Uma reportagem do El País revelou como um perfil no Twitter virou a grande pedra no sapato da extrema direita americana. Com o nome de Sleeping Giants, o perfil criado em 2016 expôs ao escracho público as marcas que anunciavam em sites de fake news. O perfil informava ao público os nomes das empresas e compartilhava as capturas de tela dos anúncios nas suas redes oficiais. A tática foi um sucesso, e as empresas se viram obrigadas a anunciar publicamente o bloqueio dos anúncios.
O Breitbart News é um site de extrema direita famoso por inventar histórias contra adversários de Trump. Durante a eleição presidencial, o site publicou a história de que a então candidata Hillary Clinton comandava uma rede de pedofilia e promovia orgias sexuais com crianças no porão de uma pizzaria. Após a ação do Sleeping Giants, o site viu ir embora mais de 4,5 mil anunciantes — um golpe que significou uma perda de mais de 8 milhões de euros. Steve Bannon, o guru da extrema direita internacional, era o proprietário do site e, à época, chamou o Sleeping Giants de “a pior coisa que há”. Como se sabe, Bannon é o homem por trás da engenharia de desinformação dos extremistas de direita no mundo inteiro. As mentiras que ajudaram a eleger Trump foram uma inspiração para o surgimento das mamadeiras de piroca que ajudaram a eleger Bolsonaro.
Um estudante que desenvolve pesquisas sobre fake news leu essa reportagem do El País e decidiu criar a versão brasileira do Sleeping Giants. Em apenas quatro dias, o perfil ultrapassou a marca de 200 mil seguidores e virou um movimento coletivo contra a propagação de mentiras. Para se ter uma ideia do sucesso brasileiro, o perfil americano juntou 270 mil seguidores em quatro anos. As marcas passaram a ser cobradas e quase todas empresas anunciaram o fim dos anúncios em sites que disseminam mentiras. O sucesso da tática enfureceu as hostes bolsonaristas, que imediatamente partiram para o contra-ataque.
Um dos que lideraram a manada foi Filipe Martins, esse projeto sorocabano de Steve Bannon. Ele é o bolsonarista mais próximo do americano e foi o responsável por aplicar o seu know-how de mentiras no Brasil. O jovem de 31 anos é, junto de Carlos Bolsonaro, um dos arquitetos por trás do “gabinete do ódio”, conhecido oficialmente como Assessoria Especial da Presidência. Nomeado por indicação de Olavo de Carvalho, Martins também é o responsável por fazer o meio de campo entre o governo e as milícias virtuais bolsonaristas: youtubers, blogueiros e sites de notícias falsas. É ele quem organiza o ódio bolsonarista e municia a militância com conteúdo.
I heard @slpng_giants is bringing to Brazil its totalitarian practice of harassing and bullying companies as a means to suppress freedom of speech, destroy dissent 'n implement internet censorship. That means the clown Matt Rivitz is about to learn the meaning of "vem tranquilo".
— Filipe G. Martins (@filgmartin) May 21, 2020
O assessor especial provocou o criador do Sleeping Giants americano, Matt Rivitz, que causou aquele prejuízo milionário ao seu guru americano. É que no fantástico mundo olavista de Martins parece óbvio que há “forças globalistas” por trás da versão brasileira. O aprendiz de Steve Bannon chamou de “censura” e “prática totalitária” uma ação feita por livre iniciativa das pessoas que protestaram e das empresas privadas que optaram por retirar os anúncios. Onde está a turma do ultraliberalismo sem freio nessas horas? Cadê seu deus livre mercado agora?
O Sleeping Giants brasileiro começou focando nos anunciantes do site Jornal da Cidade Online, que já foi alvo de processos por publicação de mentiras e está sendo investigado pela CPMI das Fake News. O relatório da comissão afirma que há “indícios da prática de condutas ilegais de José Pinheiro Tolentino Filho por meio de seu projeto de comunicação Jornal da Cidade Online”. O site já teve que pagar 150 mil em indenização para o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, pela publicação de uma mentira sobre ele. Não é uma coincidência o fato dessa mentira ter sido publicada justamente na época em que Santa Cruz protagonizou um bate-boca público com Bolsonaro.
Assim como a maioria de sites e blogs ligados ao bolsonarismo, o Jornal da Cidade Online consegue faturar com anúncios através do Adsense, um serviço da Google que os distribui automaticamente para sites assinantes. Nesse formato, as empresas não escolhem para quais sites irão seus anúncios. É o algoritmo do Google que os distribui nos sites. Ao serem expostas como patrocinadoras de sites que publicam mentiras, as grandes marcas imediatamente se posicionaram.
Assim que recebemos essa informação, solicitamos a retirada dos anúncios automáticos. Repudiamos qualquer disseminação de notícias falsas.
