia neste mês.
Bright disse que foi forçado a sair de sua posição no departamento de saúde e serviços humanos, em parte, porque “ao contrário de diretrizes equivocadas, limitei o amplo uso de cloroquina e hidroxicloroquina, promovidas pelo governo como uma panaceia, mas que claramente não possuem mérito científico”.
O médico também disse que “resistiu aos esforços para fornecer um medicamento sem eficácia comprovada sob demanda para o público americano” e, em vez disso, “insistiu que esses remédios fossem fornecidos apenas a pacientes hospitalizados com covid-19 confirmada enquanto estavam sob a supervisão de um médico”. Bright disse que ele só havia aprovado o uso dos dois medicamentos em contextos clínicos porque “têm riscos potencialmente graves associados a eles, incluindo aumento da mortalidade observada em alguns estudos recentes em pacientes com covid-19”.
Bright reiterou essas objeções em uma entrevista ao “60 Minutes”, que provocou uma série de tweets indignados de Trump depois que o programa foi ao ar na noite de domingo.
“I believe my last-ditch effort to protect Americans from that drug was the final straw that they used.” Government scientist Rick Bright says he believes he was retaliated against for raising concerns about hydroxychloroquine. https://t.co/pbZFkHyNN8 pic.twitter.com/KnHoFZgwvU
— 60 Minutes (@60Minutes) May 17, 2020
Em vez de contra-argumentar quanto a qualquer uma dessas objeções a respeito de como seu governo respondeu à pandemia global, Trump reagiu como sempre faz com qualquer crítica, alegando que a única explicação possível é que a pessoa que a fez inventou uma acusação falsa para prejudicá-lo politicamente.
É por isso que Trump conecta com tanta frequência as críticas à forma como tem lidado com a pandemia às objeções a sua conduta em relação à Ucrânia, que ele também considera puramente partidárias. Durante sua visita ao CDC em março, por exemplo, quando Trump afirmou que não havia nenhum problema com os testes e disse “qualquer pessoa que precise de um teste pode fazer um teste”, ele ainda acrescentou: “e os testes são perfeitos, como a carta era perfeita, a transcrição era perfeita”. Para Trump, que muitas vezes se refere à transcrição parcial de seu telefonema ao presidente da Ucrânia como “a carta”, o documento que alarmou quase todos que o leram revelou que ele não havia feito nada de errado.
É também por isso que, quando perguntado na segunda-feira sobre um de seus tweets em resposta à entrevista de Bright no “60 Minutes”, na qual ele pediu uma revisão de toda a “maracutaia dos delatores”, Trump começou sua resposta com um falatório de três minutos sobre quem revelou a questão da Ucrânia.
Quando Trump finalmente chegou ao assunto de Bright, referiu-se a ele não pelo nome, mas como “esse outro cara, com a hidroxicloroquina”.
Claramente sem compreender que Bright havia explicado em sua queixa formal que havia assinado uma carta aprovando apenas o uso limitado do medicamento, sob supervisão, e havia rejeitado um pedido da Casa Branca de disponibilizar a hidroxicloroquina “ao público fora de um ambiente hospitalar e sem supervisão médica”, Trump alegou falsamente que o funcionário demitido havia assinado em favor do uso da droga antes de mudar de ideia e dizer, mais tarde, que “não acredita nela”.
“Muitas coisas boas surgiram sobre a ‘hidroxi’”, disse Trump em seguida. “Você ficaria surpreso com quantas pessoas estão tomando, especialmente os trabalhadores que estão na linha de frente — antes de pegar a doença. Os trabalhadores da linha de frente — muitos, muitos estão tomando”, afirmou. “Eu mesmo estou tomando”, acrescentou. “E então nós temos esse delator maluco, esse denunciante falso, que vai e tenta, você sabe, criticar isso”, disse ele pouco tempo depois.
Trump também explicou que foi inspirado a tomar o remédio por “uma carta muito bem elaborada por um homem que é um médico respeitado em Westchester, talvez um pouco depois de Westchester… um pouco mais acima, em Nova York”. Parecia ser uma referência ao Dr. Vladimir Zelenko, um médico pró-Trump em Kiryas Joel, uma cidade de 35 mil judeus hassídicos que fica do outro lado do rio Hudson para quem vem de Westchester. As afirmações de Zelenko sobre a eficácia da hidroxicloroquina, em combinação com azitromicina e sulfato de zinco, contra a covid-19, foram incansavelmente promovidas por aliados de Trump, como Sean Hannity, apresentador da Fox, e Rudy Giuliani, ex-prefeito de Nova York e advogado pessoal do presidente.
Uma análise da Media Matters for America, no mês passado, sugeriu que afirmações repetidas nos programas da Fox News de que a hidroxicloroquina era uma cura milagrosa para a covid-19 podem ter implantado essa crença na mente de Trump.
How Fox News convinced Trump that it found a miracle cure for coronavirushttps://t.co/4Iqvrvoejehttps://t.co/obKNc5kHQv
— Matthew Gertz (@MattGertz) April 6, 2020
Desde então, o canal respondeu a pesquisas que sugerem que a droga é ineficaz contra o coronavírus e potencialmente perigosa quando usada sem a devida supervisão médica, alegando, como Trump, que os democratas estão usando o problema para atacar o presidente.
“Acho que estamos exagerando um pouco com isso, como sempre fazemos quando se trata de hidroxicloroquina”, disse o comentarista Jesse Watters, da Fox News, na noite de segunda-feira. “Não entendo por que isso foi politizado dessa forma”.
Melhores dados clínicos sobre a eficácia do medicamento podem estar disponíveis ainda neste ano. O Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, dirigido pelo Dr. Anthony Fauci, anunciou na semana passada que havia iniciado um ensaio clínico, com 2 mil pacientes, “para avaliar se o medicamento antimalárico hidroxicloroquina, em combinação com o antibiótico azitromicina, pode prevenir hospitalização e morte” por covid-19. A pesquisa deve terminar em outubro, embora a data de conclusão do estudo seja em março do ano que vem, mais de um mês após a posse presidencial.
“Embora haja evidências anedóticas de que a hidroxicloroquina e a azitromicina possam beneficiar pessoas com covid-19”, disse Fauci em um comunicado à imprensa para anunciar o estudo, “precisamos de dados sólidos de um grande ensaio clínico randomizado e controlado para determinar se esse tratamento experimental é seguro e pode melhorar os resultados clínicos”.
Enquanto isso, também há relatos de que a promoção do medicamento como uma cura da covid-19 pela Fox News e pelo presidente que é o maior fã do canal acabaram convencendo alguns apoiadores mais obstinados de Trump a adotar a droga. Em um protesto em Long Island na semana passada, um apoiador de Trump pedindo o fim imediato das ordens de saúde pública emitidas pelo governo estadual disse a um repórter que ele não precisava manter distância social de ninguém porque “eu tomei hidroxicloroquina; eu vou ficar bem, mano”.
Tradução: Maíra Santos
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