Recentemente, em mais um ato de notório apelo ao apoio dos cristãos no Brasil, Bolsonaro nomeou como ministro da Justiça e Segurança Pública o “terrivelmente evangélico” pastor presbiteriano André Mendonça. Ele não foi nomeado pelos seus conhecimentos na área de segurança pública. Aliás, segurança pública, principal área do ministério a ele entregue, nunca foi sua área de especialização. Servidor público de carreira na Advocacia-Geral da União, coube a ele, como chefe da AGU, defender os atos de Bolsonaro durante esse período de pandemia.
Fez a AGU divulgar nota alertando que iria à justiça caso governadores adotassem medidas coercitivas extremas, como a prisão dos que desrespeitavam a quarentena, desautorizando ações como a do governador de São Paulo, João Doria.
Faz parte das competências da AGU defender a administração pública, mas isso deve se dar dentro do princípio constitucional da moralidade e do interesse público. Defender ações do governo que vão de encontro a todas as ações mundiais no combate ao coronavírus não estão dentro daquilo que podemos chamar de uma defesa pautada nos mais caros princípios da moralidade e do interesse público.
Qual é a relevância dessa nomeação neste momento? O pastor André Mendonça não foi escolhido pelo seu currículo no serviço público. Foi selecionado por pertencer a uma ala da igreja evangélica, ainda majoritária, que defende Bolsonaro com um messianismo jamais visto na igreja evangélica, pelo menos nestes meus mais de 25 anos como pastor. O primeiro sinal claro dos motivos dessa escolha foi seu primeiro pronunciamento quando assumiu o cargo. Mendonça usou um termo bastante conhecido pelos evangélicos ao se referir a Bolsonaro: profeta.
Além do agradecimento beirando à adulação, prática comum daqueles que veem a carreira pessoal como um fim em si mesmo, o novo ministro da Justiça fez uma menção teológica das mais vergonhosas, em um tom para alcançar a massa evangélica que ainda apoia cegamente o presidente. A fala destoa completamente do linguajar e estilo de um pastor e teólogo oriundo de uma igreja tradicional reformada. Poderia ser dita por pastores como Robson Rodovalho, da Sara Nossa Terra, ou pelo excêntrico “apóstolo” Agenor Duque, da Plenitude do Trono de Deus, ambos neopentecostais, mas não combina com um presbiteriano, o que torna a situação ainda mais escandalosa.
O pastor André Mendonça sabe exatamente o que é um profeta. Também sabe o peso de suas palavras para os evangélicos quando ele, pastor de uma denominação histórica e respeitável como a Igreja Presbiteriana do Brasil aponta para um homem como Bolsonaro e o chama de profeta. Esse peso toma ares de autoridade também pelo fato de ele ser agora o titular de um dos mais importantes ministérios da República. Ele sabe que profeta, em seu sentido bíblico, era alguém levantado por Deus para denunciar os desvios dos poderosos durante o período de Israel no velho testamento. Profetas bíblicos como Amós (4:1) que combateu os poderosos que oprimiam os pobres com palavras fortes:
Ouçam esta palavra, vacas de Basã, vocês que estão no monte de Samaria, que oprimem os pobres, esmagam os necessitados e dizem aos maridos: ‘Tragam vinho e vamos beber!’ O Senhor Deus jurou pela sua santidade que virão dias em que vocês serão arrastadas com ganchos; até as últimas de vocês serão levadas com anzóis de pesca.
Os profetas do Velho Testamento eram homens que defendiam a vida do povo ante a opressão dos governantes, denunciando desvios morais e espirituais de reis e religiosos. O pastor André Mendonça sabe – se não sabe teria, como pastor e teólogo, obrigação de saber. Como chamar uma pessoa que biblicamente pode ser adjetivada de ímpio, incrédulo, iníquo e como eu já o chamei reiteradas vezes, filho de Belial, expressão hebraica que era usada para pessoas cruéis, maliciosas, tais como os homens de Gibeá (Juízes 19:22 e 20:13) e os filhos do sacerdote Eli (I Samuel 2:12) que roubavam e consumiam as ofertas entregues ao templo pelo povo de profeta? Como chamar de profeta alguém que disse frases como essas?
“O erro da ditadura foi torturar e não matar”. (Entrevista à rádio Jovem Pan, junho de 2016).
“No período da ditadura, deviam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique, o que seria um grande ganho para a nação”. (Declarações difundidas pela Band, maio de 1999).
“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. (Na sessão da Câmara, em abril de 2016, quando votou a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, referindo-se a um torturador da ditadura, condenado por tortura).
“Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de estado laico não. O estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. (Encontro com apoiadores na Paraíba, fevereiro de 2017).
“Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”. (Em uma entrevista para a revista Playboy, junho de 2011).