— Dell no Brasil (@DellnoBrasil) May 19, 2020
Olá! Nós não compactuamos com a disseminação de notícias falsas, temos o compromisso ético com a transparência da informação. Por isso, todos os nossos anúncios automáticos estão passando por monitoramento, em conjunto com as plataformas parceiras, que distribuem tais conteúdos.
— Claro Brasil (@ClaroBrasil) May 21, 2020
Nosso time já retirou do ar nossa mídia vinculada a esse site e a qualquer outro que compactue com notícias falsas. Obrigado!
— Méqui (@McDonalds_BR) May 21, 2020
Informamos que não temos vínculos com nenhum portal jornalístico. Estamos analisando os anúncios com nosso nome e removendo das plataformas que anunciam de forma automática através de sites de busca. Repudiamos qualquer disseminação de notícias falsas. Agradecemos por nos avisar.
— Fast Shop (@fastshop) May 21, 2020
https://twitter.com/philipsbrasil/status/1263455217170997248
Segundo levantamento do UOL, o Jornal da Cidade Online contava com 903 anunciantes. Durante pouco mais de um ano, todas essas empresas fizeram juntas 1.987 anúncios diferentes no site. O maior anunciante foi o Banco do Brasil que, ao ser confrontado no Twitter, também informou que retiraria os anúncios:
Agradecemos o envio da informação, comunicamos que os anúncios de comunicação automática foram retirados e o referido site bloqueado.
Repudiamos qualquer disseminação de FakeNews.— Banco do Brasil (@BancodoBrasil) May 20, 2020
Foi aí que o gabinete do ódio pegou fogo. Filipe Martins e Carlos Bolsonaro acionaram a rede virtual bolsonarista, que reagiu em peso junto com políticos e outros expoentes da extrema direita. A deputada bolsonarista Carla Zambelli, doPSL paulista, e o chefe da Secom, Fábio Wajngarten, também foram escalados para repudiar o episódio. Wajngarten, que cuida das verbas publicitárias do governo, disse que o governo irá “contornar a situação”e garantir a “defesa da liberdade de expressão”. Afirmou ainda ter certeza que o Jornal Cidade Online “faz um trabalho seríssimo”.
Para os padrões de seriedade de Wjangarten, que é investigado pelos crimes de corrupção, peculato e advocacia administrativa, a análise faz sentido. O Jornal da Cidade Online é um veículo tão sério que alguns de seus repórteres e colunistas não existem. O site publicava textos assinados por repórteres com identidades falsas para poder atacar ministros do STF e adversários políticos de Bolsonaro. O site também está sendo processado por atacar desembargadores do Rio de Janeiro e o ministro Gilmar Mendes com ofensas e mentiras usando esses perfis falsos.
https://twitter.com/leandroruschel/status/1263150350728642560
Marketing do @BancodoBrasil pisoteia em mídia alternativa que traz verdades omitidas. Não falarei nada pois dirão que estou atrapalhando….. agora é você ligar os pontinhos mais uma vez e eu apanhar de novo, com muito orgulho! Obs: não conheço ninguém do @JornalDaCidadeO pic.twitter.com/Ev4zc67K2G
— Carlos Bolsonaro (@CarlosBolsonaro) May 20, 2020
Logo após o resmungo de Carluxo no Twitter, o Banco do Brasil, cujo gerente executivo de Marketing e Comunicação é filho do vice-presidente da República, voltou atrás da decisão e manteve os anúncios no site de fake news. Ou seja, um vereador carioca, lotado não oficialmente no gabinete do ódio, interferiu na política de anúncios de uma estatal. O filho do presidente da República conseguiu manter as verbas públicas que irrigam um site que defende o bolsonarismo espalhando fake news. É o dinheiro do povo brasileiro sendo usado para financiar a rede de mentiras que sustenta o governo.
Parece que finalmente estamos tomando um bom caminho para combater a máquina de propaganda fascistoide do bolsonarismo. A tática de constranger marcas que apoiam iniciativas se mostrou importante e eficaz, mas o Google, que gerencia a maior partes dos anúncios na internet, também deve ser cobrado. É ela quem controla o algoritmo que ajuda a financiar esses sites. Em novembro do ano passado, o Intercept revelou como o Google ofereceu treinamentos grátis para ensinar blogueiros bolsonaristas e antipetistas a faturarem com Adsense. Muitos desses blogueiros eram notórios criadores de fake news. Não adianta a empresa lavar as mãos.
O criador do Sleeping Giants brasileiro pretende se manter no anonimato porque viu o criador da tática sofrendo sérias ameaças de morte nos EUA. Mexer com a extrema direita é sempre perigoso. E, quando seu núcleo central mantém ligações políticas e financeiras com as milícias, todo cuidado é pouco.
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