A secretaria de Aquicultura e Pesca do governo Jair Bolsonaro publicou no início do mês uma norma que beneficia quase que exclusivamente um único empresário do setor. Trata-se do pai de Jorge Seif Junior, o titular da secretaria. A medida dobra o número de espécies que podem ser capturadas numa modalidade bastante peculiar de pesca industrial.
Só duas das quase 26 mil embarcações registradas para exercer a atividade no país se enquadram nessa categoria. Uma delas pertence ao armador Jorge Seif, pai do secretário, dono de uma empresa chamada JS Manipulação de Pescados e de uma frota baseada na região de Itajaí, em Santa Catarina.
Seif Junior é presença constante nas lives semanais transmitidas pelo presidente de extrema direita. Ganhou notoriedade ao dizer, em novembro passado, que peixes são animais inteligentes e saberiam fugir das manchas de óleo que infestavam a costa brasileira à época – uma sandice que causou espanto até do outro lado do Atlântico. Há alguns dias, Bolsonaro voltou a elogiar Seif Junior em live: disse que tinha vontade de torná-lo ministro, mas não o faria para evitar dar munição a críticos.
Com a mudança na norma decretada no último dia 4, o Mtanos Seif, maior barco da empresa da família, está autorizado a pescar um número maior de espécies – ou seja, a fazer mais dinheiro a cada saída. A decisão do órgão comandado pelo filho quase dobrou a quantidade de espécies que barcos de cerco, como o do pai, podem pescar nos períodos em que é suspensa a captura da sardinha-verdadeira.
A alteração na regra foi feita após um pedido oficial do pai do secretário protocolado em 2018. Mas, segundo a própria secretaria, ele a buscava desde 2017. Até então, o barco do empresário estava autorizado a capturar 20 espécies. Após duas revisões, o número subiu para 38. Seif é dono de uma das duas embarcações do país que têm a sardinha-verdadeira como espécie-alvo e o bonito-listrado como alvo complementar – justamente as favorecidas com a canetada.
O Mtanos Seif é uma traineirade aço com quase 36 metros de comprimento, motor de 850 cavalos-vapor (quase duas vezes a potência usual de um caminhão rodotrem) e capacidade para carregar até 180 toneladas de pescado e até 17 tripulantes. Está entre os 30 maiores barcos de pesca do país e vale cerca de R$ 15 milhões com os equipamentos incluídos, segundo estimativa de um engenheiro de pesca feita a pedido do Intercept.
Num vídeo publicado no YouTube em setembro de 2013, o secretário apresenta a chegada da embarcação ao porto de Itajaí com 50 toneladas de cavalinha e 130 toneladas de sardinha. “O barco chega a estar rebaixadinho” com “mais um carga de peixe com que papai do céu nos abençoou”, comemora Seif Junior.
A norma que interessa à empresa dos Seif já foi revista duas vezes desde 2019, a partir de um pedido feito pelo empresário pai do secretário ainda durante governo Temer.
Ciente do óbvio conflito de interesses que tinha diante de si, o secretário de Bolsonaro se absteve de assinar a medida, que acabou referendada pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina – a quem a secretaria de Pesca é subordinada. Já a revisão mais recente, feita há um mês, foi assinada por Marcelo Moreira Neves, secretário-adjunto de Seif Junior.
O cuidado do secretário para não ser flagrado beneficiando à família, porém, não resiste a uma análise aprofundada do caso. Dois especialistas com quem conversei estranham as alterações em sequência num assunto tão específico enquanto o setor pesqueiro cobra do governo, sem sucesso, uma reforma ampla da tabela de licenças de pesca, que considera defasada.
O próprio Seif Junior reconheceu que há muitas espécies de peixes e frutos do mar sendo pescadas fora das normas. O governo chegou a abrir uma consulta pública, em setembro passado, para ouvir sugestões de mudança nas regras. Para convidar os interessados a enviarem propostas, o secretário gravou vídeo chamando a norma de “Constituição Federal da pesca”.
