Censura. Não há outro nome para o lamentável pedido que a Escola Superior de Guerra, a ESG, fez à Advocacia Geral da União, solicitando a possibilidade de punição a docentes civis que se posicionassem contra o presidente Jair Bolsonaro. Como a carta de Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, na qual o general da reserva faz grave ameaça contra o Supremo Tribunal Federal ao considerar o hipotético pedido para o recolhimento do celular do presidente, os militares presentes no governo federal indicam sua generalizada falta de apreço pela democracia.
O ofício da ESG, inédito na história democrática do país, solicitava não apenas controle sobre as falas dos docentes dentro dos muros da instituição, em palestras e congressos, mas também em “mídias sociais” (sic) e até “mesmo em casos de afastamento, como licenças particulares, férias, folga, entre outros.”
Pior ainda foi a tentativa de enquadrar o pedido na Lei de Segurança Nacional, enfatizando possível pena de reclusão de um a quatro anos. O ofício revela também que o abismo entre a academia científica e a militar não foi bem resolvido até hoje.
Nos últimos 15 anos, intensificaram-se os esforços de aproximação entre militares e civis que se debruçam sobre os estudos de defesa. Desejável pelos dois lados, a aproximação rendeu frutos expressivos, como a criação de programas de pós-graduação, editais de financiamento de pesquisa, concursos de teses e dissertações, congressos, cursos, encontros acadêmicos e convênios institucionais com parcerias e colaborações que foram fundamentais para políticas públicas na área de defesa nacional e envolvendo as Forças Armadas brasileiras. Talvez o maior marco para a comunidade científica tenha sido a criação da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, a Abed, que passou a reunir acadêmicos civis e militares em encontros periódicos, onde a pluralidade, a crítica e a ciência norteavam (ou, pelo menos, deveriam nortear) as atividades.
A participação de militares na vida acadêmica, e vice-versa, é desejável em qualquer lugar do mundo. Desde que haja um equilíbrio entre dois princípios aparentemente inconciliáveis: abertura constante a críticas, liberdade de cátedra e o não dogmatismo, pelo lado científico, e a doutrina e o respeito à hierarquia, pelo lado militar. A tentativa de censura na ESG demonstra que esse equilíbrio não apenas não foi atingido como pendeu para o lado castrense.
Nos últimos anos, vem ocorrendo um movimento de aparelhamento de militares da reserva em postos de ensino e em programas de pós-graduação – o que nem de longe seria um problema em uma democracia liberal consolidada, não fosse pelo verdadeiro cabide de empregos criado para a reintegração do militar reformado e pela agenda obscura de revisionismo histórico corporativista imiscuída em parte dessa ocupação. Um processo agora acelerado a patamares inéditos sob o governo Bolsonaro. É como se o Itamaraty resolvesse que apenas ex-diplomatas pudessem lecionar nos cursos de Relações Internacionais do país, criando pesquisa e ensino “chapas-brancas” e acríticas. Além de desequilibrar as relações civis-militares, esse aparelhamento diminui a transparência, a subordinação ao poder civil e consolida privilégios de classe nas mãos dos guardiões armados.
Desde 2016, mesmo quando orçamentos e concursos nas universidades federais eram cortados, foram abertas dezenas de vagas para docentes na ESG, na Escola de Comando e Estado Maior do Exército, a Eceme, e na Escola de Guerra Naval, a EGN, para atuarem nos seus cursos de pós-graduação. A busca por aumentar a participação de professores civis em instituições militares tinha vários objetivos: fortalecer a produção científica, dialogar com o universo civil e, ainda, adequar as academias militares às demandas da Capes, CNPq e do próprio Ministério da Educação, que, por anos, não reconheciam os graus de mestre e doutor emitidos por essas escolas por não atingirem o rigor científico necessário para tal. Isso deveria fortalecer as relações civis-militares e o diálogo sobre defesa nacional na academia brasileira.
Acontece que a exigência de obediência à hierarquia e ao pensamento doutrinário, fundamentais para a academia militar, são incompatíveis com os princípios que regem a ciência. O argumento levantado pela ESG no ofício, que os professores seriam subordinados de Bolsonaro e, por isto, não poderiam criticar o chefe, fica ainda mais absurdo quando a tentativa de censura ultrapassa os muros institucionais e chega à vida pessoal dos docentes. Nem mesmo aos militares, em seu dever constitucional hierárquico, é vedada a livre expressão de suas opiniões políticas fora do ambiente de trabalho e sem farda.
O triste episódio da ESG e a descabida carta de Augusto Heleno demonstram a atuação direta das Forças Armadas como agentes político-partidários.
O caso se torna ainda mais espinhoso com o relato de seguidas tentativas de intimidação, assédio moral e ambiente de perseguição a professores civis que se manifestem de alguma forma contra o desejado pelas chefias militares. São denúncias graves. Além de configurar assédios das mais diversas formas, a situação fere não apenas o direito democrático da liberdade de expressão, como também interfere diretamente na liberdade de cátedra, algo assegurado a qualquer docente no país.
O triste episódio da ESG e a descabida carta de Augusto Heleno demonstram a atuação direta das Forças Armadas como agentes político-partidários, algo proibido pela Constituição e que contribui ainda mais para a crise do pilar democrático das relações civis-militares no Brasil. O dilema castrense persiste, e aqui percebemos dois exemplos que a política de criação de reservas de mercado para militares, feita por Bolsonaro, tem surtido efeito no apoio de parte significativa deles ao seu governo, sejam da ativa ou da reserva.
A aproximação de civis e militares não é apenas desejável como fundamental para a segurança do país, de seus cidadãos e da democracia. Assim como o papel das FFAA é fundamental para a estrutura do estado brasileiro. Lamentavelmente, esses episódios têm o potencial de aprofundar ainda mais o distanciamento dos dois universos, em especial dentro da academia brasileira, enfraquecendo o Estado Democrático de Direito e evidenciando uma crise e falta de confiança mútuas que não se viam, provavelmente, desde o imemorável AI-5.
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