“Como eu estava solteiro naquela época, esse dinheiro de auxílio-moradia eu usava para comer gente”. (Resposta ao ser questionado pelo jornal Folha de S. Paulo se usou o dinheiro do benefício para comprar seu apartamento).
“Conselho meu e eu faço: eu sonego tudo que for possível. Se puder, não pago, porque o dinheiro vai pro ralo, pra sacanagem. Prego sobrevivência. Se pagar tudo o que o governo pede, você não sobrevive”. (Entrevista à Band ,em 1999).
Volto a perguntar: em que sentido bíblico, cristão ou teológico podemos chamar o autor das iníquas frases acima de profeta?
O pastor Antonio Carlos Costa, também presbiteriano, em sua conta no twitter, escreveu:
Se Bolsonaro é profeta, Jeremias, Isaías, Miqueias, Amós e os apóstolos são -com sua ênfase no amor, na justiça e nos direitos humanos-, uns românticos idiotas; e o próprio Cristo um pacifista tolo desconectado do mundo real dos homens, que só conhece a linguagem da violência.
— Antônio C. Costa (@antonioccosta_) April 30, 2020
Para o teólogo e pastor batista de tradição pentecostal e assembleiana, Kenner Terra, um dos autores do brilhante livro “Experiência e Hermenêutica Pentecostal”, o pastor André Mendonça cometeu o pecado de blasfêmia contra o Espírito Santo, pecado tido como imperdoável segundo a teologia bíblica: “Chamar Bolsonaro de profeta é blasfêmia contra o Espírito Santo, porque ele nunca empoderaria alguém para louvar torturador ou promover a violência. Tal declaração atribui ao Espírito o que é próprio do Mal. Para esse tipo de bajulação nojenta não há salvação”.
Eu teria uma lista extensa de pastores e teólogos cristãos que se manifestaram de maneira igualmente indignada contra essa fala do pastor André Mendonça (insisto em chamá-lo de pastor para que fique mais escandalosa essa fala vil e minha crítica teológica). Como nós, que carregamos o nome de Cristo como adjetivo de nossa fé (cristão), podemos aceitar isso? Vou aumentar a ênfase com a questão que agora nos deparamos: a vida humana e o apreço que alguém que se diz cristão deveria ter a ela.
Diante da crise do novo coronavírus, o presidente eleito por ampla maioria evangélica prega o contrário de todo o mundo, afirmando que a doença causada pelo vírus é uma “gripezinha” e que a economia é mais importante que vidas humanas, em uma dicotomia que nenhum país civilizado no mundo sequer discutiu por entender que vidas perdidas não se recuperam, mas a economia sim. Só quem perdeu uma vida preciosa bem próxima de si entende no coração o valor da vida e o buraco que causa a perda de uma.
Vou abrir meu coração aqui, pois o que eu puder fazer para dissuadir as pessoas a verem o erro e a cegueira a que estão submetidas, eu o farei.
Em 2006, eu já era um pastor com um ministério consolidado. Após ter lutado intensas batalhas contra desvios da fé e da ética cristã em nosso meio, resolvi não mais depender unicamente do sustento advindo do trabalho eclesiástico e, portanto, já havia entrado para o serviço público. Estava casado há 13 anos com a mulher que foi meu primeiro grande amor, com uma filha de 11 anos e um filho de cinco. Um dia antes de minha filha completar 12 anos, com sua festa pronta na casa da minha mãe, ela e minha esposa morreram afogadas em uma lagoa em Jaguaruna, Santa Catarina.
Na ânsia de tentar salvá-las e ao mesmo tempo impedir que meu filho de cinco anos entrasse na água e também sucumbisse, não obtive êxito no salvamento e ali, naquele dia, meu mundo entenebreceu, e a vida passou a não ter sentido para mim. Se não fosse o fato de meu filho ter sobrevivido a tudo isso e restado para mim como um presente de Deus, eu acredito que eu teria dado fim a minha vida no dia seguinte. Pensei nessa possibilidade inúmeras vezes. Mas lembrava do meu pequeno filho, ao lado no carro dos bombeiros, dizendo a mim que agora não tinha mais mamãe e a mana e que era somente ele e eu. Ele foi a causa primária de eu ter mantido minha vida. A perda de uma vida fez eu largar o ministério pastoral, só retornando em 2010. Fiquei recluso, reexaminando a minha fé.
Só quem perdeu uma vida preciosa bem próxima de si entende no coração o valor da vida e o buraco que causa sua perda.
Nesse período, para a provação ser maior e mais dolorida, “irmãos” na fé diziam que isso ocorreu comigo como castigo por eu enfrentar e denunciar “ungidos de Deus” e que a “mão de Deus pesou sobre mim”. Só um psicopata não revira toda a sua fé e teologia e a coloca em prova ante uma situação grave como essa. Posso dizer que passei pelo vale da morte a que Davi se refere no Salmo 23 e o fundo do poço onde José foi lançado pelos seus irmãos.