Mas, numa busca no Diário Oficial da União, só encontrei uma outra reforma feita pelo governo Bolsonaro nessas regras além das duas que beneficiam Seif, o pai do secretário. Trata-se de uma norma publicada em abril que também se aplica a outras duas categorias, menos restritas, de barcos de cerco. Ainda assim, somam 170 embarcações pesqueiras, menos de 1% das que estão em atividade no país.
Em nota enviada ao Intercept, a secretaria argumentou ser uma “falácia” dizer que as revisões de normas sejam um benefício pessoal à empresa dos Seif. Para isso, elencou outras sete alterações nas normas. O detalhe é que todas elas foram definidas entre 2013 e 2018. Ou seja, antes do governo Bolsonaro e da família controlar o órgão.
“A gestão pesqueira no Brasil (…) segue apenas tratando sintomas”, criticou Ademilson Zamboni, diretor-geral da Oceana, uma organização internacional dedicada à conservação marinha, em artigo publicado em abril. “Enquanto isso, os problemas estruturantes, sem apetite para serem enfrentados, persistem”.
Enquanto a mudança não sai do papel, ambientalistas e empresários veem ameaça à sustentabilidade da fauna marinha e insegurança jurídica aos pescadores – pelo risco de capturarem espécies que não têm autorização para abater.
Sistema do Ibama registra 18 infrações ambientais cometidas desde 2003 pelos barcos da família Seif.
“Como o Brasil possui uma grande diversidade de espécies, às vezes fica difícil de trabalhar porque vem muito peixe misturado [nas pescas]”, me explicou Alexandre Espogeiro, presidente do Coletivo Nacional da Pesca e Aquicultura, o Conepe, que representa armadores e indústrias do setor. “Você fica à mercê da fiscalização, que cada vez mais usa interpretações diversas. Temos Ibama, polícias ambientais estaduais e até municipais”, queixa-se Espogeiro, que também é empresário do ramo.
Desde 2014, o Mtanos Seif recebeu oito notificações ou multas do Ibama por infrações ambientais. A mais recente, de fevereiro de 2019, foi lavrada porque o barco passou uma semana em alto-mar sem transmitir o sinal obrigatório de rastreamento. Para o órgão ambiental, foi uma maneira de “dificultar a ação do poder público no exercício de suas atividades de fiscalização”.
O sistema do Ibama registra 18 infrações, desde 2003, sob os CPFs de Jorge Seif e Sara Kischener Seif, esposa do armador e madrasta do secretário de Bolsonaro. Duas embarcações no nome dela foram flagradas em cinco irregularidades só no ano passado. Jorge Seif Junior chegou a pedir desculpas publicamente após fiscais terem descoberto, num desses barcos, 250 quilos de sardinhas prontas para serem usadas como iscas-vivas durante o “defeso” da espécie – como é chamado o período de proibição de pesca no jargão do setor.
O cardápio de irregularidades já cometidas pela família é variado: arrancar barbatanas de tubarões para descaracterizá-los e fazer com que passassem por outras espécies, pescar em unidades de conservação ou outros locais proibidos e capturar sardinhas durante o defeso. Em setembro passado, o barco Elias Seif foi notificado por ter capturado 284 tubarões-azuis no Rio Grande do Sul, onde o peixe é protegido por estar ameaçado de extinção.
‘Amor hétero’
Ambientalistas e empresários colecionam insatisfações antigas com a gestão da pesca industrial no Brasil. Seja sob um ministério – status que a área teve de 2009 a 2015, nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff – ou uma secretaria, a gestão da área habitualmente era loteada entre nomes da base parlamentar do governo, sem experiência no setor. A ex-ministra petista Ideli Salvatti, o atual prefeito do Rio, Marcelo Crivella, do Republicanos, e o emedebista Helder Barbalho, hoje governador do Pará, chefiaram a pasta.
Por isso, quando Jorge Seif Junior foi confirmado secretário, em dezembro de 2018, a maioria do setor comemorou a entrega da área a um empresário do ramo.