Por mais que nunca tenha acreditado na tola e herética teologia da prosperidade, eu ainda reservava no meu subconsciente uma fé, um fio de esperança de que coisas horríveis como essa não aconteceriam comigo. Mas aconteceram, e eu passei por esse vale e vi do outro lado a figura de um Deus que passei a conhecer mais intimamente após as ainda pendentes escamas de ilusões terem sido removidas dos meus olhos. É uma dor e um processo duro, que nem todos conseguem passar vivos e que não te deixam sem marcas. Tenho elas até hoje dentro de mim.
Por que conto tudo isso? Eu lamento, mas muitos evangélicos que hoje apóiam cegamente um homem como se fosse um mito, um presidente como se messias fosse, ou perecerão como tantos outros apoiadores ou não apoiadores ou também perderão pessoas próximas. Essa é a realidade triste, inconteste e inevitável que seria ainda pior se os governadores de vários estados estivessem agido conforme as ideias de Bolsonaro. Esse vírus não respeita fé e nem ideologia. No entanto, quando a tragédia é resultado de um acidente, onde nós não colaboramos ou não nos omitimos, a possibilidade de sairmos com a mente sã é bem maior do que quando colaboramos ou nos omitimos ante a tragédia anunciada.
Lembro do caso do menino Wesley Parker, nos EUA. Ele era diabético e seus pais evangélicos, cegos por uma crença na cura divina, negaram dar insulina ao seu filho levando-o a morte. O caso virou livro “We Let Our Son Die” (“Deixamos nosso filho morrer”), escrito pelo pai da criança Larry Parker. Nesse caso, os pais passaram por um vale que poucos conseguem passar e sair dele vivos. Quando saem, jamais terão fé em nada, nem em si mesmos, além de sofrerem o escárnio e a vergonha de todos ao seu redor.
A minha advertência e exortação aos cristãos é dramática, pois sou cristão e ministro evangélico. Usarei uma metáfora que beira à realidade tangível: vocês estão seguindo cegamente um adorador do deus amonita, Moloque. O culto a esse deus exigia o sacrifício de vidas humanas, inclusive a prole de seus adoradores. O que fazia um ser humano atentar contra a vida de sua prole, de seus filhos, ao entregar um dos seus à morte como sacrifício a um deus ardendo em alta temperatura?
Em vários desses cultos pagãos, era comum a prática de orgias sexuais, regadas a bebidas com propriedades psicotrópicas e vinho. Na generalização em que Paulo e demais escritores do novo testamento tratam os praticantes desses rituais, o termo feitiçaria é o comumente utilizado. Um exemplo de cultos desse tipo era o culto ao deus Baco (ou Dionísio para os gregos), de onde surge o termo “bacanal” em alusão às práticas litúrgicas desses cultos.
Na carta aos Gálatas, por exemplo, Paulo (5:20) cita a feitiçaria como uma das obras da carne. A palavra traduzida como feitiçaria é farmakia, de onde vem a palavra farmácia. Essa palavra foi usada para identificar a feitiçaria em virtude dos fármacos usados nos rituais e dos remédios produzidos com a finalidade de uma cura mágica de doenças e outros males. Com o torpor produzido pelas intensas orgias, misturado ao efeito de substâncias psicotrópicas, é possível compreender um pouco a frieza que permitia a entrega de filhos em rituais assassinos.
Esse mesmo torpor eu identifico nos evangélicos ainda seguidores de Bolsonaro. Estão sob efeito de um fármaco que foi e que está circulando em suas almas chamado ódio. Ódio de partidos, políticos e governos anteriores. O ódio tem o mesmo efeito da paixão: ambos cegam. Esses cristãos estão tão evidentemente cegos que, no mínimo, se calam ante a estupidez assassina de um presidente que, contra todas as recomendações médicas do mundo, faz caminhadas nas ruas, entra em restaurantes, cumprimenta pessoas, sendo ele um possível foco proliferador do vírus em virtude de ter estado na companhia de vários outros infectados na comitiva que foi aos EUA. Aliás, essa ação é vista como uma ação de fé e coragem de um homem “abençoado por Deus” e “ungido por Deus”. Um homem que também pratica farmakia ao incentivar o uso de remédios, como a cloroquina, sem ter nenhuma competência científica para tal.
Por isso, faço um apelo aos meus irmãos que ainda estão sob esse torpor: permitam que a luz invada as densas trevas do ódio e se reconciliem agora com a vida, antes que a morte que agora nos atinge tenha efeitos trágicos sobre toda a sua fé na vida, em Deus e no próximo e antes que vocês sejam chamados de “terrivelmente evangélicos” por todo o mundo que vos olha.
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