Seif, um dos pouquíssimos nomes que Bolsonaro admitiu ter indicado pessoalmente para o segundo escalão, disse se considerar um “xodó” do presidente. “Virou um amor hétero. Ele [Bolsonaro] tem um total de cinco filhos, eu já já serei chamado de zero seis”, disse Seif em entrevista ao jornal O Globo, em junho do ano passado.
Relação de Seif Junior com pescadores azedou após Bolsonaro implodir comitês de gestão do setor.
Se entre presidente e secretário a lua de mel se mantém, não demorou para o clima entre governo e empresariado azedar. Em abril de 2019, Bolsonaro publicou decreto que acabou com centenas de conselhos federais.
Ciente disso ou não, ele guilhotinou os Comitês Permanentes de Gestão, conhecidos pela sigla CPG, grupos que reuniam todos os interessados nas políticas para a pesca, inclusive pesquisadores e empresários. Seif prometeu reativar os CPGs em 30 dias; até hoje, quase um ano depois, ainda não foi capaz disso.
Embora fossem espaços consultivos, os CPGs costumavam ter peso nas decisões da pasta. A primeira revisão da norma em favor de Seif, inclusive, foi discutida numa reunião do “CPG Atuns e afins”, em dezembro de 2018.
“Algumas instruções normativas estão com data de mil novecentos e bolinha. Foi solicitado ao secretário que não podemos parar com o CPG”, reclamou Agnaldo dos Santos, coordenador da Câmara de Pesca de Cerco do Sindicato dos Armadores e das Indústrias da Pesca de Itajaí e Região, o Sindipi. “Estamos dependendo de muita coisa que não tem gestão. A gestão é muito ultrapassada”, ele me disse.
“A regulamentação da pesca convive há muito tempo com problemas estruturais, que são a causa de enormes riscos ambientais e socioeconômicos. Esses pequenos remendos [como a norma que beneficiou o pai do secretário] são quase irrelevantes, não atacam as deficiências centrais da legislação”, analisou Martin Dias, diretor científico da Oceana.
A secretaria alegou que o processo de recriação dos CPGs está “em fase adiantada”, mas que não há como prever prazo para que isso de fato ocorra.
Risco à fiscalização
Até o final do governo Temer, a gestão pesqueira no Brasil era uma atribuição compartilhada entre os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. Logo que assumiu, porém, Bolsonaro escanteou os ambientalistas e concentrou poderes nas mãos de Seif. O secretário afirmou que a medida iria reduzir apenas a burocracia dos processos, não o controle ambiental.
Na prática, os órgãos ambientais têm sido ignorados nas grandes resoluções da pasta. Fiscais do Ibama relataram, pedindo para não serem identificados por temerem retaliações, que são chamados a reuniões na Secretaria da Pesca apenas para passar a impressão de que concordaram com as decisões. Na verdade, os apontamentos que eles fazem costumam ser ignorados.
Ministério da Agricultura quer dificultar acesso do Ibama a sistema que rastreia barcos pesqueiros.
Agora, o Ministério da Agricultura planeja excluir o Ibama da gestão do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite, o Preps, um sistema nacional que monitora todos os barcos pesqueiros de grande porte do país.
A ferramenta é fundamental para que os fiscais possam flagrar e combater crimes ambientais na costa brasileira. A Agricultura já chegou a redigir uma norma que deixa apenas a secretaria comandada por Seif com acesso ao sistema. O texto, ao qual tive acesso, está pronto desde o final de janeiro, mas até agora não foi publicado.
“Nós não temos nem uma fração do pessoal e dos equipamentos que seriam necessários para fiscalizar o mar de forma ostensiva. Essa proposta do Ministério da Agricultura inviabiliza totalmente as nossas operações de fiscalização”, reclamou um servidor do Ibama, que pediu anonimato.
A Secretaria de Aquicultura e Pesca negou a intenção de limitar o poder de fiscalização do Ibama ou impedir o acesso do órgão ao Preps. Disse, ainda, que a minuta a que tivemos acesso “é um documento primário no qual poderão ocorrer diversas mudanças”.
Também procuramos a empresa do armador Jorge Seif, mas não tivemos resposta até o momento. O espaço está aberto para manifestação.
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